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15/08/2022 às 23h33min - Atualizada em 15/08/2022 às 23h00min

Resenha | O Falar Cuiabano

A obra aborda a colonização do estado de Mato Grosso que originou também o dialeto local cuiabano

Mariana da Silva - editado por David Cardoso
Capa do livro "O Falar Cuiabano", de Cristina Campos. (Foto: Acervo pessoal/ Mariana da Silva).
Conhecidíssimo na capital e em torno da baixada cuiabana, é entoado na voz da população de tchapa e cruz, ecoado nas conversas de ônibus, retratado nas negociações das vendas de lojinhas e dos ambulantes e nas orações e cantos das igrejas. Muito presente na boca dos mais velhos, senhoras e senhores dos cantos mais distintos da região de Cuiabá, mas principalmente do povo das comunidades, das vilas, dos povoados do interior e dos pequenos municípios dos arredores.É também exibido nos programas da televisão local, apresentado nas peças de teatro, nas representações de atores e humoristas, no canto dos artistas das músicas que refletem a cultura regional.
 
Que o linguajar cuiabano é único e inconfundível você já sabe. No entanto, nem todos conhecem de fato qual é a origem histórica e étnica deste sotaque e de suas especificidades que geram a conformação dessa linguagem. Antes de chegar à boca dos cuiabanos ele passou por descendentes de indígenas Bororo, espanhóis colonizadores dos países vizinhos, de negros de diferentes etnias e portugueses paulistas bandeirantes. Uma junção mais que colonial, o linguajar cuiabano é resultado de uma mistura tão brasileira quanto o próprio Brasil.
 
Diz o velho ditado que quem julga um livro pela capa, não reconhece o seu conteúdo em plenitude. Porém, ao analisar logo de início a capa da obra O Falar Cuiabano, da autora Cristina Campos, é possível notar ao fundo do livro amarelo os relevos de letras que formam palavras típicas do falar cuiabano. Começando pela contracapa e seguindo até a capa estão termos como “remedeia”, “canhaem”, “larga de moage”, “digoreste”, “pau rodado”, “siminina”, “tchá por Deus”, entre tantos outros muito conhecidos.
 
Esse dialeto carrega consigo uma herança imaterial reconhecida no dia 22 de abril de 2013 por meio da Portaria nº 017/2013 da Secretaria de Estado de Cultura de Mato Grosso, em que o linguajar cuiabano é reconhecido oficialmente como patrimônio imaterial do Estado, com proteção do poder público.

Ilustração com exemplos de termos do dialeto cuiabano.

Ilustração com exemplos de termos do dialeto cuiabano.

(Foto: Mariana da Silva/ Arquivo pessoal).


A autora Cristina Campos fez graduação e mestrado pela UFMT e é doutora em educação pela USP (2007), tendo dado aulas de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira no IFMT de Cuiabá. 

Com objetivo de servir de base tanto para estudantes de escolas públicas quanto de pesquisadores, o livro, na verdade, é perfeitamente acessível para qualquer pessoa de qualquer faixa etária, tanto em acessibilidade de seu conteúdo quanto na importância de que seja difundido e perpetuado pela sua relevância histórica.

A obra é dividida em duas partes, a primeira contextualizando a colonização do território de Mato Grosso para melhor compreender quais eram as etnias indígenas que aqui estavam e seus costumes, e quem foram os que vieram posteriormente a colonização em busca de ouro e atividades extrativistas.

Entre contextualizações que perpassam a explicação de termos como identidade, cultura, imaginário, ancestralidade, colonização, religiosidade e tradição, o livro trás um breve apanhado sobre diversos aspectos culturais da constituição do estado e de povos indígenas que muitas vezes não são representados e lembrados em livros de história com profundidade.


Com uma retomada histórica através de relatos de cronistas desde os tempos da colonização e os primeiros contatos com as mais diversas etnias e povos indígenas, é possível traçar um perfil onde o contraste do choque cultural é evidenciado. Quando um povo chega às terras de outro e se vê diante de costumes e tradições completamente distintas, causando até mesmo espanto e aversão em algumas situações, é algo que reforça as diferenças culturais.

Estes choques perduram até os tempos mais recentes, pois também com a migração para  Mato Grosso por volta dos anos 1970, o estado teve uma intensa vinda de imigrantes de diversas partes do Brasil, principalmente da região sul e que num primeiro contato com os que aqui estavam tiveram reações ao falar local.

Ela ressalta os riscos iminentes do desaparecimento das culturas antigas e tradicionais que estão arraigadas à tradição da oralidade, principalmente dos povos indígenas e das comunidades tradicionais como os ribeirinhos, sendo necessário urgente os registros para que não sejam apagadas ou esquecidas. Diante da urbanização e globalização constante que uma capital com o porte de Cuiabá tem agregado, estas riquezas imateriais têm sido ameaçadas em decorrência do crescimento e expansão do estado como um todo.


Ancestralidade indígena é relembrada em detalhes na constituição cultural.

Ancestralidade indígena é relembrada em detalhes na constituição cultural.

(Foto: Mariana da Silva/ Arquivo pessoal).


Já a segunda parte adentra propriamente na questão do falar cuiabano enquanto dialeto em seus traços fonético-fonológicos, esmiuçando as questões de escrita e pronúncia analisadas a fundo, que além de tudo abarcam as questões culturais, socioeconômicas  e ancestrais sendo transmitidas na fala.

Há também subcapítulos explicando os famosos apelidos dados pelos cuiabanos e seu lado humorístico muito presentes nos relacionamentos do cotidiano, e também com parte reservada a importância cultural do ator Liu Arruda e do escritor Silva Freire na propagação e reconhecimento social do falar cuiabano.

A obra conta com fotografias históricas, desenhos, ilustrações e textos complementares de outros autores que trazem outras perspectivas para aquele mesmo assunto, mas que se relacionam com os conteúdos anteriores, levando informações para além do contexto recortado.

O material contribui para a democratização do acesso ao conhecimento e de preservação deste bem imaterial contido numa linguagem tão única que atravessa gerações da cuiabania, entretanto se vê ameaçado em meio aos novos tempos onde a constante migração e expansão do estado apaga aos poucos essa tradição oral.

A resistência do sotaque e dos termos do vocabulário cuiabano são reflexo de uma também resistência de cunho existencial, para que as heranças culturais, os costumes e tradições regionais tão intrínsecos a vivência da população não sejam excluídos ou esquecidos.  

A população mais antiga das comunidades, das vila e povoados é o berço onde surge a resultante desse linguajar e seus descendentes embalam na voz até os dias de hoje uma herança oral que carrega uma bagagem histórica, cuja valorização e preservação necessitam de reconhecimento antes que seja tarde.

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