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03/05/2020 às 20h20min - Atualizada em 03/05/2020 às 20h20min

A cultura judaica por trás de 'Nada Ortodoxa'

Lançamento recente da Netflix conta a história de uma jovem que fugiu de uma comunidade tradicional judaica nos EUA

Renata Rodrigues - Revisado por Mário Cypriano
Imagem: Reprodução/Netflix

A Netflix tem investido cada vez mais na diversidade do seu catálogo, dando oportunidade a produções estrangeiras não americanas. Um dos títulos recentes é Nada Ortodoxa, apresentando a história de Esther Shapiro (Shira Haas), uma jovem nascida e criada em uma comunidade ultraortodoxa em Williamsburg no Brooklyn, NY, que foge para a Europa. A minissérie tem quatro capítulos, foi toda produzida na Alemanha e mistura realidade e ficção.

A história de Esther se passa em duas cidades e mostra duas perspectivas da personagem. As cenas de Nova York, nos Estados Unidos, reproduzem sua rotina enquanto mulher da comunidade judaica nos EUA, e é uma adaptação do livro de memórias de Deborah Feldman, “Unorthodox: The Scandalous Rejection of My Hasidic Roots”, Não ortodoxo: a rejeição escandalosa de minhas raízes hassídicas, em tradução livre. Já as cenas em Berlim, na Alemanha, são pura ficção.

A comunidade que o seriado apresenta é a Satmar, originária da cidade Szatmárnémeti, na Hungria. Fundada em 1905, após a Segunda Guerra Mundial, o grupo mudou-se para Nova York a fim de se reestabelecer e perpetuar a fé judaica. No entanto, o judaísmo se distribui em diversas correntes, segundo Michell Pinto, membro da Diretoria de Assuntos Religiosos da Sinagoga Sukkat Shalom, “o judaísmo é um segmento plural e muito diversificado em seus costumes, porém temos um ponto comum convergente que é a nossa cultura, tradições, regras e todos esses valores norteiam nossos princípios, que podem ser estranhos em outras culturas e sociedades, contudo prezamos pelos valores da ética e moral judaica.”

Em Nada Ortodoxa, alguns desses costumes chamam atenção e podem causar estranheza, como as vestimentas, a cerimônia de casamento e o papel da mulher na comunidade judaica. Buscando entender a veracidade do que é apresentado no seriado relacionada à religião, os representantes da Sinagoga Sukkat Shalom e do movimento juvenil Yad Uzeret, nos contaram como são esses costumes na comunidade em que frequentam, que segue a corrente dos Sefaradim, oriundos da Espanha e de Portugal.

Foto: Copyright Anila Molnar/Netflix

Foto: Copyright Anila Molnar/Netflix

A Cerimônia de Casamento

Um dos princípios do judaísmo é que o casamento deve acontecer entre judeus. O casamento entre pessoas de diferentes religiões é extremamente proibido, inclusive um dos mandamentos bíblicos é o de não ter relacionamentos mistos. A explicação é de que a cultura judaica “sobrevive porque é passada de geração a geração. Quando há o casamento misto, pode haver uma interrupção dos repasses genuínos dos costumes, tradições e princípios monoteístas que são o alicerce do judaísmo”, aponta Michell Pinto.

A trama da Netflix gira em torno da cerimônia de casamento de Esther Shapiro. Na série, conhecemos com detalhes o processo de casamento judaico: o casamenteiro da família, a conversa dos noivos e o ritual do casamento. Como dito pelos representantes de Sukkat Shalom, as cerimônias de casamento são bastante semelhantes em quaisquer costumes que a Kahal (congregação) faça parte. “O casamento judaico torna-se santo (Cadosh) através de todo o significado que permeia a cerimônia em todos os detalhes, através da consagração (Kidushin), e os alicerces que deverão formar o novo lar e o relacionamento do casal”.

Segundo Michell, o ato do noivo cobrir o rosto da noiva com o véu se chama Badeken e surgiu no casamento de Jacó (Yaacov), que teve sua noiva trocada pela irmã. Após esse episódio, o noivo costuma confirmar se é mesmo sua noiva antes do início da celebração. Na sequência, o rito de cobrir o rosto da noiva, chamado de Tsiniut, demonstra recato e modéstia judaica, porém os Sefarditas não adotam o ato.

