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04/02/2022 às 22h49min - Atualizada em 04/02/2022 às 22h39min

Uma vida atípica

Como a desinformação social dita a vivência de crianças portadoras do TEA

Gabriely Coelho - Editado por Larissa Bispo
Créditos: Unsplash

O Transtorno do Espectro Autista, além de pouco falado, é pouco visto. Ser neurodivergente é como estar em meio à uma sociedade comum e, mais do que sentir-se sozinho, ser completamente distinto. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma em cada 160 crianças no mundo nascem destinadas a viverem uma vida atípica, cheia de mistérios e descobertas que não se igualam a das pessoas que estão à sua volta, atravessando, ainda, a desinformação, uma das grandes barreiras da vida dessas crianças e problema recorrente na sociedade. 

A história do autismo

Há 114 anos, o termo “autismo” foi descoberto. Em 1908, o psiquiatra suíço Eugen Bleuler utilizou a palavra para descrever pacientes esquizofrênicos que, como válvula de escape, fugiam da realidade e se retiravam para um mundo interior. “Autós” vem do grego, e significa “a si mesmo”. Dessa forma, Bleuler acreditou que esses pacientes estavam voltados para si mesmos, retirados para dentro de sua própria realidade.

Em 1943, um psiquiatra infantil austríaco chamado Leo Kanner menciona características autistas em sua obra publicada como "Distúrbio Autístico do Contato Afetivo”, onde Kanner desenvolveu estudos de casos com 11 crianças que apresentavam características similares e muito específicas. Apesar da boa memória, bom potencial intelectual e cognitivo, elas tinham sensibilidade a estímulos (principalmente sonoros), resistência e alergia a alimentos, apresentavam solidão autística e isolamento extremo, o apreço pela preservação de ‘mesmices’, a dificuldade de adaptação às mudanças na rotina, a presença de comportamentos ritualísticos, dificuldades com interações sociais que estão diretamente ligadas à comportamentos atípicos com relação à procura e a necessidade de relações sociais comuns, a inabilidade no uso da linguagem para comunicação. Como essas características estavam presentes na primeira infância, ou seja, desde o início da vida, Kanner passou a chamar de Autismo Infantil Precoce.

Em 1944, Hans Asperger propõe um estudo onde define um distúrbio em seu artigo “Psicopatia Autista na Infância”, apontando um transtorno severo na interação social que era recorrente em meninos que possuíam algumas dificuldades motoras e de fazer amizades, falta de empatia. Mas Asperger utilizou uma descrição interessante para as crianças, chamando-as de pequenos professores, devido ao seu foco intenso e à habilidade de discorrer detalhadamente sobre temas específicos.

Mais pesquisas foram feitas a partir dos estudos de Kanner durante os anos 50 e 60. Porém, essas pesquisas não foram esclarecedoras, trazendo dúvidas e confusões sobre a natureza e a etiologia do autismo, um assunto sobre o qual ainda se sabia pouco à época. Uma das crenças constatadas por pesquisadores era de que o autismo seria um comportamento originado por relações onde pais eram emocionalmente distantes dos filhos, culpabilizando os pais das crianças  pela hipótese que Leo Kanner criou, chamada de “mãe geladeira”. À medida que o tempo passou, no entanto, evidenciava-se que o autismo era um transtorno cerebral que começava na infância dos mais diferentes grupos geográficos, socioeconômicos e étnico-raciais, o que fez Kanner tentar se retratar diante do que se havia espalhado e, mais tarde, mostrando que a teoria foi criada sem fundamento ou contexto algum.

Já em 1981, a psiquiatra Lorna Wing cunha o termo Síndrome de Asperger, em referência a Hans Asperger, revolucionando mundialmente a maneira como o autismo era visto. Ela defendeu o autismo enquanto um espectro e como mãe de uma criança autista, buscava compreensão e serviços para portadores de TEA e suas famílias, tendo fundado a National Autistic Society e o Centro Lorna Wing.

Caso 01: Donald Triplett

Donald Gray Triplett nasceu em setembro de 1933, nos Estados Unidos. Donald foi o primogênito da família; seu pai era advogado e sua mãe fundadora de um banco local em Forest, Mississipi, onde Donald nasceu. Seus pais perceberam desde muito cedo que Donald não se comportava como as crianças da mesma idade: não demonstrava reação ao ouvir a voz dos pais e não correspondia aos sorrisos da mãe. Tinha dificuldade para interagir e não se interessava em brincar com outras crianças, e mesmo quando começou a falar, apenas repetia sons que escutava.

