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20/02/2023 às 00h10min - Atualizada em 20/02/2023 às 00h03min

Como a crise da Livraria Cultura afeta o mercado editorial brasileiro?

Escritores, editores de livros e críticos literários analisam o impacto disso no cenário cultural e literário do País

Fiamma Lira - Editado por Larissa Bispo
Créditos/Reprodução: Internet

Vimos recentemente notícias que pipocaram na mídia sobre o anúncio da falência da Livraria Cultura. Um misto de tristeza, lamentos, indignação e revolta se misturaram nos comentários do público nas redes sociais.

 

Seja para um evento cultural, palestra, lançamento de livro ou mesmo para tomar um café e dar aquela olhada nas prateleiras, cada pessoa tem uma memória afetiva com o local. Falar da Livraria Cultura é revisitar memórias guardadas no coração; é uma nostalgia que preenche o interior e aquece as lembranças dos saudosistas. 

 

Mais do que uma livraria, era uma espaço para cultivo de experiências culturais intensas e vivências profundas no âmbito da interação humana. Há 70 anos, a Livraria Cultura habitava o cenário da arte, da cultura, da imaginação e da vida pulsante das pessoas.

 

Experiência artística e cultural

 

Para a produtora cultural e crítica literária Marianne Freire, a Livraria tem um valor sentimental elevado, pois foi lá onde ela comprou o primeiro livro do poeta Guimarães Rosa. Ela também esteve à frente de eventos culturais realizados ali como parte do seu trabalho. “Fiquei triste pois, para mim, era um lugar de respiro, uma pausa, uma sensação de bem estar entre cheiro de livros e cafés, apreciação literária, clubes de leitura, encontrar pessoas, um espaço de silêncio terapêutico a sós com o livro. A biblioterapia me ajuda a aumentar o léxico e a linguagem, além de diminuir ansiedade e depressão. A Livraria Cultura era um lugar de acolhimento literário terapêutico para mim. Agora me resta apenas lembranças e saudosismo”, comenta. 

 

Comprar um livro físico é uma experiência totalmente oposta a das compras virtuais e traz um valor extremamente simbólico, sensorial e afetivo. “A livraria física permite encontro entre as pessoas, clubes de leitura, cafés literários, lançamentos de livros, encontros de autores e escritores, mediação cultural, espaço infantil de interação entre crianças e a literatura infantil, a livraria física é uma experiência social, o encontro com as novidades e  informações culturais. A compra online através dos sites e plataformas digitais retira a experiência do contato humano, onde o único contato humano é o entregador responsável indo para a sua casa deixar o livro. A compra online é uma experiência individual e solitária, enquanto a livraria física é sociabilidade e encontro”, declara. 

 

A escritora e crítica literária Iaranda Barbosa avalia que a falta de um ambiente que fomente e incentive a experiência física com o livro prejudica a percepção disso para a sociedade e os leitores em geral. “Perde a oportunidade de um contato mais íntimo com as publicações. Somos seres sensoriais, gostamos de tocar os objetos e, quando falamos de livros, falamos também do cheiro das páginas, da tinta recém-impressa. O leitor perde a chance de encarar o livro como uma mercadoria relevante, necessária, que possui utilidade. Além disso, perde-se o contato com outras pessoas”, argumenta. 

 

Na visão de Iaranda, ele tinha um papel expressivo e relevante no âmbito cultural do Brasil. “Ela era mais um elo na cadeia produtiva do livro, na qual encontramos agentes importantes: escritor – editora – gráfica – distribuidor – vendedor – leitor. Além disso, as instalações ofereciam auditórios aconchegantes e intimistas onde era possível haver lançamentos, recitais e reuniões diversas. Ou seja, não era apenas uma livraria, mas sim um local onde a cultura e as artes encontravam pouso e diálogo”, destaca. 

 

Além disso, a instituição tinha uma fundamental importância no mercado editorial brasileiro. “A Livraria Cultura representava uma fatia importante no percentual do varejo de livros, até mais ou menos 2018. O fechamento das portas, além de nos apresentar o estado crítico no qual as livrarias se encontram, significa também menos pontos de vendas e menor acesso a livros. Ela era um espaço importante para o mercado editorial, já que oferecia grandes lojas, um amplo e diversificado acervo e um profissionais acolhedores”, complementa.

