O New Journalism não está só A década de 1960 representou para os jornalistas radicados nos Estados Unidos novas perspectivas. De um lado, acadêmicos defendiam o jornalismo rígido e informativo, sem espaço para novidades. Por outro, alguns trabalhadores da imprensa tinham na mente um projeto: mudar de vida por meio da literatura, produzindo um romance de ficção que viesse a se tornar um best-seller.
Deste modo, alguns repórteres trabalhavam em jornais e revistas enquanto esperavam uma ideia que rendesse um bom livro e lhes permitisse subir para o chamado primeiro time dos profissionais da palavra, isto é, o dos escritores.
Em 1961, contudo, um artigo publicado na revista
Esquire por Gay Talese trouxe novidades. Tratava-se de um perfil abordando o lutador de box
Joe Louis. No texto,
Talese rompia paradigmas: descrevia em demasia cenários e transcrevia diálogos na íntegra ao longo da matéria que, por sinal, poderia ser facilmente tomada por um conto. Isto é, sem deixar de informar, o repórter fazia uso de recursos típicos da literatura para contar um recorte da vida do entrevistado, um homem de meia idade.
Com a publicação, defensores do modelo clássico da notícia criticaram o produto final, chegando a levantar suspeitas sobre a veracidade dos diálogos, apontando para uma suposta quebra do compromisso da reportagem com a transcrição da verdade.
No entanto, a redação de
Gay Talese havia se baseado em trabalho minucioso de acompanhamento da fonte em seu dia a dia, como um observador atento que capta detalhes e procura obter visão interior da mente do entrevistado. Para o jornalista, um artigo de não ficção, mas que poderia ser lido como ficção justamente por apresentar uma história com começo meio e fim.
O estilo empregado por
Talese se baseava no chamado jornalismo literário, uma corrente da imprensa que redigia o texto de modo mais elaborado, contraponto ao imediatismo do
hard news, marcado pela rápida apuração e produção da notícia, sem maiores retoques de estilo.
Além de
Gay Talese, outros seguiram caminho semelhante na redação de artigos para jornais e revistas, recorrendo, por exemplo, a pontuações pouco comuns no universo noticioso (reticências, pontos de exclamação, onomatopeias, interjeições); descrição de cenas e pessoas; e uso do tradicional discurso direto livre, com dois pontos e travessão, marcando a fala de personagens que, em fato, não eram ficcionais, mas, sim, as fontes entrevistadas. Dentre eles, nomes como
Tom Wolfe e Truman Capote, este último responsável pelo best-seller “
A sangue frio”, fruto de um trabalho de cinco anos de apuração, no qual contou a história do assassinato de quatro membros de uma família de fazendeiros do estado do
Kansas, ocorrido em 1959
. Para produzir o livro reportagem,
Capote fez diversas entrevistas, consultou documentos e até fez amizade não só com os policiais do caso, mas também com a dupla de assassinos condenados pelos crimes.
Talese, Wolfe e Capote integraram um ramo do jornalismo literário, chamado
new journalism, composto por repórteres norte-americanos nos anos 1960. No entanto, o estilo noticioso tributário de mecanismos da literatura não se restringiu à
América do Norte. No
Brasil, por exemplo, foi adotado por periódicos como a revista
Realidade e o
Jornal da Tarde, em 1966, mas sua popularidade foi limitada devido à logística de produção envolvida, que exigia um tempo maior de comprometimento do repórter até a entrega do texto final a ser publicado.
E neste mesmo ano de 1966, um outro repórter americano se destacou por subverter ainda mais as regras da imprensa tradicional. Seu nome era
Hunter Stockton Thompson. Seu jornalismo era o que se convencionou chamar de gonzo, para alguns uma variante dentro do jornalismo literário, tal como o
new journalism. Hunter Stockton Thompson – Uma nova forma de noticiar Nascido em 1939 em
Kentucky,
Hunter S. Thompson teve uma infância problemática. Seus pais eram alcoólatras e, não poucas vezes, tinha um comportamento violento e destrutivo. Com o falecimento do pai,
Jack,
Thompson começou a beber e passou a acompanhar a mãe,
Virgínia, no vício. Na época, tinha 15 anos.
