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04/02/2022 às 19h54min - Atualizada em 04/02/2022 às 11h53min

'Coveiro não é gente': as condições de invisibilidade de muitos trabalhadores no Brasil

Todos os trabalhos são essenciais, mas nem todos são devidamente valorizados chegando a ser considerados invisíveis. Uma questão histórica, sociológica e cultural que demonstra o avanço da desumanização da sociedade.

Thuany Menezes - Editado por Giovana Rodrigues
Reprodução: Gonçalo Junior

“Tão necessário quanto o médico, quanto o bombeiro, só que ainda tão discriminado e visto de forma distorcida até que alguém de alguma família precise, aí sim ele é lembrado.” Esta é a fala de Marcelo Rodrigues, que representa sua realidade como sepultador e a de vários outros profissionais que, por mais que desempenhem um papel de grande importância para a sociedade, não são lembrados tampouco valorizados.
 

Trabalho e sociedade: como se relacionam?

Antes de tudo é preciso compreender o que é o trabalho e a sua relação com a sociedade a fim de entender a questão da invisibilidade acerca de algumas funções. Em primeira análise, o termo “trabalho” pode ter sua origem no latim e significa “instrumento de tortura”, ou seja, por muito tempo, a ideia de trabalho esteve associada a uma atividade penosa; é importante lembrar-se que, nas sociedades grega e romana, o trabalho era voltado para suprir as necessidades da população  e era a mão de obra escrava que garantia essa produção suficiente. Assim sendo, da Antiguidade até a Idade Média, o trabalho era muito desvalorizado e não era o elemento central, isto é, não se tratava do núcleo que orientava as relações sociais.
 

Essa percepção transformou-se com a emergência do mercantilismo e do capitalismo já que, nesta época, o trabalho passou a ser visto como algo positivo e, até mesmo, como um meio de dignificar o homem. Isto se deu pois, sendo inviável continuar lidando apenas com o trabalho compulsório, surgiu a necessidade de convencer as pessoas que trabalhar para outras pessoas seria algo benéfico. Neste período, com a manufatura, o trabalho transformou-se em mercadoria que podia ser vendida e comprada, como qualquer outra. 

 

Tal visão surgiu na Idade Moderna, período em que uma das suas características era a crescente divisão do trabalho. Esta divisão, para Karl Marx, é o que gera a divisão em classes, enquanto Durkheim a considerava a causadora de interdependência de funções sociais, o que cria a solidariedade orgânica, pois faz a sociedade funcionar e lhe dá coesão. 

 

Segundo o professor Carlos Henrique, o corpo social vem se transformando em uma “sociedade do espetáculo”, em outras palavras, a busca constante por lucro e visibilidade intensifica a falta de humanidade e a análise do outro como uma coisa, isto é, vê o próximo não como ele realmente é mas como se quer percebê-lo, a partir de um aspecto de invisibilidade. Esta desumanização é notada na fala de Marcelo ao pontuar o seguinte: “Primeiro que coveiro não é gente, não tem horário de almoço, não pode atrasar, as vezes nem água tem para beber, coveiro não é gente. Quer mais desvalorizado que isso?”. Dessa forma, nota-se que o preconceito e a falta de empatia impedem a visibilidade de muitos desses trabalhadores como seres humanos. 

 

Mas, afinal, quem são os trabalhadores invisíveis?

É importante salientar que o termo de invisibilidade usado aqui faz referência ao fato dessas profissões serem pouco lembradas e não receberem tanto reconhecimento por parte da sociedade. Posto isto, pensar neste assunto é pensar em auxiliares de limpeza de hospital, motoristas de ônibus, sepultadores, garis, porteiros e diversas outras funções fundamentais para a sociedade que, por muitas vezes, passam batido e até mesmo desvalorizadas

 

