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30/03/2022 às 14h23min - Atualizada em 30/03/2022 às 22h05min

Um retrato da situação do aborto na América Latina

A onda a favor do aborto que atravessa países latino-americanos oferece esperança em meio ao avanço do movimento de direita na região

Ana Lívia Menezes - Editado por Eduardo V. Schmitt
Mulheres se manifestaram defendendo o aborto em frente ao Palácio da Justiça da Colômbia. Foto: GETTY IMAGES
A Colômbia se tornou o sexto país da América Latina e do Caribe onde o aborto não é mais considerado crime. Apesar do movimento de direita crescente na região, percebe-se o avanço dos direitos das mulheres na América Latina, a articulação e organização de movimentos feministas em muitos países, que vêm avançando no sentido de flexibilizar suas legislações sobre o aborto.
 
Na maioria dos países latino-americanos, o aborto embora seja uma prática comum é considerado crime, por conta principalmente do conservadorismo religioso que interfere na vida de meninas e mulheres. Isso, em razão dos setores religiosos estarem presentes na esfera política e orientarem suas decisões com dogmas religiosos, adotando uma postura de controle sobre o corpo feminino e contra o aborto.

O ABORTO EM DEBATE

O aborto ainda é um assunto sensível, sendo alvo-chave de propaganda política, mobilizado nos muitos jogos políticos. O cerne da polêmica é a existência ou não do direito à vida do feto, em oposição, ao direito da mulher de tomar decisões sobre seu corpo e a gestação. Para os grupos religiosos, conhecidos como ‘’pró-vida’’, existe a defesa da proteção do feto em detrimento da mulher. Pois, segundo eles, a mulher não pode interromper a gravidez, uma vez que a vida é sagrada e inicia em sua concepção.

Em contrapartida á isso, organizações feministas que lutam pela autonomia e saúde das mulheres, argumentam que se deve priorizar a escolha e condições da mulher de levar adiante a gestação, ao invés de privilegiar questões metafísicas como o início da vida e que pertence ao campo individual. De acordo com a perspectiva feminista, o aborto é um assunto que deveria ser tratado sob a ótica da saúde pública e não se restringindo somente ao Código Penal.

MOVIMENTO ONDA VERDE

Paralelamente à crescente proliferação de grupos de direita no poder na América Latina, o movimento feminista influi em toda a região que defende a descriminalização do aborto no Código Penal.

Os movimentos de mulheres chamado "Marea Verde" ou "Onda Verde", são organizações que lutam pelo direito das mulheres decidirem sobre seus corpos, se querem ou não serem mães e qual o projeto para suas vidas. O Movimento "A Onda Verde" se tornou sinônimo da campanha por aborto legal e seguro na Argentina, tendo o primeiro grande sucesso em 2012, quando o Uruguai legalizou o aborto para todas as mulheres, permitindo a interrupção da gravidez até 12 semanas.

 (Foto: REPRODUÇÃO)



COLÔMBIA

A descriminalização do aborto nas primeiras 24 semanas de gravidez, aconteceu na Colômbia, através da Corte Constitucional, no dia 21 de fevereiro de 2022. Desde 2006, esse procedimento era permitido no país, mas apenas em casos de estupro, malformações fetais e risco à saúde da mulher. Em todos os outros casos, o procedimento era punido com até quatro anos e meio de prisão.
Por cinco votos a quatro contrários, o judiciário do país vizinho decidiu retirar do Código Penal o crime de aborto para mulheres que realizam o procedimento em até 24 semanas de gravidez.

A palavra descriminalização significa que o ato ou conduta deixou de ser crime, ou seja, determinada conduta não é mais um fato ilícito e culpável. Entretanto, descriminalizado não significa que seja legalizado. Legalizado é a conduta permitida por lei, que pode regular a prática e definir as limitações e condições dessa conduta.
 
O pedido a corte foi feito pelas companheiras da Causa Justa — uma coalização de mais de 90 organizações — que entrou com uma ação para contestar a legalidade das restrições, e agora os resultados de sua pressão e articulação podem ser comemorados. Entre seus argumentos, está o de que a criminalização alimenta a indústria clandestina do aborto. Segundo estimativas dos Médicos Sem Fronteiras, apenas 10% dos abortos na Colômbia são realizados com segurança.

