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28/02/2022 às 21h38min - Atualizada em 28/02/2022 às 19h51min

Aporofobia: a rejeição aos mais vulneráveis

Todos os cidadãos de um país são importantes, entretanto, muitos são invisibilizados pelo Estado e pela sociedade. Os pobres, moradores em situação de rua, imigrantes e refugiados sofrem, diariamente, com a rejeição e o descaso da sociedade, logo, é importante entender que essa aversão tem um nome.

Luiza Arlindo - labdicasjornalismo.com
No dia 19 de janeiro o fotógrafo René Robert morreu de hipotermia na região da Praça da República, em Paris, após desmaiar e ser ignorado pela multidão durante nove horas. Somente, na manhã seguinte, um morador em situação de rua o encontrou e chamou os bombeiros, mas, infelizmente, já era tarde. O caso chamou atenção por conta da indiferença das pessoas ao vê-lo caído no chão. Em uma entrevista ao "El País" o amigo de René Robert, Michel Mompontet disse ao jornal que "ao menos se aprenda alguma coisa com esta morte. Quando uma pessoa está caída no chão, mesmo que a gente esteja com pressa, vamos ajudá-la, vamos parar".

A situação chama atenção para uma indiferença que precisa ser discutida dentro da sociedade, no caso, são as circunstâncias em que moradores em situação de rua, pobres, imigrantes e refugiados são submetidos todos os dias há muito tempo, neste caso a questão levantada é sobre a
aporofobia


A aporofobia é um neologismo cunhado, pela primeira vez, em dezembro de 1995, pela filósofa e professora emérita de Filosofia Moral e Política da Universidade de Valência, na Espanha, Adela Cortina. Em 2017, o termo foi escolhido como palavra do ano pela Fundación del Español Urgente (Fundéu BBVA) e, em seguida, incorporada ao dicionário pela Real Academia Espanhola.

O termo – que se tornou livro “Aporofobia, a Aversão ao Pobre: um Desafio Para a Democracia” - vem de duas palavras gregas: "áporos", o pobre, o desamparado, e "fobéo", que significa temer, odiar e rejeitar. Logo, da mesma forma que "xenofobia" significa "aversão ao estrangeiro", aporofobia é a aversão ao pobre pelo fato de ser pobre, é o ódio a imigrantes, refugiados e moradores em situação de rua, demonstrado através de ações ou construções – arquiteturas hostis. O principal intuito do termo é dar visibilidade a patologia social que existe no mundo que “é um atentado diário, quase invisível, contra a dignidade, o bem-estar social e o bem-estar das pessoas concretas.” (CORTINA, 2020).

Para a autora, somente a xenofobia não explica a rejeição aos refugiados políticos, aos imigrantes pobres e aos moradores em situação de rua invisibilizados, é preciso nomear para poder reconhecer e combater uma realidade social presente que não tem espaço – em uma sociedade contratual – para pessoas sem recursos.

No Brasil, o neologismo ainda não ganhou tanto espaço para discussões, como seus pilares a xenofobia e o racismo, mas é notório como o debate é necessário tendo em vista o número de pessoas que são discriminadas, ridicularizadas, violentadas e até assassinadas por não terem recursos e por fazerem parte da desigualdade no país que cresce todos os dias.

Segundo dados da Síntese de Indicadores Sociais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ao todo 52,7 milhões de pessoas vivem em situação de pobreza ou extrema pobreza.

A pobreza fica evidente dentro da democracia, que, em tese, deveria ser um governo do povo, mas, na verdade, acaba favorecendo a perpetuação das desigualdades sociais. Cidadãos que precisam do básico para sobreviver vivem em condições precárias e são ridicularizados pela elite e pela classe média.

De acordo com a professora e socióloga da 
Universidade Unilago e da E.E.Deputado Bady Bassit, Bruna Giorjiani de Arrudaassim como todas as outras pautas de grupos excluídos, oprimidos e explorados, eles – pobres, moradores em situação de rua, imigrantes e refugiados - servem para o riso, e esse riso também é a manutenção dessa exclusão já que, não acontece de uma maneira ríspida, mas de uma maneira que introjeta no imaginário e na consciência das pessoas um desprezo.”

Moradores em situação de rua

Embora o debate não sendo recorrente ainda existem pessoas que trabalham para abrir os olhos da população com campanhas que combatem a violência cometida contra os mais vulneráveis, como, por exemplo, padre Júlio Renato Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua, de São Paulo, e defensor dos direitos humanos, que, promoveu a demolição das pedras instaladas sob viadutos em São Paulo.

A medida da Prefeitura foi duramente criticada por ser vista como uma medida higienista, uma forma de retirar a população de rua do local, um processo que vem acontecendo há muito tempo.

