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16/02/2020 às 17h10min - Atualizada em 16/02/2020 às 17h10min

A herança carnavalesca da commedia dell’arte

O teatro mascarado que surgiu na Itália e acabou por influenciar o carnaval brasileiro

Antony Isidoro
http://www.scielo.br/pdf/trans/v24n1/v24n1a04.pdf
Fantasia carnavalesca de Pierrô / Foto: Divulgação

“Um Pierrô apaixonado que vivia só cantando por causa de uma colombina acabou chorando...”. Esses versos escritos por Inácio Zatz são de apenas uma entre várias marchinhas carnavalescas que fizeram história no nosso país e ajudaram a eternizar personagens como a Colombina e o Pierrô. 

Eventualmente ainda hoje é possível ver em blocos carnavalescos alguns foliões com fantasias que remetem a essas e outras personas icônicas, que começaram a se tornar famosas no Brasil no início do século XX, graças às composições de artistas inspirados pela commedia dell’arte, um movimento expressivo que percorreu a Europa e foi um dos principais marcos do teatro na história.

A commedia dell’arte foi uma tradição de teatro popular que surgiu inicialmente na Itália no século XVI, onde atores se reuniam em grupos para apresentar peças cômicas ao povo, em ruas ou praças públicas. Segundo o doutor em Artes Cênicas, Marcus Villa Góis, que tem a commedia dell’arte como objeto de estudo, é possível elencar três características principais que juntas determinam essa prática: O uso de máscaras em cena, a improvisação e a profissionalização. 

Essa última foi certificada por meio de estudos no início do século XX que encontraram um contrato que especificava os detalhes do trabalho realizado pelo primeiro grupo a viajar pela Europa fazendo o que um dia viria a ser chamado de commedia dell’arte. “Tinham nobres que faziam roteiros improvisados também, mas não faziam isso profissionalmente, e tinham outros personagens que usavam máscaras, mas que também não eram da commedia dell’arte”, esclarece Góis.

A partir desse primeiro grupo, outros começaram a surgir com propostas semelhantes, tornando o fenômeno mais intenso e expressivo, levando suas peças para todo o continente. Esse, segundo Góis, é um dos fatores que favoreciam a prática do improviso. “Eles iam se apresentando de cidades em cidades. Foram pra Rússia, pra Áustria, ganharam fama nesses lugares todos, e por isso a improvisação também, porque você tem que ter um repertorio novo pra cada dia, pra cada lugar”, elucida.

Os roteiros de commedia dell’arte, conhecidos como canovacci, não eram textos dramaturgicamente finalizados, apenas determinavam as principais ações das personagens e suas entradas e saídas, deixando os detalhes a serem decididos pelos atores em cena. Mesmo com todas as similaridades entre inúmeros grupos de atores, Góis atenta para o fato de que essa forma de fazer teatro, só recebeu o nome de commedia dell’arte por volta de 1700. “Só no momento em que ela já está terminando, esse nome passa a vigorar e se fixa”.

Sendo a prática de cunho popular, os temas preferidos pelos grupos de atores eram todos ligados ao cotidiano do povo, girando em torno de elementos como o amor, o dinheiro, a comida e o trabalho, muitas vezes abordando a diferença entre classes sociais, segundo a pesquisa do doutor em Letras, José Eduardo Vendramini, “A commedia dell’arte e sua reoperacionalização”. Em seu trabalho, Vendramini conta que esse fator social diminuiu com a chegada da commedia dell’arte à França, tendendo a espetáculos puramente voltados à diversão, o que é considerado como um dos principais motivos da decadência desse movimento, que findou por volta de 1730, embora influencie atores e pelo mundo até hoje.

O que também contribui com esse aspecto popular, de fácil reconhecimento entre as diferentes sociedades, era o fato de que algumas personagens se repetiam entre os grupos e peças apresentadas, variando apenas as histórias a serem contadas. As características dessas personagens, como menciona a pesquisa de Vendramini, “São sínteses arquetipais das principais funções em que se dividiam as pessoas, naquela determinada sociedade”.

Exemplos marcantes de personagens são Pantaleão, o comerciante rico e avarento; o Capitão, convencido, mas que, na verdade, é um covarde; e o trio que estendeu sua fama até o carnaval brasileiro: Pierrô, bobo apaixonado pela camponesa Colombina (personagem normalmente interpretada sem máscara) que, por sua vez, é amante de Arlequim, o servidor sempre alegre, preguiçoso e romântico, muitas vezes responsável por realizar feitos acrobáticos em cena.

Não se tem registros precisos de quando ou como a commedia dell’arte chegou ao Brasil, tampouco sobre como algumas de suas personagens se tornaram símbolos carnavalescos no nosso país. “Desde 1500, 1600, esses grupos de atores se formavam, se estabeleciam e viajavam muito, pode ser que um deles tenha vindo aqui para o Brasil”, pondera Góis. 

Contudo, é fato que, com a migração dessa prática para países tão distintos, ela modificou e também sofreu influências de diversos elementos culturais. “E isso não é só com a commedia dell’arte, qualquer cultura, quando inserida em outro contexto, vai influenciar esse outro contexto, e o outro contexto vai influenciar ela”, Góis esclarece. A relação com o carnaval é um grande exemplo disso. No momento do surgimento da commedia dell’arte já se usavam máscaras no carnaval de Veneza há muito tempo. Além disso, vários países, ao se tornarem palco da commedia dell’arte, acabaram por fazer novas adições à imensa lista de personagens características dessa tradição teatral, como é o caso do Capitão, que surgiu na Espanha.

Se parar para analisar os canovacci encontrados, ao longo dos aproximados 200 anos de tradição acumularam-se mais de duas mil personagens na commedia dell’arte. Umas, porém, acabaram ganhando mais destaque e fama que outras. “Muitos desses personagens passaram pelo carnaval”, comenta Góis. Talvez alguns deles tenham surgido do carnaval, outros incorporados pelas festividades após uma apresentação marcante em determinado local “Então o pessoal começa a fazer aquela representação a partir daquele personagem”.

No carnaval brasileiro, os mais famosos herdeiros da commedia dell’arte são o trio Arlequim, Colombina e Pierrô, o eterno triângulo amoroso que, segundo o trabalho de Vendramini, habita “As telas de cinema e as letras de músicas populares brasileiras desde 1916, quando foi realizado o filme carnavalesco em cinco partes Pierrô e Colombina, aproveitando o sucesso da valsa, de mesmo nome, de autoria de Oscar de Almeida e Eduardo das Neves”.

Editado por Bruna Blankenship

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