Apesar de todas as diferenças, os pais de Donald não duvidaram de sua capacidade. O garoto se fixava em objetos específicos e tinha uma habilidade e talento surpreendente para memorização, lembrava-se a sequência das miçangas coloridas colocadas pelo pai em um cordão, e foi capaz de cantar sozinho aos dois anos e meio, a letra de uma música que ouviu a mãe cantar uma única vez.

Mesmo se mostrando hábil, alguns atrasos em seu desenvolvimento levaram Donald a ser internado numa instituição estadual por orientações médicas no ano de 1937, aos 3 anos de idade. As visitas dos pais eram frequentes e, felizmente, um ano depois, o retiraram da internação e o levaram de volta para casa.

E foi no mesmo ano que saiu da internação que Donald tornou-se o Caso 1. Em outubro de 1938, quando é examinado no Hospital Johns Hopkins em Baltimore, Maryland, em uma consulta com o psiquiatra austríaco Leo Kanner. Em um primeiro momento, Kanner não pôde diagnosticá-lo, mesmo notando semelhanças com a esquizofrenia, o que o deixou perplexo e intrigado. A partir desse ponto, Kanner inicia um estudo pioneiro e em 1943 havia encontrado casos de 10 crianças que agiam de maneira parecida. Leo Kanner, então, publicou seu artigo a fim de mostrar a descoberta de padrões para o diagnóstico e intitulou a obra de “Distúrbios autísticos do contato afetivo”.

Após as consultas, a família retornou a Forest e em 1944, por insistência de Kanner, Donald morou por quatro anos com um casal que era dono de uma fazenda, onde conseguia desenvolver suas habilidades para contar e medir, e ajudar em tarefas. Depois disso, voltou para casa dos seus pais.

Em 1947, ele quase morreu em decorrência de um episódio de artrite reumatóide juvenil, a qual foi tratado com sais de ouro (o que levou algumas pessoas a crerem na teoria de que o autismo poderia ser causado por fatores externos, como o envenenamento por mercúrio, que era considerada uma possível causa de autismo). Apesar de algumas características se estenderem para a vida adulta, Donald Triplett frequentou o colégio local, se formou bacharel em francês, se formou em Matemática, aprendeu a jogar golfe e a dirigir e viajou sozinho por grande parte dos Estados Unidos e outros países. De volta a sua cidade natal, trabalhou no banco de sua família.

Essa não teria sido sua realidade se Triplett tivesse permanecido internado ao longo dos anos, pois além de não ser um diagnóstico conhecido até então, o acolhimento da família, o incentivo e as inúmeras chances e oportunidades para se desenvolver foram o que levaram Donald a uma vida plena, onde seu comportamento não foi limitado e seu jeito de pensar foi plenamente compreendido e aceito, apesar de diferente.

O Transtorno do Espectro Autista

Devido aos diversos estágios do Distúrbio, o Autismo teve sua nomenclatura alterada e passou a ser conhecido por Transtorno do Espectro Autista. O TEA descreve uma condição neurológica complexa para o desenvolvimento do portador, que é associada a um forte componente genético e que se manifesta precocemente em crianças de um a três anos, através de desafios persistentes na comunicação social, comportamentos sensoriais e motores repetitivos, padrões restritivos nas rotinas e comportamentos. Capaz de comprometer a socialização da criança, a causa do TEA ainda é um mistério para os profissionais da saúde. Embora seja considerado um Transtorno que acompanha seu portador ao longo da vida, o grau de impacto ao longo dos anos varia entre os indivíduos.

Características de um neuro divergente

Franciele Costa, psicóloga formada em 2018, atualmente pós-graduanda em Análise do Comportamento Aplicado em Autismo, concedeu em uma entrevista a opinião técnica e profissional acerca do Transtorno do Espectro Autista. “O autismo é uma condição, como é a cor dos olhos, a cor do cabelo. Geralmente a família procura porque vê que a criança não está se desenvolvendo dentro do esperado pelos padrões científicos para sua faixa etária. Não comparamos as crianças mas espera-se que a criança fale, ande, engatinhe a partir de uma determinada idade. É algo que a ciência espera dentro do desenvolvimento humano. Então, essa é a comparação. Jamais entre uma criança e a outra. E aí os pais nos procuram para uma avaliação, na minha área utilizo algumas escalas para poder avaliar. O que aquela criança faz ou não dentro do esperado pra sua idade? Avaliam-se as principais características [do autismo].”