Segundo a socióloga, Bruna Giorjiani de Arruda nós temos uma história de uma relação higienista com os pobres, que vem do século
XIX, onde as políticas que queriam tanto higienizar os centros urbanos, tirando os pobres de vista porque a pobreza é associada a sujeira, quanto da pauta eugenista que, no fim das contas, é uma higienização da raça, afinal, pensando no Brasil, a gente tem a racionalização da pobreza. Então, se livrar dos pobres está relacionado com a higienização das cidades e higienizar a raça.”

Em seu Instagram, padre Julio denuncia, diariamente, as construções que inviabilizam os locais para moradores de rua deitar ou sentar, trazendo na legenda a
aporofobia que reside em muitas cidades do país.

Do mesmo modo, o trabalho do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP), é essencial para a assistência a essa população por ser “uma unidade socioassistencial municipal que oferta serviços para pessoas em situação de rua”.

O Brasil, até então, não realiza uma contagem oficial da população em situação de rua em uma escala nacional, por conta disso, fica ainda mais difícil incluir essa população nos planejamentos governamentais, reproduzindo a invisibilidade social em relação às políticas públicas. Entretanto, o Projeto de Lei n° 4498, de 2020, apresentado pelo senador Fabiano Contarato (PT) busca determinar a inclusão da população em situação de rua no censo demográfico realizado pelo IBGE.

 

“Eu considero fundamental esse levantamento, para acolher e atender cidadãos que, de tão marginalizados, estão fora até do radar da assistência social no Brasil. Um censo que fecha os olhos para as pessoas nas ruas não consegue indicar ao país a realidade demográfica a qual se assenta. A invisibilidade nas estatísticas censitárias nacionais se choca com a percepção de que a quantidade de pessoas nessas condições aumente cada dia.” Disse Fabiano para a Rádio Senado.


O senador ainda é autor do Projeto de Lei n° 488, de 2021, que veda o emprego de técnicas de arquitetura hostil que servem para afastar os moradores em situação de rua – e outros segmentos da população - nos espaços públicos.

De acordo com dados publicados em uma nota técnica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 2020, a estimativa do número de pessoas em situação de rua, no Brasil, é de aproximadamente 221.869 evidenciando uma realidade nada animadora em relação ao progresso das políticas públicas destinadas à população de rua. 
O gráfico ainda aponta que há um aumento expressivo de 140% ao longo do período analisado.




Os imigrantes e refugiados no Brasil

O cenário se estende para os imigrantes do país que vivem em situações precárias. De acordo com dados do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), órgão vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, o Brasil acolheu, entre 2019 e 2020, 46,8 mil refugiados vindos de vários países, enquanto, entre 2011 e 2018, foram menos de 6,4 mil. No país vivem, hoje, congoleses, venezuelanos, sírios, bolivianos e haitianos entre as mais de 66 nacionalidades de pessoas que se refugiaram em solo brasileiro.

Apesar de haver legislações específicas para refugiados e imigrantes – a 
Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997, para refugiados, e a Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017, a Lei de Migração – faltam políticas públicas para essas pessoas.

Segundo Cortina, a sociedade atual é baseada na relação de troca e de ajuda mútua denominada de “sociedade contratual”. Para a autora, é visível como a recepção ao estrangeiro, que vem como turista, é sempre mais entusiasmada e acolhedora em comparação com os imigrantes e refugiados que são rejeitados, excluídos e invisibilizados.

Em uma entrevista concedida à BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC, no Hay Festival Arequipa 2020, no Peru, Adela afirma que: “não rejeitamos realmente os estrangeiros se são turistas, cantores ou atletas famosos, rejeitamos se eles são pobres, imigrantes, mendigos, sem-teto, mesmo que sejam da própria família.”  
Ainda na mesma entrevista Adela afirma que:

 

A antropologia evolutiva mostra que os seres humanos são animais recíprocos, estão dispostos a dar aos outros, mas desde que recebam algo em troca, seja da pessoa a quem deram ou de outra em seu lugar. (...), mas quando há pessoas que parecem não conseguir nos dar nada de interessante em troca, nós as excluímos desse jogo de dar e receber. Esses são os pobres, os excluídos.” 

Dito isto, é importante pensar que a aporofobia está relacionada com a reciprocidade. 

Para o Doutor em sociologia e professor adjunto da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Fernando Kulaitis a aporofobia é importante para o debate público, pois o termo é interessante por mostrar o comportamento de um número de pessoas em posições sociais que tem aversão, o ódio desses grupos, no caso, os pobres, imigrantes e refugiados, ou seja, pessoas que estão em uma posição inferiorizada na hierarquia social.”

Na perspectiva da sociologia, Fernando esclarece que os comportamentos discriminatórios, aversivos, agressivos e de ódio refletem a uma posição de poder. Então, tirando a ideia do medo – que naturaliza esses comportamentos – há essa chave interpretativa das relações de poder. Logo, tendencialmente, são pessoas ou grupos de pessoas em uma situação elevada que vão ter este tipo de comportamento por se sentirem ameaçadas, uma ameaça para sua posição social. O ódio é um efeito do que eles julgam como ameaça.”

