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16/03/2023 às 10h41min - Atualizada em 15/03/2023 às 22h44min

Escravidão contemporânea: o que isso diz sobre as relações de trabalho no Brasil?

Segundo o Ministério Público do Trabalho, o número de denúncias de casos análogos à escravidão teve um crescimento nos últimos anos

Jorge Gabriel Amorim - Editado por Ynara Mattos

Em menos de um ano, as cidades do interior do Brasil se tornam novamente o palco de casos de trabalho escravo. Recentemente, no último dia 22, o país assistiu ao episódio de Bento Gonçalves, Rio Grande Sul, onde mais de 200 trabalhadores foram submetidos ao trabalho escravo na colheita de uva para grandes empresas do vinhedo. Em julho de 2022, uma mulher foi resgatada após 32 anos mantida em condições de trabalho análogo á escravidão, no município de Nova Era, Minas Gerais. O curto intervalo entre os acontecimentos mostra que o Brasil ainda não sabe lidar com sua própria história. 

 

O caso das vinícolas (Salton, Aurora e Cooperativa Garibaldi) tomou maiores proporções após as falas do vereador de Caxias do Sul, Sandro Fantinel (sem partido), durante uma sessão, onde ele disse aos empresários da região “não contratem aquela gente lá de cima”, se referindo a Bahia, estado de origem da maior parte dos trabalhadores libertados. De acordo com Juliana Ghisolfi, professora no Departamento de Sociologia e Ciência Política na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), o discurso do parlamentar é repleto de racismo e ódio de classe. “Pessoas como ele sempre existiram, e são bastante comuns na região sul do Brasil.”

 

De acordo com o G1, a empresa responsável (Fênix Serviços Administrativos e Apoio a Gestão de Saúde LTDA) por "agenciar" os trabalhadores, já havia sido autuada outras dez vezes, todas relacionadas à irregularidade no trabalho. Carla Leal, juíza do trabalho aposentada, e professora de Direito do Trabalho na UFMT, diz que uma das possíveis causas da não penalização da empresa anteriormente é devido a estrutura do sistema judiciário brasileiro, que é lento. “O sistema recursal brasileiro é composto de amplas possibilidades de recurso e o próprio judiciário é refratário no reconhecimento do trabalho escravo.” 

 

Os trabalhadores resgatados em Bento Gonçalves só conseguiram denunciar a situação degradante a qual estavam submetidos após alguns deles conseguirem fugir do local, no qual estavam alojados, e relatar a situação para Polícia Rodoviária Federal (PRF), que agiu imediatamente em parceria com o Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e a Polícia Federal (PF). Os trabalhadores foram para as lavouras das vinícolas com a promessa de um salário de 4 mil reais. Porém, ao chegarem no local foram submetidos a cargas-horárias de mais de 10 horas por dia, de domingo a sexta-feira, servidão por dívida e violência física por parte da empresa, como mostra a reportagem da DW - Made for minds. 

 

Após muitas críticas e cobranças da mídia, o Centro da Indústria, Comércio e Serviços (CIC) de Bento Gonçalves, em nota, diz que o caso de trabalho escravo tem relação com uma política de ‘assistencialismo’ que ocasiona uma falta de mão de obra."Há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade.”, declarou a entidade.

 

Para a cientista política, os argumentos do CIC são hipócritas e representam os pensamentos da elite brasileira que “blindou” o Estado brasileiro a qualquer tipo de transformação radical da desigualdade e visa sempre ser beneficiada econômica e politicamente. Além de a nota “estar atrelada ao contexto do neoliberalismo, da polarização política e do antipetismo que tem marcado o Brasil.”

 

O que diz a Lei 

 

No artigo 149 do Código Penal brasileiro, a condição de trabalho análogo à escravidão é caracterizada pela submissão do trabalhador ao trabalho forçado, a jornadas exaustivas, a sujeição a condições degradantes de trabalho, servidão por dívida e a restrição de locomoção do trabalhador. Em 2012, o, já falecido, deputado federal Moreira Mendes apresentou um Projeto de Lei, no qual propunha a retirada dos termos jornada exaustiva de trabalho e condições degradantes de trabalho do artigo 149, sob a justificativa de não haver uma definição objetiva das expressões, o que de acordo com o parlamentar, levaria a uma interpretação “equivocada” da lei. 