Algumas características citadas pela psicóloga são:
O contato visual;
A resposta aos estímulos;
Se entende a funcionalidade dos brinquedos;
Oscilações de humor;
Como a criança recebe a quebra na rotina;
Atrasos motores;
Atrasos na fala e na verbalização;
Interesses restritos.

Franciele aponta que, anteriormente, usava-se o termo nível ou grau de autismo, e explica que de acordo com o CID 11, não se olha mais para o autismo leve, moderado ou grave e diz que esses termos foram substituídos. “Existem crianças autistas que apesar de terem o cognitivo bom, tem dificuldades na verbalização, então isso é chamado hoje de Autismo com Atraso de Desenvolvimento de Linguagem. Outro exemplo são as crianças que atendem aos comandos e se dão bem sozinhas, porque se você colocar ela em um grupo com outras crianças ela não vai se desenvolver, ali o principal fator é a Interação Social. O CID 11 não vai olhar para os graus, até porque a criança autista nunca vai sair de dentro do espectro, mas dentro do espectro tem sempre uma característica mais gritante que precisa de desenvolvimento, e que precisa de uma atenção maior. Ao mesmo tempo que justifica, específica, porque tudo tem que ser visto com relevância para podermos tratar", conta a profissional.

Uma vida atípica desde o nascimento

João Vitor tem 9 anos de idade e é portador do Transtorno do Espectro Autista. Quem conta a história de sua vida é sua mãe, Marisa, que relata de maneira íntima e pessoal todas as experiências de ser mãe de uma criança autista.

“O João Vitor nasceu sem diagnóstico nenhum, mesmo porque não sai assim; no nascimento não tem como descobrir, né? Conforme foi passando o tempo, desde que ele era bem bebezinho sempre tinha alguma coisinha que ele era diferente dos outros bebês, todo mundo falava: 'não pode ficar fazendo comparativo, porque cada criança tem o seu tempo, cada ser humano é diferente um do outro', e é verdade, mas querendo ou não a gente como mãe acaba fazendo os comparativos.

Conforme ele foi chegando perto de um ano, ele tinha um choro constante sem motivo aparente, não tinham um uma situação que tivesse acontecido para aquele choro constante e ele tinha. A forma de se acalmar também era diferente, porque normalmente quando um bebê chora muito, ele se acalma no colo, dando uma mamadeira, uma chupeta ou alguma coisa assim, ele já não.
Também não fazia muita questão de ficar no colo, ter aquele aconchego para poder se acalmar. Ele se acalmava se deitasse ele na cama e deixasse ele livre, sem muita coisa. Isso já era um sinal da hipersensibilidade da pele, ele tinha um choro tão constante que a gente não sabia o que era e entrava naquela questão: 'será que tem alguma coisa incomodando?' Algum fio de cabelo que pega na roupa, incomoda ou coça a criança, aí eu tirava a roupa, deixava ele só de fraldinha e deixava ele na cama sem ficar pegando, sem ficar abraçando e ele ia se acalmando sozinho, o que era muito diferente.

Normalmente as crianças se acalmam no afago do colo do pai, da mãe, e eu também percebia muito que ele não via muita diferença entre o meu colo, o colo do Welton [pai do João Vitor] ou até mesmo o colo de outra pessoa. Outra característica também era o atender pelo nome, se você fizesse barulho e batesse palma, cantasse uma musiquinha, ele ia em direção àquilo. Mas se você ficasse 'João Vitor, João Vitor, João Vitor' ele não estava nem aí, porque já era um sinal do autismo, esses foram os primeiros sinais que eu fui percebendo.”


O estereótipo da existência de um “mundo autista

“Eu já sabia que ele era diferente mas não vinha o autismo na minha cabeça porque eu não conhecia esse tipo de autismo. O autismo pra mim era severo que a criança tem um olhar perdido, o balançar do corpo, o balançar das mãos e fica parado naquele 'mundo autista' que o povo fala, tem essa expressão que a criança está 'no mundo dele', né? Mas não existe isso, o mundo do autista é o mundo de todo mundo, mas usava-se muito essa expressão, 'Ah, tá no mundo dele'.