É evidente que toda essa situação no país coloca os imigrantes e refugiados em uma situação vulnerável. Temos o costume de celebrar a diversidade, mas esquecemos de lutar por políticas de integração eficazes.

“Há Estados que têm como política a integração de imigrantes, que são as políticas de multiculturalismo. As políticas de multiculturalismo são entendidas como políticas de Estado para o acolhimento e integração.” disse Fernando.

A educação, a partir da ética, para combater a aporofobia

Toda essa situação de desigualdade, hostilidade, aversão, rejeição e discriminação pode, de acordo com Cortina, ser combatida com políticas públicas eficientes e com uma educação formal e informal voltada para à ética.

A autora acredita que a educação voltada para o ensino ético de uma nova geração seja nossa melhor forma de corrigir este sistema, para produzir uma mudança na direção de ideais igualitários.

Para a Doutora em filosofia e professora adjunta da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Lilian Cantelle a filosofia exerce um papel fundamental na construção moral e ética dos cidadãos a partir da reflexão e
autorreflexão
quanto mais a gente debate sobre o que é violência, o que é preconceito, o que discriminação, mais bases materiais nós vamos dar para as pessoas se posicionarem”.

A professora ainda reflete sobre a
aporofobia se a gente pensar que há uma discussão sobre como nós devemos nos relacionar e sobre como ela é importante, a gente não cria essa situação de excluídos. Então, quanto mais a gente reflete sobre nossas ações, a gente pode entender que menos discriminação, menos preconceito, menos exclusão a gente vai gerando.”  Ou seja, praticar a consciência moral é uma atividade de reflexão diária para entender o seu papel na sociedade.

“O que a gente pressupõe é que nosso interesse seja na democracia, e para uma (democracia) nós precisamos de seres autônomos e pensantes e só é possível com o oferecimento de conhecimento e abrindo para diálogo e, em nosso livro, todos os textos são pensados na maneira que o ensino na filosofia contribui para que a criança, já na infância, aprenda a debater. A educação precisa ser pensada com diálogo. Para discutir eu preciso considerar o outro como ser autônomo.” Disse Lilian quando perguntada sobre o livroO Ensino da Filosofia na Educação Básica”, um trabalho colaborativo entre ela, Claudiney José de Sousa e Darcísio Natal Muraro.

Todos os dias, quando vamos para o trabalho, escola ou faculdade, nos deparamos com pobres, moradores em situação de rua, imigrantes e refugiados em situação de vulnerabilidade social que sofrem com a sistêmica rejeição à pobreza e às pessoas sem recursos. Para combater a aporofobia precisamos de discussões e uma luta constante por políticas públicas eficientes que consigam dar conta das necessidades dos cidadãos que são invisibilizados pelo Estado e pela sociedade.



 
Referências

AGÊNCIA CÂMARA. Notícias de. Proposta proíbe arquitetura hostil à população de rua em áreas públicas. Agência Câmara de Notícias. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/756884-proposta-proibe-arquitetura-hostil-a-populacao-de-rua-em-areas-publicas/ Acesso em: 18 fev. 2022
CORTINA. Adela. Aporofobia, a Aversão ao Pobre: um Desafio Para a Democracia. Adela Cortina. 2020
 
Extra. Globo. Aporofobia: depois do preconceito, o ódio aos pobres toma as ruas; entenda. Extra Globo. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/brasil/aporofobia-depois-do-preconceito-odio-aos-pobres-toma-as-ruas-entenda-25316081.html. Acesso em: 15 fev. 2022

HOJE. Tribuna. Violência contra população de rua cresce, mas faltam dados oficiais. Tribuna Hoje. 2022. Disponível em: https://tribunahoje.com/noticias/cidades/2022/01/27/violencia-contra-populacao-de-rua-cresce-mas-faltam-dados-oficiais/ Acesso em: 02 fev. 2022

IPEA. Nota técnica. Estimativa da População em Situação de Rua no Brasil (Setembro de 2012 a Março de 2020). Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=35812  Acesso em: 17 fev.2022
 
NEWS. BBC. 'Não rejeitamos estrangeiros se forem turistas, cantores ou atletas famosos, rejeitamos se forem pobres'. BBC NEWS. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-54778993 Acesso em: 02 fev. 2022
 
NOTÍCIAS. Senado. Projeto prevê a inclusão da população em situação de rua no IBGE. Senado Notícias. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/09/11/projeto-preve-a-inclusao-da-populacao-em-situacao-de-rua-no-ibge. Acesso em: 17 fev. 2022


SOLIDARIEDADE. Sociedade Brasileira para a. Saiba quantas pessoas moram na rua no Brasil e o perfil dessa população. Sociedade brasileira para a solidariedade. Disponível em: https://sbsrj.org.br/moradores-de-rua-brasil/#:~:text=As%20estimativas%20do%20n%C3%BAmero%20total,publicada%20em%20Mar%C3%A7o%20de%202020. Acesso em: 02 fev. 2022.
 

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