O “palco” nupcial que vimos no final da solenidade representa o novo lar que se formou com o casamento. O Chupá, nome da estrutura, é feito com Talit, uma espécie de manto de oração dos homens e “lembra o Ohel Avraham (Tenda de Abraão) que era receptiva aos viajantes”.

Ao final da cerimônia, é mostrado uma cena de Esther Shapiro raspando a cabeça e aderindo a uma peruca. A prática é comum da linha Askenaze, de Judeus do leste europeu, e representa a ideia de proteção dos olhares interesseiros masculinos. Yochanan Barboza, membro da secretaria de Divulgação e Imagem do movimento juvenil Yad Uzeret, enfatiza que não é unanimidade e varia de acordo com a comunidade. Na Sinagoga Sukkat, o usual é que mulheres usem lenços e turbantes.

Imagem: Reprodução/Netflix

Imagem: Reprodução/Netflix

O Papel da Mulher na Comunidade Judaica

Na minissérie fica claro que as mulheres judias tem um papel importante na comunidade: o de procriar e cuidar do lar. Os judeus as chamam de Akeret Habait, em português, esteio da casa. Em outras palavras, a mulher é responsável pela harmonia da casa e é reconhecida como fundamental para o bom funcionamento do ambiente doméstico.

De acordo com Michell, “o sistema familiar judaico é o do patriarcado e apesar de haver uma desconstrução sistemática é importante ressaltar que uma família bem estruturada, não financeiramente somente, mas emocional, intelectual e sobretudo espiritualmente pode dividir suas tarefas sem agredir ou avançar sobre o outro”. Sem a mulher, não existiria comunidade judaica, já que são elas que geram as vidas.
 

O Idioma

A primeira e principal língua falada pelos judeus é a hebraica. No making off de Nada Ortodoxa, os atores contam que aprenderam o idioma Iídiche para as gravações. O dialeto tem origem na Europa central e oriental, e de acordo com Yochanan é uma mescla de alemão e hebraico. Além do Iídiche, outro idioma paralelo ao hebraico é o Landino, que mescla hebraico ao espanhol. Esse último é utilizado pela Sinagoga Sukkat Shalom.
 

A Representação da Cultura Judaica no Cinema

Assim como em Nada Ortodoxa, para Michell e Yochanan, o cinema costuma representar a cultura judaica sob apenas duas óticas: a do holocausto e da crítica negativa. Complementam afirmando que a dificuldade maior é encontrar produções que tenham foco na cultura, filosofia e mística o mais verossímil possível, sem a romantização cristã e tamanho distanciamento aos costumes judaicos.

“Os judeus e seus antepassados têm mais de cinco mil anos de história e, com certeza, temos muito que pode ser aproveitado para se passar nas telonas e telinhas do mundo, ainda mais se tirassem os estereótipos de que judeus são apenas os que vestem branco e preto, tem a pele branca, os Peiot (cachinhos laterais) e um chapéu diferente”, contam.

Michell e Yochanan destacam duas produções que consideram importantes para a comunidade, pois trazem a lembrança da filosofia judaica de não esquecer um acontecimento ruim para que ele não se repita: A lista de Schindler (1993), dirigido por Steven Spielberg, ganhador de 4 prêmios Oscar, incluindo o de Melhor Filme; e O Pianista (2002), com direção de Roman Polanski, também vencedor de 4 prêmios Oscar, incluindo o de Melhor Filme e Melhor Ator para Adrien Brody.

A Sinagoga Sukkat Shalom, foi fundada por um grupo de famílias judias Bnei Anussin, praticantes da religião há mais de 20 anos, no Espírito Santo. O Movimento Juvenil Yad Uzereté é recente e busca aumentar a interação entre jovens judeus no país. De acordo com o último censo (2010), no Brasil a comunidade judaica passa de 107 mil pessoas, tendo maior concentração no estado de São Paulo.


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