E eu tinha essa visão de autistas só dos casos severos que não falavam, que não não se comunicavam, que ficavam com o olhar parado ou só olhando pra baixo ou só olhando pra cima. Então eu nem imaginava que podia ser autismo, mas eu já sabia que ele tinha alguma diferença e eu não sabia o que era, qual era o nome, se era uma deficiência, se era uma doença, se era a personalidade mas eu sentia e via que era diferente.”


A primeira desconfiança

"Aí, com um ano e meio, um ano e oito meses isso já estava muito evidente. Eu falei para a pediatra que ele estava muito nervoso, ela mesma percebeu porque ele não aceitava ser examinado e era muito exagerado para uma criança daquela idade, a irritabilidade quando pegavam nele e ela também estranhava, mas ela achava que era manha. Foi aí que eu perguntei se ele não tinha algum problema neurológico, por conta do nervoso, e ela me deu um encaminhamento para o neuropediatra.

Cheguei no  neuropediatra, falei essas coisas, mas eu não supus o autismo porque eu não sabia que existiam outros graus de autismo leve ou moderado, eu só tinha a visão aquele [autismo severo]. O médico passou um calmante natural, fitoterápico a base da folha do maracujá e pediu exames neurológicos, elétro, ressonância... Aquele xarope de maracujá não adiantava de nada, o menino continuava a mesma coisa, só fazia ânsia nele porque era um xarope líquido, escuro, com um gosto forte, e ele não aceitava. Já nessa época começou a entrar a seletividade que ele tem e, além da hipersensibilidade da pele, ele tem a seletividade alimentar, então ele não conseguia tomar; era um sacrifício para tomar o remédio que não fazia diferença nenhuma.”


A descoberta das características do Transtorno

“Nesse meio tempo que estávamos fazendo os exames, por acaso, eu assisti uma reportagem do Fantástico sobre o autismo; acho que era até uma série que estava na internet, alguém compartilhou o link do Youtube e eu acabei ficando curiosa e assisti. E tinha um bebê com características muito parecidas com essas que eu observava no João e ele tinha um diagnóstico fechado de autismo. Isso já me pegou, pensei 'ele tem características, ele tem, ele tem, ele tem [autismo]'.

Na segunda consulta com o neuro eu já cheguei falando isso. Aí o neuro falou assim: 'olha, pode ser que seja mesmo, não vou dizer que não, os exames dele estão normais'. Por quê? Porque realmente autismo não é diagnosticado em exames, é uma avaliação multidisciplinar que tem que ser feita com profissionais da área de psicologia, neurologia que vão avaliar a criança, cada um na sua área e vai entrar num consenso, porque não tem um exame de sangue que possa fechar o diagnóstico. Porque o autismo não é uma doença, na verdade é um transtorno que foi enquadrado em algumas deficiências psicomotoras e mentais justamente pelo comportamento autista, a pessoa acaba tendo um déficit em algumas áreas.”


“Diagnóstico de autismo é só depois dos três anos de idade”

“O neuro que poderia ser e que não tinha como avaliar porque ele ainda estava fazendo 2 anos, disse que certeza mesmo era apenas com 3 anos porque se fosse os maiores sinais ainda iriam aparecer, não tinha como fechar um laudo. Íamos tratando os sintomas que iam aparecendo, se ele ficar muito nervoso, pode dar um calmantezinho, continuar com fitoterápico.

Eu conheço uma mãe que tem um filho com síndrome de Down e ele estudava numa escola especial que chama Apraespi - Associação de Prevenção, Atendimento Especializado e Inclusão da Pessoa com Deficiência de Ribeirão Pires, lá tem todos os profissionais e eles faziam avaliação não só de quem ia estudar lá, se tivesse uma guia, um pedido médico, eles faziam avaliação com a equipe  disciplinar.

Aí no dia do aniversário de dois anos do João , eu estava conversando com essa mãe sobre estar desconfiando [que o João fosse autista] e ela me explicou que já tinha visto crianças muito mais novas terem o laudo fechado de autismo, provavelmente deveria ser o autismo mais severo, mas eu fui lá, conversei, levei o pedido médico e eles fizeram uma uma avaliação multidisciplinar.”


