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02/02/2020 às 00h02min - Atualizada em 02/02/2020 às 00h02min

O que as distopias têm a ensinar sobre emoções e razão

Especialistas da comunicação, da filosofia e da psicologia ajudam a entender elementos das ficções distópicas

Antony Isidoro - Antony Isidoro
Cena do filme Equilibrium / Foto: Reprodução.

 

Conflitos, guerras, crimes, violência, preconceito... O ser humano está sempre presenciando alguma mazela que afeta a vida em sociedade, que impacta, direta ou indiretamente, o seu cotidiano. Sonhar com uma sociedade perfeita parece inevitável, mas também é difícil acreditar que ela seja possível, por isso existe o costume de chamá-la de “utopia”. Pessoas pensam de formas diferentes, têm opiniões distintas. Sendo assim, o que alguns poderiam considerar como perfeito, outros não considerariam. Para que uma sociedade fosse perfeita, todos que nela vivem deveriam pensar da mesma forma, mas o mais provável é que uma parcela da população se sujeite à opinião de um grupo que dita o que seria perfeito. Contudo, dessa forma, já não seria possível chamar essa sociedade de utópica, e sim de distópica.

 

O jornalista e professor Agnelo Fedel, que leciona sobre as teorias da comunicação e os produtos da indústria cultural, explica que “A distopia é o inverso da utopia, ou seja, não é um lugar perfeito, é um lugar que coloca as pessoas muito mais como autômatos, robôs, em prol a uma sociedade ‘perfeita’ para aqueles que a comandam”. O conceito de distopia já foi abordado por diversos estudiosos e instigou a imaginação de muitos escritores e roteiristas, o que acabou por dar origem a um subgênero da ficção.

 

A ficção distópica é normalmente ambientada em um cenário futurístico ou apocalíptico, muitas vezes com fortes referências às sociedades em que vivemos ou a períodos que marcaram a história global, como a Segunda Guerra Mundial. Esses cenários, apesar de caracterizados por evoluções científicas e tecnológicas, estão sob um regime totalitário e que oprime a liberdade da população. Algumas vezes isso é feito mais sutilmente, através da manipulação, ou até mesmo da eliminação completa, dos sentimentos e das emoções das pessoas, considerando-os como os grandes causadores de guerras, conflitos e todos os males da população. “São muitas variáveis funcionando para a defesa dessa ideia, sobretudo podemos mencionar alguns pilares culturais de nossa tradição que denunciam o ‘terror’ e a falibilidade de nossas emoções quando temos que decidir assuntos delicados”, explana o filósofo João Batista Farias Júnior, professor do IFPI e pesquisador de trabalhos voltados à ficção. 

 

Sobre as consequências de uma sociedade construída com base somente na razão, e não nas emoções, ele comenta que essa será sempre uma questão de pontos de vista. “Temos, no entanto, os experimentos mentais presentes na literatura e no cinema que nos ajudam a imaginar alguns resultados possíveis”.

 

Veja a seguir algumas obras do cinema que abordam sociedades distópicas, trazem discussões profundas sobre o papel da razão e do sentir na sociedade, e nos fazem refletir sobre a nossa própria realidade.

 

O Doador de Memórias (2014)

 

Adaptado do livro de Lois Lowry, o filme se passa em uma comunidade muito bem paramentado tecnologicamente. Trata-se de uma sociedade em que a suposta paz foi estabelecida ao manter a população ignorante quanto ao passado de seu povo. Lá não há mais arte, diversidade de etnias e culturas, nem mesmo animais domésticos ou selvagens. Isso porque ela segue o princípio de que as diferenças são perigosas, pois geram inveja e medo que, por sua vez, são os causadores de conflitos. E o povo, no filme, sequer imagina que tudo isso já existiu um dia. O único que tem esse conhecimento é o receptor de memórias, que possui a responsabilidade de eventualmente aconselhar os gestores da comunidade, usando dos conhecimentos que ninguém mais possui. O longa conta a história de Jonas (Brenton Thwaites), um jovem que se torna o novo receptor de memórias em treinamento e, ao conhecer e sentir todas as maravilhas de que seu povo foi privado, começa a se questionar se o sistema que rege a comunidade é realmente perfeito.

Apesar da ordem e do desenvolvimento técnico que marcam a sociedade de "O Doador de Memórias", cada indivíduo que a constitui tem sua capacidade de sentir represada, graças a dose diária que eles tomam de uma droga que suprime suas emoções, sem ao menos que eles saibam ser esse o seu propósito. Farias Júnior fala que tanto a técnica quanto o sentir são essenciais para o desenvolvimento de uma sociedade. Segundo ele, a técnica permite o aproveitamento da capacidade lógica e científica do ser humano, mas sem o sentir perderíamos a nossa riqueza artística.

