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10/03/2023 às 19h43min - Atualizada em 10/03/2023 às 20h01min

Diversidade LGBTQIAP+ em histórias em quadrinhos

Se a arte imita a vida, nas HQs isso não é diferente

Raquel Oliveira - Editado por Fernando Azevêdo

Não é novidade alguma que o aumento da diversidade LGBTQIAP+ ocorre em diversos nichos da cultura pop. No universo das histórias em quadrinhos (HQs), principalmente após o hype do lançamento de “Superman: Son Of Kal-El #5” (2021), não é diferente. No HQ, o filho do Superman se declara abertamente bissexual enquanto ocupa o lugar do pai, protegendo a Terra.

Apesar da enorme aceitação e apoio que muitos quadrinhos recebem por possuir uma diversidade de grupos minoritários, ainda há muito discurso de ódio, como os clássicos: “Estragou a minha infância", “Querem meter os gays em tudo agora”, “Para que pôr militância em um desenho?".


Se a arte imita a vida, nos quadrinhos assim também o é. Durante décadas, era comum vermos o Superman fazendo convites para combater pessoas de outras raças, e até mesmo o heróico Capitão América já teve suas campanhas contra os "macacos amarelos". O racismo sempre foi presente, desde comentários sutis a expressões cobertas de estereótipos raciais.

As mulheres não escapam: personagens criadas para serem bonitas e sensuais, elas não surgiram para atrair o público feminino, mas para serem mais atrativas para os homens da época.

Ainda, personagens LGBTQIAP+ raramente tinham algum papel importante dentro da narrativa. Caso fosse um personagem meramente assumido, era sempre trabalhado com muitos estereótipos, tudo de uma forma cômica; além disso, durante muito tempo, diversos personagens eram ligados ao HIV/aids.



 

Precisamos entender que existem dois tipos de público. O primeiro é o leitor que, após ler por entretenimento, que lê aquilo como algo momentâneo e que quase nunca se importa com o peso que a história poderia causar. Já o segundo tipo de leitor, este é o tipo de pessoa que busca se conectar com algo, mesmo que inconscientemente, seja na busca de um conforto ou de uma inspiração.

  
Quem nunca quis ter a coragem do Homem-Aranha para enfrentar os desafios mesmo sabendo que não era tão forte? Ou então ter a mesma esperança do Superman? Quem nunca teve sentimentos e questionamentos sobre si mesmo e sobre seu jeito de amar como os personagens de Heartstopper? Histórias em quadrinhos são feitas para inspirar, sejam elas de heróis ou não. Mesmo que algumas histórias não funcionem com algum grupo específico de pessoas, isso não tira o mérito de que HQs podem ajudar jovens e adultos a se identificarem ou se sentirem representados de alguma maneira.


Para muitas pessoas é melhor criar personagens novos que sejam LGBTQIAP+ do que mexer nas origens dos personagens mais antigos, até porque isso ocorre em revista de herói, onde a agitação causada pela ação deveria ser o único gênero predominante e não tem espaço para romances. Porém, a questão de trazer representatividade surge justamente por ser algo muito complexo e, durante muitos anos, a censura foi muito presente em diversos veículos, e histórias em quadrinhos não ficaram de fora desse período.

Apenas em 1992 um personagem de relevância veio a ser assumido: Estrela Polar, líder da equipe "Tropa Alfa", foi o primeiro personagem abertamente gay. O escritor John Byrne já comentou sobre querer trazer
um personagem gay desde o início, mas na época o editor-chefe não permitia.
 

 

Personagens novos nas principais editoras são criados todos os dias, e boa parte deles são representatividades, porém essa porcentagem não chega a 10%. O problema é que personagens mais antigos não tiveram a oportunidade de ser quem deveriam ser - como foi o caso de John Byrne, que foi censurado. Quantos outros escritores e artistas não passaram por isso? Dar oportunidade de interpretação e de liberdade não deveria ser algo que causa incômodo ou um problema para as personagens, mas ainda é uma realidade. E isso acaba criando uma rotina.

O leitor vai preferir os clássicos, edições em que a presença de personagens LGBTQIAP+ não exista, e, caso exista, eles não são mostrados como tal. As editoras notam e passam a focar mais nestas edições e acabam cancelando revistas de outros personagens que não dão tantos lucros. Assim,
leitores que poderiam crescer com personagens diversos acabam não vivendo esse processo.

