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18/01/2022 às 21h11min - Atualizada em 18/01/2022 às 20h16min

Autistas sofrem com interrupção de aprendizado no ensino remoto

Famílias assumem o controle educativo e criticam escolas que não conseguiram adaptar a modalidade online às necessidades dos filhos

Esther Morais - Editado por Ynara Mattos
Foto/Reprodução: Freepik

Se a pandemia gerou prejuízos à educação de estudantes que não possuem deficiências neurológicas, no caso dos estudantes atípicos, em especial autistas, esses danos foram muito mais profundos. Famílias queixaram-se que o aprendizado dos filhos autistas foi interrompido com a implementação do ensino remoto, adaptação utilizada na pandemia. No modo presencial, as crianças contavam com acompanhantes terapêuticos que as auxiliavam em sala. Sem o auxílio, os pais precisaram assumir funções para suprir a carência de serviços suspensos no estado da Bahia, como os de psicólogos, pedagogos e fisioterapeutas. 

A maioria dos autistas não entendia a mudança da modalidade presencial para a remota e tardou a começar a adaptação. Em meio a isso, os pais relatam que as crianças apresentaram inquietude, agressividade, crises de ansiedade e, consequentemente, atraso no fluxo escolar. Ao mesmo tempo, as escolas não conseguiram adaptar a modalidade às necessidades deste público específico. 

Jacqueline Santana, mãe de Gustavo Morais, estudante do quarto ano do ensino fundamental e diagnosticado com autismo, diz que o filho apresentou muita agitação e hiperatividade no início da modalidade remota. Ele não conseguia assistir todo o período da aula pelo computador, mas com o tempo criou-se uma nova organização das atividades diárias, permitindo que ele se adaptasse às mudanças.
 

“Houve muitas alterações na rotina de Gustavo. Inicialmente, com a suspensão das aulas presenciais, seguidas também pela suspensão das terapias, passamos a ficar em casa o dia todo. Com isso, percebi que ele ficou mais agitado”, conta.

A antissocialização, característica comum entre os portadores de Transtorno do Espectro Autista (TEA), também se agravou devido ao isolamento advindo da pandemia. A psiquiatra Camille Batista lembra que a privação social promoveu a suspensão de atendimento com profissionais da saúde, além de deflagrar o desenvolvimento de comorbidades, como depressão e ansiedade. 

TEA é uma síndrome caracterizada por bloqueios na comunicação, na socialização e no comportamento Esse transtorno pode fazer a criança apresentar dificuldade na fala, em expressar ideias e sentimentos, mal-estar em meio aos outros e pouco contato visual. Outras particularidades são as demonstrações de padrões repetitivos, movimentos estereotipados e rigidez do comportamento, sendo importante o desenvolvimento de uma rotina. 

Camille explica que a adaptação, em geral, varia de acordo com o grau do autismo: leve, moderado ou grave. Quem tem grau leve possui maior independência, dentro dos padrões do espectro, se adapta melhor às mudanças. Ao contrário dos autistas do moderado ao grave, que precisam de apoio em todas as atividades e geralmente têm limitação verbal e hiperatividade. 

Para a psicopedagoga Miriã Caldas, que atende jovens com TEA há 16 anos, o ensino remoto foi mais impeditivo para os autistas em um nível moderado-grave. Ela afirma que, mesmo dentro de um mesmo nível do espectro, os indivíduos podem reagir de maneiras distintas.

Pais tornaram-se educadores

 

A pedagoga Jeane Gavazza afirma que durante a pandemia a família se tornou protagonista do processo de ensino e aprendizagem dos autistas, pois experiências motoras são físicas e exigem uma assistência tátil. Um aluno de Jeane com autismo leve conseguiu se adaptar e aprender no ensino remoto, mas tem problemas com a coordenação motora. Para essa disfunção, a mãe da criança treina em casa com o filho.

Em outros casos, a escola não tem controle do aprendizado, principalmente por não poder interferir no ensino além da tela. Miriã Caldas explica que o educador não consegue perceber as nuances atrás do monitor. A situação piora quando o aluno está com a câmera desligada, dessa forma, não é possível saber se está atento ou não à aula. O ideal é ter um acompanhante para suprir as necessidades da criança e auxiliar no aprendizado.
 

“Sem a família para imprimir as atividades, organizar o ambiente e estruturar a criança, dar o suporte não seria possivel”, ressalta.

Kattyla Abreu, mãe de Miguel de Carvalho, de 7 anos, estudante do segundo ano do ensino fundamental e diagnosticado com TEA, desistiu do ensino online para o filho e assumiu o controle da educação.
 

“Decidimos comprar uma lousa e giz. Começamos a ensinar para ele as famílias de sílabas. Todos os dias passávamos duas horas das nossas manhãs ‘brincando de letrinhas’. Pedi algo diferente à coordenadora pedagógica e me deram dois cadernos com material adaptado. Usei esses durante o ano de 2020 junto com a lousa e o giz. Miguel terminou o ano alfabetizado e sabendo melhor como pegar no lápis, como pintar e com uma coordenação motora melhor”, relata.