 

Marianne salienta o valor e a importância do espaço como um fomento ao conhecimento e ao trabalho de grandes escritores da literatura brasileira. “Há 70 anos a Livraria Cultura está no imaginário coletivo das pessoas, nas compras, nos livros, nos encontros, como um lugar quase “canônico”, sagrado e literário. A sua expansão pelo país como uma livraria de referência nacional se deu de tal forma que setores, equipes e colaboradores transformaram a Livraria Cultura em um lugar de valor, afetivo, lugar de produção e reprodução de conhecimento, em seus 70 anos, a Livraria Cultura publicou obras como “Um Copo de Cólera”, de Raduan Nassar, e “Ópera do Malandro”, de Chico Buarque. Assim como Hilda Hilst e Lygia Fagundes Telles e muitos outros autores de sucesso de público em sua época. José Saramago descrevia a Livraria Cultura como uma “catedral de livros” e uma “obra de arte", contextualiza.

 

Histórias e Memórias

 

Cada pessoa tem alguma vivência inesquecível, uma história interessante para contar ou uma lembrança que ficou guardada na memória vivida e sentida na Livraria Cultura. São diversas emoções e sentimentos que permeiam a vida do público. 

 

Para Iaranda, um momento marcante foi na compra de um presente de aniversário do filho. “Quando encontrei um livro que estava procurando há tempos para presentear o meu filho e não encontrava em lugar algum. Era um dos títulos que compunham a série “Como treinar seu dragão”. Era um presente de aniversário e ele queria muito o exemplar recém-lançado”, relembra. 

 

Já no caso da Marianne, o lançamento de um livro teve um sabor único e um toque todo especial à ocasião. “Lançamento de livro da escritora, professora e doutora em Literatura a qual estimo e admiro, Socorro Acioli”, recorda. 

 

No caso do Rafael, ter livros da sua editora sendo pedidos pela empresa foi uma experiência muito especial. “Teve um dia que eu estava em São Paulo fazendo um trabalho editorial, entregando alguns documentos na USP. Eu lembro que eu falei: tenho um tempo livre aqui, vou dar uma passada lá na Cultura, não era a livraria, era o escritório. Entrei lá, vi que tinha um monte de gente, era uma operação que estava funcionando. Acho que ela já estava em recuperação judicial. Eu lembro que ver aquele negócio funcionando ali, a secretária chamando a pessoa que estava atendendo, eu sentei, mostrei alguns dos nossos livros, depois veio o pedido deles. Começou com um pedido mais simples, depois foi para um pedido maior. Isso foi a melhor lembrança que eu tenho deles”, detalha.

 

Gestão do negócio

 

Não é de hoje que a empresa enfrenta dificuldades financeiras. Esse cenário caótico é um misto de dívidas acumuladas com livreiros, editoras e funcionários; falta de responsabilidade e compromisso com parceiros, ausência de visão e foco na realidade. Dá para resumir essa situação na seguinte frase: falha na gestão do negócio. Má administração resultou nessa triste realidade.

 

O editor de livros e fundador da Editora Madrepérola, Rafael Silvaro reflete que, além da saudade, um dos legados que a empresa deixa é o de fracasso, e que a arte e a cultura vão continuar, independente do lugar. “O cenário cultural permanece. A gente está em um mundo com várias frentes de mercado. Ninguém quer que uma livraria feche. Eu espero que lá no mesmo lugar na Livraria Cultura, entre outra livraria, para não perder este posto. Eu acho que é isso que ela traz, uma lembrança boa, mas também uma reflexão de uma mudança de um mundo que precisa estar atualizado”, avalia. 

 

Novo capítulo do caso

 

No dia 16 de fevereiro, a Justiça suspendeu o decreto de falência, atendendo a uma liminar expedida pela empresa. A alegação é de que a decisão tomada pelo desembargador Ralpho Waldo de Barros Monteiro Filho gera efeitos irreversíveis e que precisa de uma análise mais aprofundada. O responsável pela reviravolta é o desembargador J.B. Franco de Godoi. 

 

Com isso, a empresa conseguiu uma vitória. No entanto, tem muitas questões pendentes em jogo, como questões trabalhistas, dívidas com as editoras e uma necessidade urgente de transformar a maneira de gerir o negócio. Só o tempo dirá qual será o desfecho dessa história. 


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