A avaliação multidisciplinar

“O meu psicológico já estava afetado porque, para mim, ele já era mesmo e eu tentava saber, quando ele fazia algo que não era comum para crianças fazerem eu pensava 'É autista mesmo', dali a pouco, ele agia de forma comum e eu pensava que não. É um sofrimento, é um luto ali. É tudo muito novo, você não sabe, você não conhece.

E a equipe multidisciplinar, psicóloga, fonoaudióloga, neurologista, psicopedagoga, no caso dele não tinha necessidade de fisioterapia, porque ele já andava mas a fisio também avaliou, porque tem a questão da dificuldade motora, da mão, da escrita, a coordenação fina dele também não é muito boa, é bem atrasada a coordenação da escrita que tem que ter. Então passou por uma equipe bem grande de médicos e terapeutas, cada um fez seu relatório e aí fechou. Todos os relatórios vieram com a opinião de cada profissional de que sim, se tratava de autismo. Todos concordaram.

Então eu levei para esse outro médico que tinha dito que o diagnóstico não seria fechado antes de três anos, o João tinha dois anos e meio.”


Coração de Mãe

"Agora vem o luto para o qual você estava se preparando, você fica sem saber nada, se a criança vai falar ou não... e o medo é constante, acordar sem saber se vai ter uma novidade ou se não vai. É um dia após o outro. Às vezes os dias parecem sempre iguais e não muda nada. Você não sabe para onde você vai correr, qual é o tratamento, qual o remédio. Aí vem aquela questão, não é doença, não tem cura, não tem remédio específico. Tratamos os sintomas, o nervoso, a estereotipia (manias como andar na ponta dos pés, balançar as mãos ou dar pulinhos), tentamos aliviar a tensão, melhorar a concentração e esses são os remédios.
É um balde de água fria na sua cabeça, os meus planos como mãe, os sonhos, a idealização, porque eu amo meu filho, mas querendo ou não, todo mundo idealiza a família da margarina, né? Aquela velha história, o filho que vai para o primeiro dia de aula, que vai no parquinho, que vai interagir e aquilo tudo. Você vai descobrir que não vai ter.

Você começa a ler, o que você lê não é animador, ou ao contrário é animador demais e irreal, você vê que isso não acontece com seu filho, como por exemplo os relatos de autistas que são supergênios, resolvem questões matemáticas, de faculdade, da NASA. Crianças autistas que falam dez línguas sem nem ter ido à escola ou que sabem ler e escrever corretamente e cria essas falsas expectativas porque você vai lendo sobre isso e pensa que pode acontecer com seu filho, mas são casos raros. A mídia estraga as coisas, maquia, desenha "O Bom Doutor" da série, romantizando tudo. Isso existe, mas é comum não ser.

Então eu fui atrás de tratamento, ele começou primeiro na psicóloga, fez um bom tempo, foi para escolinha por causa da socialização, ele ainda não falava, ele pegava na mão da gente para levar onde ele queria, se ele queria alguma coisa, ele demorou desfraldar [com três anos e meio]".


As dificuldades de socialização entre crianças neurotípicas e neurodivergentes

"Quando fomos para a primeira escolinha, uma escola comum, municipal, foi difícil. Eu não tenho boas experiências. Eu falo da minha experiência, não no geral, a escola comum não foi boa. Para mim, inclusão só existe no papel, lá na lei da inclusão, da criança especial, seja autista ou independente da deficiência.

Ele chorava na entrada, eu escutava os gritos dele lá dentro e depois a professora falava que ele acalmava, mas quando vi o que significava o "se acalmar para ela", ele estava num canto sozinho aos três aninhos, ficava o tempo todo quieto, procurava algum foco pra ele ficar olhando. Isso o prejudicou, teve efeito rebote, fez efeito contrário. Ele se fechou na escola.

A primeira professora trazia materiais adaptados para ele, já que ele não falava, como plaquinhas para mostrar e ensinar as cores. Ela até tentava, mas porque ela tinha interesse e fazia especialização em educação especial, não porque era lei ou porque a escola pedia. Era algo dela, mas tinha o restante da sala pra ela dar atenção, então não conseguia desenvolver esse trabalho. A diretora da escola podava muito ela, porque até ele se acalmar e dar abertura para ela [professora], levava tempo. Eu queria levá-lo até a sala e a diretora não deixava, por dizer que ele tinha que ser tratado igualmente como todas as crianças. O tratamento igual nem sempre é um tratamento justo. Ela não queria fazer essa diferença, não tinha essa empatia.