Há uma ressalva, contudo, para o fato de que não se pode afirmar com certeza como seria alguém que não possui nenhuma emoção. A psicóloga e neuropsicóloga Rejane Coan Ferretti Mayer explica que algumas pessoas podem apresentar dificuldades em ter alguns sentimentos, mas todas as pessoas possuem emoções. Mayer esclarece que as emoções estão ligadas a um fator orgânico, “são reações relacionadas ao funcionamento cerebral, ao sistema límbico”. Já os sentimentos têm um aspecto cultural. “Os sentimentos a gente vai aprendendo ao longo da vida. Estão muito ligados a sensações, e a gente vai aprendendo a nomear essas sensações”.

 

Equilibrium (2002)

 

Criado pelo roteirista e diretor Kurt Wimmer, o cenário de Equilibrium é bastante parecido com o de “O Doador de Memórias”. Libria, a sociedade formada pelos sobreviventes da Terceira Guerra Mundial, se firmou ao tornar-se 100 por cento racional. Nesse Estado onde sentir é proibido (e um crime a ser punido com a morte), uma droga também é distribuída para toda a população para inibir todos os seus sentimentos e emoções. Porém aqui todos sabem o que essa droga, chamada Prozium, faz, e por isso uma parcela bem pequena da população deliberadamente se recusa a tomá-la.

 

Outra diferença desse filme é que em Libria, a arte ainda não foi totalmente erradicada, pois esses rebeldes que permanecem sentindo se esforçam em protegê-la, mantendo obras escondidas. Esse contexto torna o cenário de Equilibrium muito mais violento, já que o Clero Grammaton, a maior autoridade na luta contra o “crime de sentir”, possui sacerdotes rigorosamente condicionados a eliminar o maior número de rebeldes possível. O enredo da história se desenvolve a partir do personagem John Preston (Christian Bale), um sacerdote do Grammaton que eventualmente deixa de tomar sua dose diária de Prozium e experimenta sentir.

Farias Júnior é autor de um artigo em que analisa especificamente o cenário de Equilibrium sob a ótica do filósofo Martin Heidegger. Ele esclarece que a hipocrisia do uso da violência para criar uma sociedade de paz se deve, em grande parte, à falta do sentir por parte de quem decide o que é violento. “Empatia, medo, amor, amizade, esperança, e tantos outros sentimentos são importantes para a elaboração de um julgamento como este”.

 

1984 (1984)

 

O filme foi adaptado do livro homônimo publicado por George Orwell no final da década de 40, em que o autor faz claras críticas ao totalitarismo, aos sistemas fascistas e à Segunda Guerra Mundial. Na obra, diferentemente das duas anteriores, a guerra ainda está acontecendo, portanto, a ilusória perfeição buscada pelo Estado ainda não foi conquistada por completo, mas isso não o torna menos influente. Aqui as emoções e os sentimentos não são completamente erradicados ou proibidos, mas o governo totalitário que comanda a Oceania, nação onde se passa a história, tenta ao máximo condicionar os pensamentos e os sentimentos da população, de forma que estejam todos voltados ao Estado, e de forma positiva.

 

Esse Estado é representado por uma figura chamada “Grande Irmão”, que seria equivalente ao Hitler ou Mussolini desse universo, se faz responsável por cada membro nação e se torna foco de um forte culto à personalidade. O Grande Irmão, ao mesmo passo que gera receio, também gera confiança e certo amor por parte da população, como elucida Fedel. Em um sistema totalitário como esse, “a forma de conseguir controlar e direcionar o pensamento, e principalmente o sentimento das pessoas, é impingindo medo ao diferente”. Por isso o protagonista da trama, Winston Smith (interpretado por John Hurt nos cinemas), é perseguido. “Ele começa a pensar de forma diferente, ele põe em xeque toda tudo aquilo que o Estado está colocando naquela sociedade, para a sociedade”.

“Em ‘1984’, a forma como a manipulação ocorre é justamente por conta da força, da opressão, e da confusão que se cria na cabeça das pessoas, invertendo os aspectos; o que é bom é mau, o que é bonito é feio, a paz só é possível por meio da guerra”, explica Fedel. E tal como no nazismo da Segunda Guerra Mundial, a manipulação das informações tem um papel crucial nisso. E na obra ela está presente principalmente no Ministério da Verdade, órgão que altera dados históricos para favorecer o Estado, e nas teletelas, um tipo de aparelho televisor por onde as pessoas não somente têm acesso a essa informação deturpada, mas também são constantemente monitoradas, uma medida para encontrar e se livrar de pessoas contrárias ao governo totalitário.

 


Editado por Bruna Blankenship
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