Assim sendo, por que o médico e o auxiliar de limpeza do hospital são tão importantes mas um é muito mais valorizado que o outro? Em nossa sociedade, a elite sustenta as representações, ou seja, o médico teve um alto investimento em estudo e, para isso, fez uso de recursos que, muitas vezes, um auxiliar de limpeza não o teve e, num país historicamente marcado por separação entre classes sociais como fruto de desigualdades econômicas, tal serviço acaba sendo visto como algo “próprio da sociedade” e relacionado à falta de estudo. Embora seja considerável a parcela destes trabalhadores que possuem pouca formação, esta não é a realidade de todos. Mencionado anteriormente, o sepultador Marcelo, além de coveiro é formado na área de segurança, armamento e cozinha, e diz, com orgulho, estar nesta função pois deseja alcançar o cargo de auxiliar de necropsia. 

 

No entanto, seguindo a linha de pensamento defendida por Durkheim, uma função depende da outra já que o hospital se movimenta também em função da limpeza e higienização do ambiente, pois isto é um motivador de credibilidade tendo em vista que o paciente tende a se sentir mais seguro em um local limpo e bem apresentado. A supervisora de operações da empresa Brasanitas, Andréia Itaboraí da Silva - responsável pela higienização do Hospital Nossa Senhora da Conceição - relata que sua equipe recebe formação constante através de treinamento visando a sua capacitação mas também como forma de evidenciar para os mesmos a importância de seus serviços.

 

“As minhas funcionárias se sentem excluídas e também comentam que se sentem invisíveis, mas falo para elas que o nosso trabalho é de fundamental importância pois o hospital se movimenta também em torno de nós, já que o cliente observa, primeiramente, a limpeza do hospital. Por isso, sempre digo que somos de fundamental importância, e que todas recebem treinamento mensal, ou seja, todos têm formação na área para trabalhar em qualquer lugar que queiram. Tento sempre valorizar elas para que elas não se sintam invisíveis.”  comenta a supervisora. 

A rotina de auxiliares de limpeza na linha de frente do combate à covid-19

A rotina de auxiliares de limpeza na linha de frente do combate à covid-19

Fonte: Rogério Rocha de Souza / Reprodução: Agência Brasil

Esta questão influencia a vida das pessoas desde cedo, principalmente no período de vestibular, momento em que os jovens voltam sua preocupação para uma escolha que vai impactar em seu futuro. Muitos desistem da profissão que realmente desejam por medo da desvalorização existente em relação a algumas e acabam optando por outras mais valorizadas mas que, muitas das vezes, não se identificam tanto além de não ser o que gostam e querem fazer.

O vestibulando de medicina, Daniel Rodrigues, comenta que, embora tenha escolhido este curso por identificação e interesse na área, a medicina traz consigo um status e uma valorização por parte das outras pessoas. Ademais, o mesmo pontua que, por ser negro, teme em ser desvalorizado dentro da profissão futuramente por conta disso, e aponta que o racismo estrutural é um aspecto com grande impacto nesta questão. 
 

A sociedade em si não valoriza as pequenas funções. Apesar de uma depender da outra, as pessoas não enxergam isso. (...) Ninguém consegue fazer nada sozinho, tanto no mercado de trabalho quanto na sociedade em geral. É muito complicado conseguir encaixar na cabeça do povo que não é só a medicina, direito ou engenharia que são profissões boas, as pessoas acabam vivendo em uma bolha e não querem sair.” aponta Daniel.


Impacto da pandemia

Durante o período da pandemia do COVID-19, tornou-se ainda mais evidente a relevância dessas profissões já que foram estas que seguiram funcionando enquanto a sociedade parava diante do isolamento social exigido. Ao longo do ano, quantas vezes se ouve falar em coveiros ou sepultadores? Uma ou duas, talvez? Na pandemia, houve a proibição de velórios e de sepultamentos com familiares e amigos, logo, somente quem se expunha a tal risco era o coveiro ou sepultador. Vale salientar que nem em todas as cidades estes profissionais tiveram os equipamentos de proteção necessários para realizarem seu serviço e, em alguns casos, tiveram que cobrar as autoridades ameaçando não trabalhar desprotegido. 