Outra questão era a comida, a escola pública tem o próprio cardápio e não pode levar alimento de fora. Entramos nesse impasse, nessa briga, porque ele não tem restrição alimentar, ele tem seletividade. O que ele faz? Ele escolhe aquele X, Y alimento e pronto, todos os outros eles não come ele só bebe no copo dele e aí não queriam que mandasse o copo dele, porque tinha que se adaptar a escola e tinha que ser tratado igual.

No segundo ano foi pior, ele foi se perdendo, mesmo a professora sendo mãe de um autista. O filho dela não era como o meu, mas ela achava que entendia tudo sobre o assunto. Quando eu ia nas reuniões de escola, todas as crianças tinham pastas com desenhos, letrinhas, números... ele não tinha nada na pasta dele. Nada.

E essa professora, cujo filho estava sendo educado numa escola especial, dizia que eu mimava muito o João Vitor, que autismo não era assim, mas naquela escola não havia inclusão, ou respeito. E bem quando estava difícil na escola comum, a escola em que fizemos a avaliação multidisciplinar abriu uma vaga para o João estudar lá. Já tem quatro anos que ele está matriculado nessa escola de educação especial. Ele não chora para entrar, leva o lanche dele, não fica sozinho ou no canto dele. Lá eu não tive isso".


O desafio

"Viver com o autismo é desafio. O autismo tem o significado científico dele, o resumo, o transtorno, o desenvolvimento, a dificuldade de socialização, né? Mas para mim é um desafio, um dia após o outro.

Ele é diferente, sair da rotina o estressa, se ele não aceita algo, por exemplo, se tem um programa de televisão e a gente nem sabe o motivo, mas ele não quer, ele entra numa crise, as crises nervosas são difíceis vem em qualquer lugar e as pessoas pensam que é birra, e parece mesmo, parece uma birra grande, parece uma teimosia, parece uma malcriação, mas não é.

Eles não sabem lidar. Falam que autista não tem sentimento, mas eles tem e muito aflorados e esse é o grande problema. Os sentimentos dele, as emoções deles são muito afloradas e eles não sabem controlar a frustração, eles não sabem lidar com a tristeza, eles não sabem lidar com a dor, até talvez  o amor, o gostar. Daí vem as terapias, os remédios, o cuidado.

É pesado, isso daí não é fácil. Eu achava lindo o filme que retratava personagens autista mas não é nada romântico, não é bonito, eles não são super pessoas, eles não são gênios, sabe? Eles sofrem, essa que é a pior parte são as emoções, são os sentimentos, são os hormônios, nós que que não temos transtorno nenhum as vezes 'damos uma surtada', imagina uma criança autista lidando com com esse dia ruim. a frustração ou o tédio da pandemia, todos os dias a mesma coisa, eles tem uma energia que precisa ser gasta, é legal por no esporte, o João Vitor não gosta, é legal pôr pra correr, ele também não gosta, ele é de preguiça, ele gosta de ficar só ali no celular e não é bom, não é bom porque tudo no celular é rápido demais e ele pensa que o mundo é assim, que é tudo com um clique, isso causa uma frustração e a sua frustração causa uma crise nervosa e esse romantismo todo que a mídia tá trazendo não é legal. Aquilo atinge toda a família, todo mundo que está em volta sofre junto. Então não é nada romântico, não é nada bonito."

As conquistas

“Tem dia que é mais calmo, que é tranquilo, que é feliz, né? Ele teve muitas conquistas. A fala dele que veio com cinco anos, a maioria dos especialistas já tinham desanimado a gente de tentar a comunicação que fosse verbal e veio a fala, as conquistas de saber, de decorar tudo, letras, cores, palavrinhas, palavras em inglês. Tudo que ele vê, ele decora. As contas matemáticas que ele faz na cabeça  que a gente não sabe como ele faz, mas ele sabe fazer conta de dobro, fica me perguntando o dobro. Como ele decora, então tem essa questão do esquecer mas ele fica falando o dobro dos números até a gente não acompanhar mais o raciocínio, e estar correto. Como ele tem essa lógica na cabeça dele? Eu não sei, ninguém ensinou, ele simplesmente sabe, é uma questão lógica que ele tem.