PAÍSES VIZINHOS

Além da Colômbia, os países que descriminalizaram o aborto são Argentina, Cuba, Guiana, México e Uruguai. Por outro lado, há países em que o aborto é proibido integralmente, como: Honduras, El Salvador, Haiti, Nicarágua, República Dominicana e Suriname.

O primeiro país do continente a legalizar a prática foi o Uruguai, em 2012. A prática é permitida, em qualquer circunstância até a 12ª semana de gestação, ou até a 14ª em caso de estupro. Nos primeiros anos de lei, em vigor desde 2013, houve um aumento no número de abortos, enquanto que mais recentemente foi observada uma estabilidade. Em 2014, por exemplo, houve um aumento de 20% nos procedimentos realizados, mas em 2017 essa taxa já é de 1%. Além disso, também houve uma queda de cerca de 40% no índice de mortalidade materna e de 11% no número de gestações não planejadas entre mulheres de 20 a 34 anos de idade.
Dessa forma, países que descriminalizaram o aborto observaram mudanças nos números relacionados à pratica. De modo geral, os dados levantados pela OMS mostram que as taxas de aborto tendem a diminuir ao longo do tempo, graças as políticas públicas e outros investimentos em planejamento familiar e saúde reprodutiva que são implementados como parte do processo de legalização.




A Suprema Corte do México anulou a pena de prisão por interrupção voluntária da gravidez, que era aplicada em alguns estados, estabelecendo assim um precedente para todo o país.
Desde 2007 a Cidade do México já contava com legislação favorável ao aborto, o que depois se estendeu aos estados de Oaxaca, Hidalgo e Vera Cruz. O México é um país federado com 32 estados, e muitas mulheres que viviam em estados com legislações anti-aborto viajavam horas para fazer procedimentos abortivos na capital do país. A partir do dia 7 de setembro de 2021, todas as mulheres podem usufruir deste direito.
 
Na Argentina, a Lei 27.610 regulamenta o acesso ao aborto legal, seguro e gratuito até a 14ª semana de gestação, que foi sancionada em janeiro de 2021.

Já no Chile, em setembro de 2021, deputados chilenos descriminalizam o aborto até 14 semanas. A proposta visa alterar a lei do aborto desde 2017, que só o permite em três circunstâncias, sendo elas: risco de vida para a mulher durante a gravidez, apresentar uma doença congênita ou genética de natureza letal ou a gravidez ser resultado de um estupro, legislação parecida com a do Código Penal brasileiro.
 

A QUESTÃO NO BRASIL

Embora o Brasil seja um país democrático e laico, o mesmo permite diversos tipos de discriminações de gênero baseadas em valores religiosos. Nesse sentido, verifica-se que no país é difícil separar o que é de domínio religioso e o que é da esfera política. A bancada evangélica motivada por seus ideais de moral cristã, empenham-se na aprovação de leis que controlam a autonomia e o corpo da mulher. Desde a década de 1940, o Código Penal prevê uma pena de um a três anos de prisão, para mulheres que abortam

Atualmente, o aborto no país é crime, e é permitido somente que a mulher interrompa a gestação, apenas nos seguintes casos: vítimas de estupro, quando há risco de vida à mulher e anencefalia do feto (ausência ou má formação do sistema cerebral).

A criminalização do aborto no Brasil não impede que mulheres realizem o aborto de forma clandestina. Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, liderada pela antropóloga Débora Diniz, entre 2010 e 2016, uma em cada cinco brasileiras de até 40 anos já interrompeu uma gravidez ilegalmente pelo menos uma vez na vida.

A clandestinidade põe em risco a vida de milhões de mulheres, os abortos inseguros e considerados crime continuam ocorrendo, mas são, em maioria as mulheres negras, pobres e com baixa escolaridade que sofrem as sequelas deixadas por eles.