Servidores de cemitério trabalhando sem proteção

Servidores de cemitério trabalhando sem proteção

Reprodução: O Município

E nos hospitais, quem iria controlar para que a infecção hospitalar não se propagasse para todo o ambiente? Os auxiliares de limpeza, que cuidam do entorno do paciente - tão importante quanto cuidar do paciente em si. Outro ponto relevante é que, ao decorrer deste período, foi necessário aumentar as equipes para dar conta de uma limpeza constante, resultando, em alguns hospitais, apenas no aumento de contratados e em nenhum número de demissão de funcionários desta área. 

 

Mas também não foram somente estas duas funções que foram impactadas pela pandemia. De acordo com dados de trabalhos formais do Caged (Cadastro Geral dos Empregados e Desempregados), apontam que caminhoneiros, porteiros de edifícios, vendedores de comércio e motoristas de ônibus estão entre as ocupações com mais desligamentos por morte no segundo bimestre de 2021, quando o país atravessava a segunda onda da pandemia.

Escolha ou consequência?

Conforme dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o Brasil é um dos país mais desiguais do mundo - ocupando o nono lugar no ranking de desigualdade social do mundo -  com alta concentração de renda e racismo estrutural, vários âmbitos são afetados, inclusive o profissional. Esta razão, percebida no antagonismo de classes sociais, caracteriza a invisibilidade pública retratada na baixa remuneração e na pouca escolaridade e qualificação para o mercado de trabalho. Assim, há pessoas com pouca escolaridade que, por consequência e necessidade, exercem estas funções apesar de toda a desvalorização existente. 
 

“Acho que tem muito a ver com a oferta de mão de obra que ainda é muito grande. Quando abrimos uma vaga, aparece muita gente se candidatando. E o nosso país tem uma escolaridade muito baixa e, aqui por exemplo, muitos chegaram sem saber ler e escrever. Mas, atualmente, há a cobrança de uma formação básica por conta dos treinamentos desenvolvidos aqui. Hoje é o dia de fazermos o melhor, de nos dedicarmos, para que o nosso serviço não seja desvalorizado.” aponta Andréia.

Por outro lado, embora seja considerável a parcela destes trabalhadores que possuem pouca formação e muitos acabam pré julgando que esta é a razão de se manter em tal serviço, esta não é a realidade de todos. Há servidores providos de estudos, qualificações e com sonhos em mente. Como é o caso de Marcelo, mencionado anteriormente, que além de coveiro é formado na área de cozinha e de segurança e armamento, e diz, com orgulho, estar nesta função pois deseja alcançar o cargo de auxiliar de necropsia. 
 

“Não queria ser conhecido, ou reconhecido, anonimamente pelas pessoas que vem aqui. Mas sim pela sociedade em geral, principalmente pelos políticos. Mas esse reconhecimento só vem quando Jesus voltar, porque todos se acham acima e no final todos terminam aqui. Por isso não ligo para status ou reconhecimento, só preciso sepultar da melhor forma possível, para amenizar a dor de quem perdeu naquele momento.” desabafa Marcelo.

Enquanto estes servidores buscam se dedicar diariamente para que as pessoas possam receber o melhor de seus serviços, é necessário que a população também reconheça o valor e a importância que estes têm e perceba que os mesmos são fundamentais para um bom funcionamento da sociedade.


Referências:

Profissões invisíveis: como é não ser enxergado pela sociedade. Observatório do terceiro setor, 2018. Disponível em: <https://observatorio3setor.org.br/carrossel/profissoes-invisiveis-como-e-nao-ser-enxergado-pela-sociedade/> Acesso em: 26/01/22

CASTRO, Maria Rafaela. “Os trabalhadores invisíveis”, 2021. Disponível em: <https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/190040/2021_castro_maria_trabalhadores_invisiveis.pdf?sequence=1&isAllowed=y> Acesso em: 07/01/22

 

 

 

 


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