Tem essa parte da conquista, tem as partes engraçadas que ele entende tudo literalmente.  Você não pode ficar inventando 'historinha da carochinha' pra ele, né? E nem muita fantasia, porque se você ensinar errado ele vai fazer errado para o resto da vida e ele vai achar que é correto, porque ele não entende o sentido figurado das coisas, então se você falar pra ele: "Faz isso que você vai ver o que acontece", ele vai fazer. É tudo muito literário, é às vezes um pouco engraçado, mas às vezes é frustrante, porque a gente tem que se podar para falar de situações no sentido figurado. Eles são muito sinceros, quando eles gostam eles gostam, se eles não gostam vocês já sabem porque ele vai demonstrar que ele não gosta mesmo. Não é aquela criança que você faz troca, que você faz jogo, que você faz suborna. Não tem suborno com ele, não tem troca. É o que é ou não, entendeu? Ele gosta e ele vai ou não, ele não gosta, ele não quer. Convencê-lo é trabalhoso.”


Dia a dia

“A rotina dele hoje está limitada a ir para a escola. Durante a pandemia eu parei todas as terapias e não consegui voltar ainda. A equoterapia era algo que realmente o acalmava, aquela uma hora ali interagindo com os cavalos, nem sempre passeando, mas cuidando, ela algo que deixava o João ‘zen’. Foi a terapia que mais deu certo para ele, que fica muito estressado quando sai da rotina e ultimamente ele está muito assim. Por quê? Porque ele não está tendo uma rotina, uma agenda, e isso é muito importante para ele. João perde totalmente o foco, perde totalmente o equilíbrio quando ocorrem mudanças.

Com a volta das aulas híbridas ano passado, ele começou a ter muitas oscilações, ir à escola duas vezes por semana, depois todos os dias, depois de um mês vieram as férias. Ele não entende essa questão de pandemia por mais que a gente explique do nosso jeito, lúdico, ele não entende totalmente, mesmo que que entenda ali na hora da explicação, quando vem a frustração de estar sem fazer nada, sem  rotina, sem nada pra fazer, ele não vai ficar lembrando da pandemia. Isso tem prejudicado muito, mas a rotina dele é essa, ele vai pra escola, ele volta, ele gosta de ficar no celular, ele gosta controlar a televisão, ele não gosta que as coisas sejam tiradas ou mudadas de lugar, e quando são mudadas, aquilo o incomoda e tem que explicar o porquê mudou.”


Desinformação social leva ao preconceito de frases como “Essa criança precisa de limites!”

"Tudo parece uma grande birra para quem não entende que ele é autista. O autismo não aparece no rostinho dele", conta Marisa ao falar sobre alguns comportamentos de João Vitor. Ao fim do relato, Marisa foi perguntada sobre preconceitos, negligências e desinformação que poderiam ter passado durante a vida de João. Assim, ela conta que para ela, desde os julgamentos dentro da família e frases que insinuavam que ela estava “procurando defeitos” no filho, recebeu olhares em shoppings, supermercados e o mais marcante é quando as pessoas não querem entender mesmo depois de serem informadas sobre a condição do filho. “Na escola diziam que eu estava super-protegendo, quando eu só queria que meu filho tivesse uma ponte para socializar, as pessoas achavam que meu filho era uma criança birrenta, mimada, mal-criada”, conta. “A frase que eu mais odeio é quando dizem ‘essa criança precisa de limites!’”. 

