Gilberto Gonçalves da Silva (65), mais conhecido pelo seu nome artístico Zulu de Arrebatá, é um cantor e compositor nascido e criado em São Miguel Paulista, bairro do extremo leste de São Paulo. Com mais de 40 anos de carreira e uma bagagem cheia de histórias para contar, o artista que também é formado em História pela Uniesp, já chegou a lecionar durante um ano, porém decidiu seguir o caminho que conquistou seu coração ainda criança: a música.
Por vir de um contexto religioso, Zulu teve contato com a música desde pequeno graças às liturgias que aconteciam na igreja. Em casa, a televisão também lhe apresentou aquela que seria a carreira de sua vida, e ali ele começava a colecionar referências que podem ser notadas em sua musicalidade até hoje.
Nos anos 1960 programas como Divino Maravilhoso e Festival Record eram a vitrine que mostrava a música brasileira em sua essência. “Foi muito impactante para mim, principalmente a figura de Gilberto Gil, com aquele cabelo black power, barbudo e cantando ‘Domingo no Parque’. Aquela imagem ficou na minha cabeça”.
Ainda na adolescência, meados de 1968, cantou pela primeira vez frente a uma plateia. Era sua formatura na escola, um momento que continua vivo na memória de Zulu. “Estávamos de shorts azul curtinho, que fazia parte do uniforme, uma camisa branca e suspensórios”. O repertório escolhido na ocasião foi a música “O Tempo Vai Apagar” de Roberto Carlos, a qual ele pretende regravar futuramente.
No mesmo ano, conheceu um rapaz chamado Edvaldo Santana, que hoje é reconhecido como cantor e compositor e já fez parcerias com grandes nomes como Tom Zé, Itamar Assumpção, Paulo Leminski. Tanto Edvaldo como Zulu foram criados na Vila Rosária, em São Miguel Paulista, e se juntaram com outros amigos para formar uma equipe, que cantava pelo bairro em apresentações intimistas e pequenas inicialmente. Esse grupo foi batizado de Caaxió.
Essas experiências e as influências que estavam ao seu redor fizeram o garoto até então com 19 anos decidir pelo meio artístico. Seus pais não o impediram, mas era notório a insatisfação. “Ficava aquela coisa dúbia: não gostavam por que achavam que seria uma coisa difícil, que não iria dar em nada e ao mesmo tempo quando eu aparecia nos meios de comunicação, seja rádio ou televisão, e reportagens nas revistas da época, vinha aquela felicidade em falar que o filho era artista. Então eu achava tudo isso uma contradição", declara Zulu.
Posteriormente o grupo começou a participar de festivais estudantis pela região até que em 1973 eles decidiram tentar contrato com alguma gravadora. A procura foi intensa, mas conseguiram fechar negócio com sua primeira gravadora, a Top Tape, com essa conquista, os jovens foram aconselhados a mudar de nome, passando a se apresentar a partir daquele momento como grupo “Matéria Prima”. Porém, a permanência nessa produtora não durou como imaginavam. “Fizemos um contrato, ficamos 6 meses ali e começamos a entender que o disco não ia rolar”.
Apesar dessa primeira decepção, muitos contatos dentro dessa indústria também foram feitos, o que proporcionou oportunidades de crescimento para a banda. Eles puderam gravar a trilha sonora do programa “Bacará 76”, onde também estrelou o saudoso comediante brasileiro, Ronald Golias. "Recebemos aí o primeiro cachê como profissionais da música e foi um cachê bom”.
Mais tarde, em 1975, o grupo já estava em outra gravadora chamada Chantecler, subsidiária da Continental, e repercutiram bastante com a música “Maria Gasolina”, composição de Edvaldo Santana e Fernando Teles. A faixa foi destaque do primeiro álbum, que assim como o grupo, também levou o nome de “Matéria Prima”. Essa música também fez parte do programa Fantástico, da TV Globo.
O sucesso veio, a recompensa financeira também, porém ainda era difícil a questão da sobrevivência, e ser sustentado totalmente pela sua arte era um sonho distante. Além disso, trabalhando como coletivo, Zulu diz que algumas divergências surgiam e às vezes era complicado chegar em um consenso. Então, em 1977, ele decide sair do grupo, mas foi um desligamento amigável, sem nenhuma situação mal resolvida.
Ao mesmo tempo começou a trabalhar em uma empresa onde era auxiliar de laboratório e fazia teste para tintas automotivas. O salário era bom, mas dentro dele a paixão pela música e cultura nunca se apagou, pelo contrário, só cresceu. Até que em 1978, sua inquietação o fez se juntar a outros agitadores culturais do bairro de São Miguel e assim fundar o Movimento Popular de Arte (MPA).