 

As atividades de monitoramento e combate ao trabalho escravo no Brasil se iniciaram em 1995. Segundo a Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), de 1995 até 2022, foram notificados 60.251 casos de trabalhadores retirados de condições análogas à de escravo pelo órgão. Em 2007, houve o maior número de resgate desde o começo da contagem, 6.025. Mas o que explica a permanência desse tipo de trabalho no Brasil? Leal afirma que se trata de um modus operandi, uma forma de produzir, mais lucrativa àqueles que dela se beneficiam. “Persiste porque é lucrativo. No Brasil nós temos dois agravantes que são o racismo estrutural e os resquícios da escravidão colonial.”

 

Em um balanço de 2020, realizado pelo Ministério do Trabalho sobre a erradicação do trabalho análogo à de escravo no Brasil é apontado que, das 27 unidades regionais de fiscalização, apenas sete possuem atividade de combate ao trabalho escravo formalizada em um projeto de fiscalização. A ex-juíza afirma que tal déficit está atrelado à uma má vontade política e ressalta que houve uma queda no orçamento destinado a este tipo de ação. De acordo com a ong Repórter Brasil, entre 2019 e 2022 houve uma queda de 64% no orçamento para realização das fiscalizações de obrigações trabalhistas e inspeção em segurança e saúde no trabalho. “Eu não sei se nós deixamos de ter muitos casos ou se a estrutura que nós temos hoje não é o suficiente para descobrir os casos.”, declarou Leal.

 

No estudo “Amazônia: Trabalho escravo mais dinâmicas correlatas”, de 2021, é mostrado que as regiões da Amazônia Legal que foram desmatadas, também possuem casos de trabalho escravo. Segundo dados do projeto Escravo, nem pensar, da ong Repórter Brasil, a maior incidência de trabalho escravo no país ocorre nas zonas rurais, em atividades pecuaristas, extrativistas e de plantio. Em 2021, cerca de 474,8 milhões de árvores foram cortadas na Amazônia, para subsidiar atividades pecuaristas. Leal afirma que o trabalho escravo contemporâneo, em sua maior parte, está no arco do desmatamento.

 

No artigo 243 da Constituição Federal, é dito que, todas as propriedades em que forem constatados casos de utilização de mão de obra escrava, deverão ser expropriadas de seus donos e destinadas à reforma agrária ou a programas habitacionais. No entanto, há uma dificuldade de aplicação deste dispositivo, por divergências de interpretações jurídicas. Leal afirma que a pouca aplicação da lei se deve a uma falta de vontade política e falhas no próprio texto.

 

Em 2005 o Tribunal Regional Federal - 1 (TRF-1) absolveu os réus acusados de submeter os trabalhadores à condições de trabalho escravo em fazendas do interior do Pará (PA), embora o tribunal reconhecesse a situação de degradação a qual os funcionários foram submetidos. [os desembargadores] entenderam que a falta de condições sanitárias mínimas e o endividamento dos trabalhadores seriam reflexo da realidade no interior do Brasil e, por isso, insuficientes para comprovar o crime de escravidão contemporânea.” Atualmente, a discussão está no Supremo Tribunal Federal (STF), que debate uma possível flexibilização no entendimento do trabalho escravo no campo. Leal diz que, se aprovada, isso seria o mesmo que rasgar o artigo 5° da Constituição Federal, que garante tratamento igualitário a todas as pessoas.

 

A Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 2021, disse haver no mundo aproximadamente 50 milhões de pessoas em casos de escravidão contemporânea. A incidência era principalmente entre migrantes. Os trabalhadores saem de seus locais de origem, geralmente atravessados por fome, miséria, desemprego, e baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), em busca de trabalho e condições dignas de vida. No Brasil, Norte e Nordeste geralmente são as regiões de origem da maioria de trabalhadores traficados para trabalho análogo à escravidão. Elas possuem os IDHs mais baixos do país.

 

Juliana e Carla são unânimes ao afirmarem que o principal causador da escravidão contemporânea é vulnerabilidade a que está exposta a parcela mais pobre da população brasileira. As duas argumentam que enfrentar as mazelas sociais (desigualdades) é imprescindível para o combate da escravidão contemporânea em solo brasileiro. Carla completa dizendo que é necessária uma mudança também no judiciário, “Precisamos insistir na formação de trabalhadores da área; no judiciário, precisamos pôr para funcionar o artigo 243 da Constituição Federal e responsabilizar o poder dominante [empresa principal]. Nós temos mecanismos.”


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