 

Um meio termo que as editoras começaram a fazer fo dar novas personalidades e propósitos a personagens clássicos, os "renovando", e neste processo muitos personagens acabam se encaixando em aspectos LGBTQIAP+, como foi o caso da Arlequina da DC Comics, que passou a ter um romance com a Hera Venenosa depois de se separar do Coringa. Claro: essa "renovação" fez com que a narrativa fosse construída para não perder sentindo com o histórico dos personagens.

 

 

Confira entrevista com os criadores de conteúdos literários e geeks José Eduardo do @edueoslivros, e Thiago Chareti do @thinerdz. Em um bate-papo, eles falaram com o Lab Dicas Jornalismo sobre a presença da Diversidade LGBTQIAP+ nas histórias em quadrinho.

 

LDJ - Como surgiu a ideia e a vontade de falar sobre quadrinhos na internet?​
 

Edu - Eu sempre gostei de ler quadrinhos e vi que muitas pessoas sentiam vontade de ler também, mas não sabiam por onde começar, foi aí que eu decidi começar a falar de quadrinhos.
 

Thiago - Sempre curti quadrinhos, pois era uma maneira fácil de ler, algo que tenho dificuldade extrema, então, quando pequeno, minha mãe notou que eu lia Turma da Mônica facilmente - e devorava. Nos anos 90, saiu a série dos X-Men na televisão, pessoas atacadas pelo simples motivo de existirem e tentar ser quem nasceram pra ser. Instantaneamente aquilo mexeu comigo e me senti representado, pois alguns anos atrás a homofobia era extremamente mais forte e sofri muito com o preconceito. Descobri os quadrinhos da Marvel por ali e foi amor à primeira vista.

Vamos ser claros, sou branco e na infância era classe média e com vários privilégios, então tive todos preconceitos e ignorância que minha bolha criava e, mesmo com várias problemáticas, essa arte me dava uma forma nova de ver o mundo, afinal heróis sempre tentam ser melhores, são espelhos limpos da humanidade, mesmo criados por humanos imperfeitos. Esses escritores sempre tentam colocar o melhor de si nas histórias e isso me fez uma pessoa melhor... mesmo que tenha demorado muito e eu ainda seja alguém que tem muito a aprender.

Sempre quis poder passar essa visão mágica que tinha e também quem sabe trazer um pouco sobre os desenhistas e escritores que mudaram minha vida.

 

LDJ - Como você enxerga os perfis dos personagens LGBTQIAP+ nas obras atuais? Acredita que, em geral,  eles se encaixam bem dentro da função de trazer diversidade nas histórias que em sua maioria, senão todas, são consideradas clássicas? Como o caso dos integrantes do X-men e Alerquina.
 

Edu - Acho que hoje em dia os autores estão muito mais preocupados em trazer boas representatividades nos quadrinhos, principalmente nas HQs dos X-men, que sempre foi uma série que abordou a luta contra o preconceito e pela igualdade.
 

Thiago - Foi um caminho longo e ainda falta muito a ser percorrido, mas consegui acompanhar as editoras trazendo um pouco mais de diversidade aos poucos, mesmo com enorme resistência do público (que era fortemente preconceituoso), presenciei o casamento do Estrela Polar na capa de X-Men, segui a criação dos Jovens Vingadores, uma equipe extremamente diversa; até invisíveis da DC, que tem uma mulher trans brasileira. Foram enorme inspiração, mas Sandman sempre foi minha obra preferida. Nos anos 90, Neil Gaiman teve coragem de trazer temas que poucos tocavam, como disforia de gênero, aliás tema que hoje em dia as HQs não exploram muito.

Começou tudo com muito medo e diluído com várias problemáticas, afinal grande maioria das pessoas que criavam eram homens heteros dando a visão deles, porém, de um tempo pra cá, as editoras têm contratado mais artistas diversos, e o tema tem se tornado mais íntimo, afinal se os criadores são diversos as histórias vão seguir essa visão.

Eu estou achando tudo lindo.

 

LDJ -  Sabemos como os Nerds de Bem, expressão utilizada entre a comunidade nerd para chamar aqueles que fingem defender os bons costumes para esconderem as atitudes e falas preconceituosas, ainda insistem com aquela fala: “como explicar para as crianças dois homens se beijando? vai confundir as mentes delas”. Como você lida com esses tipos de falas sobre seu conteúdo?


