Lab Dicas Jornalismo Publicidade 728x90
03/02/2022 às 17h09min - Atualizada em 03/02/2022 às 16h45min

O machismo dentro da música brasileira

Não é apenas importante, mas necessário que sejamos capazes de observar e criticar músicas antigas e atuais que apresentam cunho machista e retrógrado, mas não apenas isso, observar as relações de submissão que mulheres são tratadas na indústria

Emily Prata - Editado por Andrieli Torres

Com o crescimento, além de maior visibilidade e adesão do movimento feminista, diversas canções antigas e consideradas clássicos da Música Popular Brasileira (MPB) e da Jovem Guarda estão começando a serem vistas e interpretadas de maneira mais crítica. Essa discussão ganhou maior força esta semana quando o cantor e compositor Chico Buarque afirmou que não iria mais performar a canção “Com Açúcar, Com Afeto” por conter uma letra que muitos consideram machista. 


“E ao lhe ver assim cansado

Maltrapilho e maltratado

Como vou me aborrecer?

Qual o quê

Logo vou esquentar seu prato

Dou um beijo em seu retrato

E abro os meus braços pra você”

 

A canção que fala de uma mulher que fica em casa o dia inteiro esperando o marido, que só chega à noite, depois de ficar horas em um bar bebendo e olhando para outras mulheres, depois de ter dito à esposa que saia em busca de emprego. Quando chega em casa ele lhe pede perdão, dizendo que vai mudar de vida, e por ele estar com a aparência cansada e maltratada ela o perdoa, o beija, o abraça e cuida dele. Para muitos a letra da canção não é apenas machista, mas também retrato de uma realidade distante e que representa uma série de retrocessos. 

 

A decisão de Chico Buarque gerou diversas reações, não só no público, mas também em outros músicos, enquanto muitos apoiam a decisão, outros afirmam que seria uma espécie de autocensura e ainda há quem afirme ser um processo natural de revisitação de obras clássicas. Muitos afirmaram ainda que a canção tem na verdade um cunho de crítica ao machismo, mas na verdade não apresenta o mesmo tom irônico e crítico de canções como “Mulheres de Atena” e “Geni e o Zepelim”. 

 

A escritora e especialista em teoria literária Amara Moira, em entrevista ao JCNET, afirma que toda obra é viva e se transforma com o tempo, diz ainda que com o tempo o significado da música se modifica. “É uma música feita para ser machista. Chico quis pôr uma Amélia na letra, mas isso fugiu do seu controle e começou a dizer o oposto do que talvez tenha sido a sua primeira intenção”, diz Moira. 

 

Outro grande nome da música brasileira, o representante da jovem guarda Erasmo Carlos, também falou sobre os machismo das canções recentemente, mas possui uma visão diferente da de Chico Buarque. Em entrevista ao canal Corredor 5 no YouTube, Erasmo afirmou que há uma “machismo inocente” em suas canções, utilizou ainda o clássico da jovem guarda “O Tijolinho” como uma canção que representa um amor ingênuo, que não pode ser considerado nem bobo e nem machista. O cantor explicou ainda que:

 

“As letras são machistas porque a realidade daquela época era muito machista, era o que vivíamos e como pensávamos. Claro que sei que as mulheres podem ocupar o espaço que quiserem, todos temos este direito, mas, quando canto as canções nos shows, ninguém fica criticando ou me regrando. Meu show é uma grande festa e todos sabem que estas letras representam uma época, um momento das nossas vidas”.

 

Apesar de levantarem a discussão do mesmo tópico, os dois artistas possuem visões bem diferentes sobre o assunto, mas a reflexão levantada por ambos é bastante relevante e movimenta bastante as redes sociais. O machismo não se encontra apenas em canções antigas, muitos artistas ainda lançam canções de cunho degenerativo e ofensivo a mulher, um grande exemplo é a canção “Dar uma Namorada” da dupla Israel e Rodolfo. 

 

“A música conta a história do desenrolar de um casal e fala: ‘Me atiçou? Vai ter que dar uma namorada’. Essa música, escrita hoje, com uma mentalidade de 1920, diz que se a mulher for estuprada a culpa é dela, porque ela atiçou”, critica a doutora em psicologia Manuela Xavier em sua conta do Instagram. 
 