Naquela época, o bairro já vivia uma ebulição cultural, porém, com o MPA, a população começou a ser apresentada de forma mais organizada às produções artísticas locais que existiam, através de varais de poesia, exposições de arte e de fotografia, shows musicais. Foi um passo muito importante para o fomento de ações culturais em São Miguel.
Essa vivência no MPA acrescentou positivamente na própria arte de Zulu, e segundo ele, toda essa bagagem o livrou de muitas enrascadas em sala de aula, quando foi professor de História. E suas composições carregam justamente esse seu perfil observador, que não desperdiça os momentos vividos por ele ou por aqueles que estão ao seu redor. Sempre leva consigo uma caneta e um pedaço de papel para anotar eventuais ideias. E acha inspiração em tudo que vê, até mesmo séries e filmes.
Uma de suas composições que exemplifica isso é “Pro Mundo Ver São Miguel”, uma das faixas de seu primeiro álbum solo chamado “Amor Urbano'', projeto esse que levou quase três anos para ser feito de maneira independente. “Eu faço aquilo que sinto, o que eu ouço, o que eu vejo e vou escrevendo. Às vezes acaba sendo até uma crônica e acho que ‘Pro Mundo Ver São Miguel' acaba sendo isso, não sei se dentro de um padrão de se escrever crônica, mas acho que é”.
E claro que outros artistas também se tornam inspiração no seu processo criativo. Desde músicos que tocam Bossa Nova, passando pelo Rap, pelo Jazz e vários outros ritmos. Essa mistura pode ser percebida nas músicas de Zulu, que segundo ele, é fruto da construção étnica do nosso país. “No meu canto, em algum momento, uma boa parte dessa miscigenação cultural está contida de um jeito ou de outro. Então eu costumo falar uma coisa: para não dizer que sou MPB, digo que canto música brasileira porque é mais abrangente”.
No que se refere a instrumentos, seu fiel companheiro é o violão, no passado chegou a tomar aulas mas muito do que sabe é de forma autônoma. Toda essa identidade musical única faz jus ao seu nome artístico "Zulu de Arrebatá", que carrega um significado bem interessante. A primeira vez que ele ouviu o termo "zulu" foi em uma viagem de fim de semana, por ser o único garoto negro, alguns meninos o chamaram assim.
Ele não entendia a princípio e ficava bravo pela maneira que faziam esse nome soar como algo ofensivo, mas sabe hoje que se trata de um povo africano, reconhecidos por serem guerreiros excelentes. Já o complemento "arrebatá" vem do adjetivo "arrebatador", significando algo que cativa, que arranca sorrisos e foi cunhado por um amigo em um dos ensaios do grupo, no início do Caaxió. "Eu costumo definir hoje o seguinte: é Zulu de Arrebatá porque é o guerreiro que encanta", completa o artista.
E realmente faz todo sentido visto que muitas batalhas foram travadas para a realização do sonho de produzir música de qualidade. A começar no primeiro álbum, "Amor Urbano" que nasceu em 2005 depois de muito investimento financeiro e energia criativa. E só depois de 14 anos, Zulu lançou outro trabalho, dessa vez um EP com cinco faixas, o “Cena de Cinema”, feito em 2019.
Por conta das tecnologias, Zulu não vê mais a necessidade de fazer álbuns extensos, e quer investir futuramente em um vídeo clipe e impulsionar suas redes socias. Nesse ano ele realizou uma curta temporada de quatro dias, na Sede CTI Teatro Baile, na Vila Ré, em São Paulo. com participação de músicos convidados.
Agora pretende ficar um pouco recluso até que a situação atual com o Covid-19 melhore. "Quando eu termino um trabalho penso que é aquilo que me deixa satisfeito, porque eu deixo tudo para acreditar naquele projeto. A minha verdade está ali".
Sua trajetória na música não é linear e ele já constatou que o caminho está recheado de surpresas, algumas boas outras ruins. Já trabalhou com diversas atividades, e em um momento de desemprego, a vida lhe presenteou com um "bico" um tanto quanto inesperado, fazendo o músico se tornar segurança por um dia do Nelson Mandela, quando a personalidade veio para o Brasil em 1991. Viu? É muita história, que renderia fácil um livro bem recheado.
Uma coisa é certa, não importa o que aconteça, desistir de fazer música não é uma opção para Zulu. "Eu quero encantar as pessoas, trazer uma leveza. Procuro fazer da minha música um instrumento de libertação (...) Eu ainda resisto, não sei por quê, bom, é porque eu gosto muito. Eu sobrevivo, eu não vivo de arte. E para mim, não tem sentido passar por esse planeta aqui e não construir a sua história".