Edu - Acho que essa fala nem tem sentido nos dias de hoje, já que, se tratando de histórias em quadrinhos de super-heróis, a maioria é voltada para o público adolescente e adulto. Além disso, você pode explicar para a criança do mesmo jeito que você explicaria um beijo entre um homem e uma mulher.


Thiago - Nerd do bem é complicado, sempre penso e digo que deve ser assustador viver num mundo que você não cabe mais, foi assim para mim e muitas pessoas quando a representatividade não existia em nenhuma mídia. Quando jovem eu achava que era o único LGBT do mundo, ainda mais sem internet. Eu não tinha acesso a pessoas como eu, quem existia tinha medo de sair do armário devido ao risco de vida, felizmente internet chegou e conseguimos hoje nos conectar e o mundo mudou, mesmo que vários queiram viver naquela época de terror. Foi uma porta aberta, hoje temos voz. Tento ao máximo não antagonizar nas minhas redes, sempre que vejo um desses eu bloqueio e vida que segue, quem sabe um dia essas pessoas consigam ver o que fazem (não sou de ferro também, às vezes eu respondo). Eu mesmo tive vários problemas para enxergar erros meus e acredito que todo mundo pode melhorar.

Prefiro mostrar o que podemos ser ao invés de perder meu tempo lutando contra quem não quer mudar naquele momento.

 

LDJ - Como você vê as indústrias de quadrinhos com relação à diversidade? Algo mais voltado de fato à evolução do público ou algo que sabem que vai vender e gerar engajamento?


Edu - Acho que um pouco dos dois, já que tendo mais leitores da comunidade LGBTQIA+. Os criadores de quadrinhos perceberam que também precisavam abraçar esse público.


Thiago - As indústrias sempre pensam em lucro, sei que estão atrás do famoso pink money [dinheiro rosa, em inglês, a expressão se refere ao comércio de produtos voltados ao público LGBTQIA+], mas isso não muda o fato que vão causar mudança. Uma coisa está atrelada a outra, o público muda e o mercado tem que mudar com ele ou vão perder dinheiro, com isso o público muda mais.

 

LDJ - X-men provavelmente é uma das obras com maior número de diversidades, e de todos os tipos possíveis. Como fã, criador de conteúdo e parte da comunidade, como você vê o impacto que essa obra causa?


Edu - X-men é um dos maiores sucessos da Marvel quando o assunto é quadrinhos, e eu sempre me identifiquei com eles pelo fato deles sempre estarem lutando por igualdade. Hoje em dia, é difícil ter uma equestre de mutante que não tenha pelo menos um personagem LGBTQIA+, e eu acho isso incrível.


Thiago - Sabe o mais engraçado? Talvez X-Men nem seja a obra com mais diversidade, Marvel demorou demais a usar os mutantes como o que eles realmente representa, porque são dos personagens que mais traziam dinheiro (antes dos filmes do MCU chegarem aos cinemas), então ainda não tiram do armário personagens icônicos como Wolverine. A própria Mística teve um processo longo pra chegar onde está hoje.

Sempre tentei ver da seguinte maneira: às vezes quem precisa ouvir é o preconceituoso e ele não vai consumir se nada ali o atrair, talvez por isso os primeiros X-Men sejam brancos, mesmo representando o racismo da época.

De uns anos pra cá a Marvel resolveu abraçar bastante a essência dos mutantes, a diversidade tem sido bem legal, mas ainda é um processo.

Temos escritores e desenhistas LGBT, pretos, mulheres, PcD, inclusive a HQ "Voices" é sempre dedicada a esses artistas e personagens

 

LDJ - Como é ver personagens que no passado eram ditos, ou de consciência da maioria, sendo héteros, hoje em dia serem LGBTQIAP+? De uma maneira mais ampla, indo para o social, para você, essa mudança está causando impacto?


Edu - A vida imita a arte e a arte imita a vida, uma pessoa pode passar anos até entender sua sexualidade, então não teria como ser
diferente nos quadrinhos, e eu particularmente acho incrível descobrir que um personagem que eu sempre amei faz parte da comunidade LGBTQIA+ (como o Deadpool e o Homem de Gelo).