Pouco antes de completar 18 anos, foi condenado à prisão por assalto. Parte da pena de dois meses foi diminuída por se alistar na Força Aérea Americana. Durante este período, escreveu para o jornal
Command Courrier. Após deixar o serviço militar, colaborou com pequenos diários de várias cidades americanas, até ser contratado pela revista
National Observer para trabalhar como correspondente na
América Latina. Em 1962, de volta aos
Estados Unidos, cobriu festivais de música e produziu matérias sobre temas de interesse público. Tinha, contudo, um dilema: queria escrever ficção, mas ainda dependia do jornalismo para se manter. Seu interesse pelo
new journalism foi natural. Porém, pensava em fazer algo diferente. O ano era 1965 e uma gangue de motociclistas causava preocupação no país. Eram os
Hell’s Angels, cuja má fama havia ganho alta repercussão na mídia americana. Disposto a conhecer o outro lado da história, a dos motoqueiros acusados de vandalismo,
Thompson conseguiu uma moto, se infiltrou na gangue e passou a viver com eles - e como eles - por 18 meses. A experiência foi tão intensa que
Hunter passou, inclusive, a consumir drogas como
LSD. Além disso, chegou a ser espancado duas vezes pelos membros da gangue, por desavenças durante a época de convívio.
A matéria foi publicada na revista
Nation em 1966. No ano seguinte, foi transformada no livro
"Hell's Angels: The Strange and Terrible Saga of the California Motorcycle Gang". Depois da polêmica aventura,
Thompson estabeleceu um estilo próprio, conhecido como jornalismo gonzo – uma forma menos elegante do que o
new journalism na produção do texto. Enquanto este último modelo se baseava no distanciamento do repórter em relação à ação, aquele fazia exatamente o contrário: era fundamental o repórter viver a ação, assumir riscos, participar de tudo, sentir na pele o que estava acontecendo.
Deste modo,
Hunter se acostumou a viver situações extremas, consumindo drogas e bebidas enquanto produzia textos para revistas e colunas de jornais. Seus artigos classificados por gonzo possuíam características próprias: apuração participativa, relatos em que havia dificuldade para se discernir com clareza ficção da realidade durante a história contada, narração em primeira pessoa, assuntos relacionados a sexo, violência, drogas, esporte, política e crítica à sociedade ou ao modo de viver das pessoas, uso de sarcasmo como forma de humor, descrição extrema de situações.
Também eram comuns o uso de pseudônimos, como Raoul Duke, ilustrações bizarras, produzidas principalmente por seu colaborador, o cartunista
Ralph Steadman. Dentre as matérias por ele produzidas,
Fear and Loathing in Las Vagas: A savage journey to the heart of the American dream (1971)
, sobre viciados em jogos de cassino, e
The Rum Diary (1999), sobre as experiências que adquiriu enquanto trabalhava como correspondente em
Porto Rico, no começo dos anos 1960, foram adaptadas para o cinema respectivamente em 1998 e em 2011.
Hunter fez matérias para publicações como
Playboy, Rolling Stone e
San Francisco Chronicle, sempre chamando a atenção pelo estilo transgressor de seu jornalismo.
Chegou, inclusive, a comentar, em um texto de 1977, sobre a possibilidade de suicidar-se.
E assim o fez, anos mais tarde, em 2005, em sua casa na cidade de
Woody Creek, no estado do
Colorado, usando uma arma de fogo.
Para alguns jornalistas, o comportamento de
Hunter Stockton Thompson foi gonzo até o fim de sua vida.
Vem comigo – Um jornalista gonzo na televisão brasileira Palhaço, presidiário, travesti, mendigo, trapezista, piloto de avião. Essas foram apenas algumas das situações vividas pelo jornalista e apresentador brasileiro
Luis Felipe Goulart de Andrade. Filho de um caricaturista e de uma cantora, neto de um senador de
Alagoas e de uma jornalista,
Goulart nasceu em 1933 e teve como madrinha de batismo a artista
Carmen Miranda. Como ofício, abraçou o jornalismo e começou na área em 1955, na então
TV Rio.