A canção traz diversos trechos problemáticos:

 

Toma cuidado com o que você anda falando na hora H

De acordo com a lei dos solteiros, cama não é local pra se declarar

Tudo que 'cê 'tá falando pode ser usado a favor de você

Já pensou se acredito e me apego?

Não vai ter pra onde correr”

 

O cantor até tentou se explicar, mas soou apenas vazio e desinformado, assim como a própria música, revoltando ainda mais a psicólogo e os internautas, as justificativas do cantor mostraram apenas o quão raso é seu conhecimento e a falta de esforço em ver a situação da maneira correta. 

 

MACHISMO NA INDÚSTRIA 

 

Mas as considerações e colocações machistas não se restringem às letras das músicas, cantoras de diversos gêneros musicais sofrem com a falta de espaço e visibilidade em meios completamente dominados por homens. Desde o início dos tempos mulheres lutam para conquistar não só oportunidades, mas também reconhecimento e respeito por suas conquistas, na indústria musical isso não é muito diferente. Por maiores que sejam seus feitos, elas ainda são estereotipadas e diminuídas, atualmente artistas com grande alcance ainda são vistas como superficiais, idiotas e sexualizadas ao extremo.  


A cantora Luiza Sonza, em entrevista a Marie Claire, afirmou que mulheres para serem ouvidas precisam provar seu valor bilhões de vezes. “A gente tem tanta mulher talentosa. Olha o tamanho da Anitta, da Ludmila, da Iza. A gente tem que fazer 1 bilhão de coisas para ser reconhecida minimamente", declara.

 

Já a cantora Marília Mendonça, teve sua carreira marcada por uma forte representatividade feminina em suas músicas, trazendo letras que focavam no universo feminino, o fortalecendo e valorizando. Trazendo à tona questões relacionadas à protagonismo feminino, padrões de beleza e desigualdades nos relacionamentos afetivos, a carreira da cantora foi marcada por uma constante luta contra o machismo e os estereótipos de beleza impostos pela indústria artística. Mesmo após sua morte a sertaneja ainda foi vítima de colocações preconceituosas e machistas em publicação feita pelo jornal Folha de São Paulo, onde o historiador Gustavo Alonso escreveu que a artista "Nunca foi uma excelente cantora. Seu visual também não era dos mais atraentes para o mercado da música sertaneja". 

 

Afonso continua:

 

"Marília Mendonça era gordinha e brigava com a balança. Mais recentemente, durante a quarentena, vinha fazendo um regime radical que tinha surpreendido a muitos. Ela se tornava também bela para o mercado".

 

O texto foi duramente criticado, mas infelizmente é apenas uma pequena representação daquilo que mulheres precisam enfrentar todos os dias, mesmo após uma tragédia como a que tirou a vida de Marília. Além disso, esses são apenas alguns exemplos de situações e posicionamentos repulsivos que são impostos à imagem de mulheres no meio musical, mesmo com um ambiente cada vez mais representativo e receptivo. Ainda assim, continuam sendo estereotipadas em canções e em críticas musicais, principalmente no meio sertanejo, além da constante sexualização no meio pop e funk.

 

Ao observar não só a letra das canções de Chico e Erasmo, mas também da dupla Israel e Rodolfo, que apesar de serem diferentes em composição e período, reproduzem ideologias e comportamentos prejudiciais à mulher. Ainda que seja possível observar evolução nessa imagem e ideologias, são necessárias mudanças concretas e significativas, as mulheres precisam ser respeitadas não apenas nas letras das canções, mas também como artistas. 

 

Cantoras trabalham diariamente para garantir seu espaço e respeito na indústria, por meio de suas músicas e dos discursos que passam para seu público, ainda tendo que lidar com críticas constantes quanto a sua aparência, forma de se vestir e vida pessoal. Mas não cabe apenas a elas, a sociedade como um todo tem o dever de rejeitar, criticar e lutar contra o machismo que nos rodeia, nos sufoca e reprime. Façamos todos a diferença, sejamos todos a mudança!

 

Link
Tags »
Notícias Relacionadas »
Comentários »