Thiago - Eu AMO ver personagens antigos saindo do armário, porque as pistas sempre estiveram ali, como a Mística ter adotado a Vampira com a Sina, o amor entre as duas sempre foi claro, mas quando Claremont que as criou não pode falar abertamente sobre isso pois era proibido LGBT nas HQs, inclusive Noturno era pra ser filho biológico de ambas, mas isso foi vetado.

Tony Stark já apareceu na cama com outros homens, em outros universos Wolverine namora outro homem, tudo sempre esteve ali, mas para quem quer ver.

Pessoal quer brigar pra manter personagens como eles eram, mas isso nunca mudou a essência deles: Wolverine ainda é o Wolverine.

 

 LDJ - Claro que ter histórias sobre autodescobrimento é importante, elas sempre devem existir para ajudar as pessoas que estão no processo de autodescobrimento, mas você sente falta de histórias que já passaram desse ponto? Como é o seu olhar  do mercado sobre isso?


Edu - Ainda existem muitos quadrinhos sobre autodescobrimento, mas acho que o número de quadrinhos com personagem que já passaram dessa fase está crescendo muito nos últimos anos, a série de quadrinhos Filhos do Átomo é um ótimo exemplo disso


Thiago - Sinto muita falta desse tipo de história, elas existem cada dia mais mesmo não sendo foco, e tudo bem, faz parte da evolução tanto desses universos como do público.

Não tenho como negar que choro toda vez que Jonathan Kent conta pro Clark (ambos Super-Homem) que ele está namorando o Jay, essa história vai ajudar muitos pais a entenderem como devem lidar com a situação, pra mim é algo batido, mas tem tanta gente que precisa muito ler aquilo ainda.

 

LDJ - Quais movimentos de luta pelos direitos e contra o preconceito você considera os mais importantes dentro dos quadrinhos?


Edu  Eu acho que a criação do DC Pride, que é uma antologia com histórias protagonizadas por personagens LGBTQIA+, foi uma iniciativa muito legal da DC que traz ainda mais visibilidade e representatividade para a comunidade 


Thiago - Todos... Eles são heróis, são os deuses modernos tentando nos dizer o que devemos fazer para melhorar nossa sociedade. Muitas dessas lutas nós nem sabíamos que existiam ou como elas afetam o todo.

Sem mulheres, pessoas pretas, PcDs, imigrantes e vários outros inserindo sua vivência nessas histórias, nossa ignorância seria muito maior.

Deveríamos ser gratos a todos esses por abrirem uma janela para que possamos crescer.

 

LDJ - Vocês falam sempre sobre as interpretações de assuntos que muitas vezes - por mais que seja óbvio - as pessoas não repararam, justamente por verem histórias em quadrinhos como apenas algo de lazer e que não carregam críticas e manifestos.  Acredita que no nicho que vocês fazem parte, de criador de conteúdo, seus trabalhos fazem a diferença nesta interpretação?


Edu - Na minha opinião, sim, muitas pessoas enxergavam quadrinhos como coisas infantis que não traziam assuntos importantes, e a internet mostrou que é completamente o contrário; quadrinhos trazem assuntos importantes para se discutir há muito tempo e hoje em dia ainda mais.


Thiago - Nossa, eu espero muito que sim, temos vários criadores hoje em dia que estão se esforçando muito para trazer essa visão que
muitos não querem ou não têm capacidade de enxergar, mas essa cegueira é generalizada, está em todo lugar, em filmes, livros, até mesmo na educação; cada um só consegue ver aquilo que é equipado a ver.

 

LDJ - Para finalizarmos, quais obras indicam para quem quer entrar nas leituras LGBTQIAP+ dentro dos quadrinhos?


Edu - Acho que as duas melhores recomendações são Arlindo, uma HQ brasileira linda, e Superman: o filho de Kal-el, que é protagonizada pelo filho do Clark, que ficou conhecida por trazer o primeiro Superman bissexual.
 

Thiago - X-Men sempre é uma boa pedida, Sandman com certeza talvez seja uma das mais legais, Invisíveis, da DC, Jovens Vingadores e a última temporada de Justiça Jovem (a animação) está super legal, tendo até mesmo um trisal. Mas, qualquer lugar é um ótimo lugar para começar, a diversidade finalmente está alcançando tudo.

 

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