Ao longo de seis décadas de reportagens, trabalhou em emissoras como a
Rede Globo, a Rede Record, o SBT e a Bandeirantes e ficou conhecido por ser o “repórter da noite em São Paulo”, alguém que andava na rua e se interessava por todo o tipo de pessoas.
Em um estilo análogo ao jornalismo gonzo, porém sem alguns dos excessos adotados por jornalistas como
Hunter S. Thompson, Goulart percebeu que a melhor forma de contar as histórias dos entrevistados seria se colocando na mesma situação de suas fontes. Literalmente.
Para isso, criou a atração
“Plantão da madrugada”, levada ao ar na
Rede Globo a partir de 1978 e, depois, produzida com pequenas variações no nome – como
“Comando da Madrugada” – em outros canais de televisão.
No programa,
Andrade era sempre acompanhado pelo cinegrafista
Capeta. Certa vez, ao realizar uma matéria em uma boate paulistana, disse “vem comigo”, instruindo
Capeta a gravar a cena sem cortes, em um único plano sequência, criando a impressão de que o telespectador estava ao seu lado, o acompanhando durante a realização da matéria. A expressão “vem comigo” se tornou de imediato um bordão do apresentador.
Gostando de experimentar,
Goulart procurava sentir na própria pele o mesmo que seus entrevistados. Assim, quando entrevistou travestis da noite paulista, aceitou ser transformado em um. Quando foi mostrar o cotidiano da prisão do
Carandiru, hoje desativada, chegou dentro do caminhão de transporte de presos, entrou na fila para revista como se fosse um dos detentos, passou a noite em uma cela e fez amizade com os homens que ali cumpriam pena para entender e contar suas histórias. Quando fez uma matéria sobre um circo mambembe, transformou-se em palhaço e integrou a equipe do show. E enquanto entrevistava o cardiologista
Euryclides de Jesus Zerbini (1912-1913), pioneiro no transplante de coração no
Brasil, foi alertado que estava na iminência de sofrer um infarto e, por isso, foi operado emergencialmente pelo médico. Ao mesmo tempo, o cinegrafista
Capeta filmava o procedimento que, mais tarde, seria mais uma de suas reportagens.
O peculiar modo de trabalho de estar no lugar do outro era por ele chamado de “
vestir a pele do lobo”, em referência ao conto
Chapeuzinho Vermelho. Evitando uma abordagem sensacionalista, procurava manter o extremo respeito para com a fonte. Anos mais tarde, em 2014, durante entrevista ao programa
Roda Viva, da
TV Cultura, Goulart diria que o segredo era tratar todos os entrevistados com o mesmo respeito, como o faria se estivesse diante da própria rainha da
Inglaterra.
Entre os anos de 2012 e de 2016, atuando na
TV Gazeta, levou ao ar
Vem Comigo, programa feito com estudantes de jornalismo da
Faculdade Cásper Líbero, no qual os repórteres faziam nos dias de hoje as mesmas matérias por ele produzidas ao longo de sua carreira.
Goulart brincava ter um acordo com
Deus para viver até os 115 anos. Contudo,
aos 83 anos, em agosto de 2016, não resistiu a dificuldades cardiorrespiratórias. Deixou, de qualquer forma, muitos ensinamentos para profissionais da comunicação. Um legado aos novos jornalistas Embora o jornalismo gonzo não tenha tido uma aceitação unanimidade, não deixou de ensinar e inspirar novas gerações de profissionais da comunicação.
E mesmo que possa ser visto como uma variante rebelde dentro do jornalismo literário, não se pode negar que foi uma forma de fazer aquilo que
Gay Talese chamava de a “arte de sujar os sapatos”, isto é, ir para a rua, conhecer a realidade e, depois, falar sobre ela, saciando a curiosidade do público consumidor da notícia.