O impacto não se restringiu ao ensino. A reportagem também ouviu relatos de pais que precisaram assumir o papel de terapeutas. Foi o caso de Jacqueline Santana, a mãe de Gustavo Morais, que descreveu o aumento das responsabilidades dos pais.
 

“Eu tive que me reinventar. Além de mãe, passei a ser professora, psicopedagoga, fono e terapeuta ocupacional, porque o trabalho que essas profissionais faziam, eu passei a fazer em casa, para que não houvesse regressão”, conta. 

Falta de inclusão nas escolas

Kattyla Abreu também descreveu dificuldades com o ensino remoto e com a falta de inclusão na escola do filho. Ela conta ter percebido a unidade de ensino iniciando as aulas remotas, mas não tinha feito contato para que Miguel participasse. “Passado um mês, entrei em contato com a escola e solicitei os dados de acesso às aulas, mas logo vi que se era difícil para mim, adulta e neurotípica, imagine para ele. Era tudo muito novo, uma maneira diferente de aprender e ensinar, muitas crianças interferindo. Desisti”. Este ano Miguel passou a ter aulas semipresenciais na escola, mas continua não conseguindo assistir às aulas remotas, apenas as presenciais.

Geovania Santos, mãe do estudante autista Rafael Ramos, de 8 anos, passou por uma situação parecida. Ela afirma que a escola não proporcionou ao seu filho, que estava no primeiro ano do ensino fundamental, o acompanhamento que ele precisava. Por isso, resolveu tirá-lo da instituição. No entanto, o menino não conseguiu acompanhar as aulas gravadas sozinho, e ela, com o acúmulo de trabalho, não tinha tempo para ajudá-lo. Para que a criança não ficasse atrasada nos estudos, Geovania decidiu contratar uma professora particular.

Já em 2021, ela o matriculou novamente na escola, com aulas online no turno da manhã, mas Rafael não assiste no mesmo momento que seus colegas de sala. Ele estuda no turno da tarde, através da gravação da aula do período matutino, tendo o auxílio da professora particular, reproduzindo as atividades que a escola faz com os alunos.

Segundo a Lei federal N° 12.764/12, as pessoas com transtorno do espectro autista são consideradas pessoas com deficiência e têm o direito de estudar em escolas regulares, tanto na educação básica, quanto no ensino profissionalizante. Também lhe são assegurados um acompanhante terapêutico na sala de aula para auxiliar nas atividades, um Plano de Educação Especializado (PEI), que estabelece o conteúdo estudado no ano de acordo com os limites da criança, e o Atendimento Educacional Especializado (AEE), adaptação das lições enviadas pelo professor.

Membro da Comissão de Defesa dos Direitos dos Autistas da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Subseção Santo Amaro, Camilla Varella ressalta que todo aluno com TEA pode ter um acompanhante terapêutico e o nível da assistência depende do grau do espectro. A advogada argumenta que os pais precisam saber os direitos dos filhos para exigi-los, pois não é dever da instituição de ensino conhecê-los. Nos casos de recusa da escola ao atendimento do aluno autista ou às necessidades especiais dele, há medidas judiciais cabíveis.
 

“A família pode denunciar ao Ministério Público e processar a escola requerendo os danos materiais dos gastos com matrícula, material e uniforme, porque a escola não prestou os serviços devidamente. Ainda pode pedir danos morais”, explica.

Apesar da legislação, ainda é comum ver casos como o de Rafael, que não tinha acompanhamento de uma auxiliar em sala para ajudá-lo com as atividades escolares, e de Miguel, que não teve apoio da escola para continuar estudando de forma remota.

A reportagem entrou em contato com a Secretaria Municipal de Educação para saber o posicionamento sobre os problemas relatados pelos pais entrevistados, mas não obteve retorno até o momento da publicação da matéria. 

O retorno às aulas presenciais

As aulas presenciais na rede pública da Bahia foram retomadas em outubro de 2021 e se estenderam até dezembro. A previsão para o início do ano letivo de 2022 é em 7 de fevereiro à 21 de dezembro na mesma modalidade. Escolas particulares, em geral, começaram o processo para retomar o ensino presencial no segundo semestre do ano passado. Algumas optaram por ingressar o novo ano presencialmente, enquanto outras permancerão no sistema híbrido. Especialistas na área da saúde asseguram haver mais segurança nesse retorno por conta da campanha para vacinação infantil, iniciada no estado baiano na segunda semana de janeiro.

Onde ainda é utilizada a modalidade remota, educadores recomendam para os autistas que não conseguem assistir às aulas sozinhos tenham um acompanhamento de perto, mesmo sendo dos pais. O objetivo com isso é adaptar e explicar o conteúdo dado em aula às limitações do aluno.

Referência:

A reportagem publicada acima foi escrita pelas estudantes de jornalismo Esther Morais e Lais Maia como material avaliativo para a disciplina de comunicação jornalística na Ufba (Universidade Federal da Bahia) no segundo semestre de 2021. Atualizada em 18 de janeiro de 2022.


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