De acordo com o DataSUS, no Brasil entre 2009 e 2018, 721 mulheres morreram depois de abortarem: a cada dez, seis eram pretas ou pardas. Somente pelo Sistema Único de Saúde (SUS), foram 195 mil internações por aborto, o que representa 535 internações a cada 24 horas.

Desde o início do governo, ocorre um desmonte de políticas públicas e os ataques aos Direitos Humanos de grupos em situação de vulnerabilidade social, como as mulheres, a população negra e pobre.

Segundo levantamento do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), durante os primeiros nove meses de 2021, sete projetos de lei foram apresentados à Câmara dos Deputados para impedir ou dificultar a interrupção da gravidez mesmo nos casos em que a lei permite, por meio da criminalização, criação de impeditivos e/ou aumento de penas para abortos provocados pela mulher ou terceiros.

Outra pesquisa, realizada por Gênero e Número, mostra que 100% dos projetos de lei na Câmara dos Deputados em 2021 são contrários à interrupção da gravidez.
 
O senador Eduardo Girão apresentou o PL 5435 em dezembro de 2020, intitulado de “Estatuto da Gestante”. Este projeto propõe um auxílio financeiro para que a mãe sustente a criança nascida de um estupro, o que rovocou protestos entre ativistas e organizações feministas. A proposta que ficou conhecida como ‘’bolsa estupro’’, na perspectiva feminista não é uma forma de indenizar a vítima de estupro, mas sim uma forma de induzí-la a continuar uma gravidez traumática, além de constranger a mulher para que não aborte e permitir que o estuprador tenha acesso e direitos em relação à criança após o nascimento.
 
De acordo com a Revista QG Feminista, escrita por Emilia Senapeschi, psicóloga clínica e social,
‘’O Governo de Jair Messias Bolsonaro nunca procurou esconder o seu comprometimento com os ataques aos direitos das mulheres e da população LGBT, em especial, os direitos sexuais e reprodutivos. A agenda política anti-aborto é uma das bandeiras conservadoras mais representadas durante o atual governo. Muito antes de iniciar o mandato, o atual presidente sempre reiterou o posicionamento proibicionista e criminalizador. A indicação de Damares Alves, advogada e pastora evangélica, para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos foi muito bem planejada para que a ministra desempenhasse um papel fundamental na agenda política conservadora.’’








 

Desta forma, o aborto é um procedimento popular no país e a criminalização desse procedimento não impede a prática, na verdade condena mulheres negras e pobres à prisão ou as coloca em risco de morte.

Por isso, nasce a Campanha Nacional pela descriminalização do aborto no Brasil: ‘’Nem presa, nem morta’’. São coletivos e ativistas feministas que lutam pela interrupção da gestação induzida e voluntária realizada nas primeiras doze semanas. As organizações feministas defendem a liberdade de escolha como uma questão de saúde pública e de garantia fundamental à autonomia da mulher, além de reforçar o estado laico e a diminuição da influência religiosa na esfera política.

A luta pela legalização do aborto também exige uma maior conscientização da população acerca das questões de sexualidade e saúde do corpo da mulher. A educação sexual não se resume ao conhecimento que deveria ser fornecido nas escolas. É uma atividade multidisciplinar, com professores, psicólogos, médicos e famílias trabalhando para que esse tema não seja um tabu. Neste sentido, é essencial educar os adolescentes sobre como usar métodos contraceptivos eficazes, oferecer assistência médica gratuita e planejamento familiar para que possam decidir se querem ou não terem filhos.
 
A OMS afirma que ‘’quase todas as mortes e incapacidades por aborto poderiam ser evitadas por meio da educação sexual, uso de anticoncepcionais eficazes, fornecimento de aborto induzido seguro e legal e atendimento oportuno a complicações.’’




A descriminalização do aborto na Colômbia é mais um exemplo do avanço das nações latino-americanas na flexibilização do acesso ao aborto, sendo um exemplo para o Brasil, que lida com o crescimento do conservadorismo e suas implicações sobre a saúde sexual e reprodutiva das meninas e mulheres brasileiras. Portanto, a legalização do aborto significa garantir a cidadania das mulheres, os valores democráticos e o acesso à saúde.
 

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