A psicóloga Franciele, quando perguntada se falta informação acerca do autismo em nosso país, responde que não falta informação, mas sobra desinteresse. “Quando falamos em desinformação, ela não parte apenas da sociedade em si, começa com quem atua em áreas de saúde e educação e não buscam o conhecimento, o que acaba dificultando essa luta. A questão não é falta de conteúdo, a própria ciência não consegue fechar esse ciclo. A cada momento surgem novas possibilidades de condicionar ao autismo, então a ciência  não consegue finalizar esse estudo. Existe muita informação de graça, que qualquer pessoa consegue ter, assim como tem muita informação acessível, cursinhos que qualquer pessoa, até os próprios pais e familiares conseguem tem acesso sem precisar de uma formação acadêmica. O que está faltando é o  interesse das pessoas em conhecer, em ter conhecimento, sabedoria para saber lidar. Não adianta eu querer mudar uma pessoa se ela não quer mudar. Ela não vai mudar porque eu quero, ela vai mudar a partir do momento em que ela lidar de frente com a mesma situação e ela ter que conhecer, ela ter que estudar pra ela poder lidar com aquilo. Então na sociedade em geral falta sim, mas também tem muita informação que poderiam sim ser supridas pelos materiais que já tem disponíveis, basta o ser humano ter interesse. Se o pediatra quiser, ele se informa, ele estuda, ele tem interesse. O mercado é falho em algumas questões, mas falta muito, muito empenho do ser humano” relata.

Franciele discorre também acerca da negligência dentro do TEA. Segundo a profissional, a primeira negligência com crianças autistas pode acontecer dentro que casa, com os próprios pais, e mais tarde com pediatras que ao tentar “não apressar” essas crianças, podem não perceber sinais de que ali há um Transtorno do Espectro Autista. E, talvez, mesmo que os pais percebam alguma diferença, acabam por confiar e aceitar essa avaliação rasa, mas que acalma o coração dos pais. “Os pais, os profissionais, independente, onde essa criança estiver inserida, precisa existir o mínimo do conhecimento, saber o que é o autismo, saber identificar uma birra e saber identificar uma crise, e saber diferenciar uma da outra. Tudo isso com o auxílio dos terapeutas e da equipe que iram acompanhar essa criança”. 

Além da negligência dos pais, pode ocorrer a negligência dos nossos governantes, a falta de interesse em especializar bons professores e profissionais da saúde, que, por sua vez, não buscam o conhecimento para si mesmos, uma vez que seus governantes não incentivam essa cultura. “A negligência está em todos os cantos, uma das maiores que vejo hoje é quando tratam o autismo como um mercado. Muitas crianças estão perdendo de se desenvolver por conta de profissionais que frisam o dinheiro e realizam uma abordagem que não é apta para atender autistas. Pessoas aptas para atender autismo, profissionais aptos para atender autismo, são psicólogos com a linha de abordagem comportamental ou  cognitiva comportamental. É a indicada. O restante, se tem uma outra abordagem, se acredita numa outra linha de tratamento é descartado.”

Ensinar a respeitar

Ensinar a respeitar, ter mais empatia, olhar mais com compaixão e se colocar mais no lugar do outro é uma coisa difícil em culturas preconceituosas. É um trabalho de desconstruir e reconstruir. Pessoas com TEA precisam ter seus direitos respeitados e têm garantidos os mesmos direitos que todas as pessoas pela Constituição Federal de 1988. Pessoas com TEA são protegidas desde o Estatuto da Criança e Adolescente (Lei 8.069/90) ao Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003). Pessoas com TEA podem ser diagnosticadas, acompanhadas, cuidadas e valem a pena. “O que vale mais a pena os pais abraçarem essa causa e lutarem pelo seu filho do que lutar querendo obrigar as pessoas a aceitar o que está fora da realidade delas, né? Então, faça pelo seu filho, não querendo mudar a opinião das pessoas. Quando a gente muda essa visão a gente para de sofrer. Enquanto eu fico me importando com o que o outro pensa, eu acabo me prendendo a coisas desnecessárias e a sentimentos desnecessários. Se eu me importo com o olhar que o outro fez no meu filho eu esqueço de registrar que meu filho está super feliz no balanço, balançando mesmo que seja de ponta cabeça, né?! E eu me frustro com aquele olhar do desconhecido e esqueço de olhar os olhos do conhecido que é o meu filho pela alegria que ele está vivendo naquele momento. Então, a gente precisa às vezes apreciar aquilo que é necessário. E não se importar com aquilo que não faz parte da nossa vida e não nos agrega em nada” termina Franciele Costa.

No livro, O Pequeno Príncipe está a seguinte frase “O essencial é invisível aos olhos” e no tocante ao coração de mães e pais de crianças autistas está aquilo que não se pode ver, tocar, ou ensinar: apesar de suas regras e rotinas, conviver com o autismo é sentir o amor mais sincero e mais puro e se entregar por completo as aventuras de uma vida atípica.


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