Lab Dicas Jornalismo Publicidade 728x90
02/07/2020 às 22h45min - Atualizada em 02/07/2020 às 22h45min

Literatura Indígena: desconstrução do imaginário do Índio

Pesquisadora estuda como as visões românticas e heroicas delimitam o índio nas narrativas brasileiras

Larissa Lima - Revisado por Renata Rodrigues
Índios - Foto: Carol Ito/Heitor Loureiro
Desconstruir um imaginário indígena que há muito tempo foi empregado por colonizadores são papéis desafiadores de luta e resistência. As visões românticas e heroicas que delimitam o índio nas narrativas brasileiras mostram a complexidade de contempla-los em suas diversidades culturais.

A ativista Carina Oliveira Silva, Pedagoga e Mestranda em Educação com ênfase na Literatura Indígena Brasileira, viu na pesquisa uma forma de resistência. Motivada por sua ancestralidade indígena, do Povo Pataxó, carrega consigo a relevância dos estudos literários indígenas na área da educação. Considerando que há poucos trabalhos discutidos nesse meio, enquanto pesquisadora, dentro de uma universidade que está no espaço urbano, ela é capaz de lutar pela desconstrução de estereótipos movidos pela luta por uma coletividade desses povos.

Reprodução / Google

Reprodução / Google


Chegada dos portugueses nas terras brasileiras - Reprodução Internet

Compreender o contexto histórico é importante para entender a literatura indígena como manifestação política. A partir do momento em que os índios foram violados, – pela chegada dos europeus nas terras brasileiras – seus corpos foram invadidos, suas aldeias e territórios destruídos na medida que foram escravizados e classificados como povos sem alma que, segundo os ideais eurocêntricos, eram povos em posição de inferioridade e que, segundo eles, deveriam ser civilizados. “O próprio episódio do descobrimento do Brasil foi visto para os povos como uma invasão”, afirma Carina.

No século XIX, as literaturas de José de Alencar ajudaram a contornar o imaginário do índio. Em suas obras, ele limita o índio em visão romântica e heroica e essa fábula passou por muitas fases.

“Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra; sua vista perturba-se. Diante dela e todo a contemplá-la, está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo. Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco partiu. Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido. De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz da espada; mas logo sorriu.” (fragmento extraído do livro Iracema – José de Alencar)

“Essas faces não contemplam os povos indígenas”, enfatiza. Atualmente existem 300 povos e para ela, classificar um sujeito indígena enquanto índio “não é possível observar as suas especificidades”. Na etimologia, a palavra Índio, significa pessoa natural ou habitante da Índia, país localizado no continente asiático; é uma dominação que provém de um equívoco de Cristóvão Colombo que, ao tocar a ilha de Guarani pensou em ter chegado às Índias.

“É uma palavra que desclassifica esses sujeitos e que não exprime suas diversidades”, aponta. Esses obstáculos tanto da questão histórica como do imaginário que foram construídos por meio de literaturas mostra a construção de um índio como objeto e nunca a de um narrador. “Isso foi implantado e naturalizado e para a gente descontruir essas questões é um desafio”. Tais estereótipos resultam em racismo, preconceitos e visões equivocadas: a de que o índio é um ser inferior e selvagem. Embora as manifestações dos povos pela igualdade e direito à vida tenha ocorrido a anos anteriores, somente na década de
1990 que autores indígenas se reuniram para concretizar a literatura escrita.   


Jesuítas indo de encontro aos índios - Reprodução Internet

A passagem da literatura oral para a escrita é implantada pelos jesuítas que viam a necessidade de educação como a principal característica de um ser civilizado. A escrita alfabética foi então, integrado pelos colonizadores que mesmo apesar de algumas mudanças, se perpetuou por longos anos. Há povos nativos que perderam sua língua materna, mas há muitos que cultivam ainda a oralidade e às vezes, são alfabetizados. E apesar de existir a escrita, ambas as literaturas (oral e escrita) não se excluem.
 “A literatura ultrapassa a questão escrita alfabética; não só as literaturas, como a dança, os grafismos e todas as manifestações”, ressalta.
 
"Nós os índios, sempre dançamos nas nossas cantorias, como forma de manter a unidade do nosso povo e a alegria da comunidade. Se a gente cantar e dançar, nós nunca vamos acabar" (Verônica Tembé, povo Tembé).


A escritora indígena e professora da Universidade de Pernambuco, Graça Graúna, refere-se ao poema “Canção peregrina” um cantar doloroso que vem desde o exílio; um cantar tecido de um colar com muitas histórias de diferentes etnias que segundo ela se encontra na Literatura (oral e escrita) a força que precisa para sobreviver aos “bullyings” pois ainda escuta, direta ou indiretamente, dentro e fora da sala de aula que o índio não é gente:
 
Eu tenho um colar          
de muitas histórias         
e diferentes etnias.       
Se não o reconhecem, paciência.            
Haveremos de continuar             
gritando             
a angústia acumulada   
há mais de 500 anos.

Somente em 2008 que a lei de nº 11.645/08 estabeleceu a obrigatoriedade de se estudar em sala de aula a história e a cultura indígena, para o ensino fundamental, contemplando todo o currículo com ênfase na literatura, história e artes. “Nós temos o direito, mas não quer dizer que todos eles são garantidos”, confirma a pesquisadora. Para isso são necessárias políticas públicas de investimentos: “A criação de programas governamentais de livro leitura já foi um movimento para essas temáticas entrarem dentro das escolas”, lembra Carina. É uma lacuna, que ao decorrer dos anos, os nativos tenham conquistado.

O entendimento de que os Estudos Literários vêm por meio de um contexto histórico-social de enfrentamento para reconhecerem a Literatura Indígena como parte do cenário brasileiro é árduo.

Com a pesquisa ainda em fase inicial, a mestranda Carina, afirma estudar a Literatura escrita por sujeitos indígenas, – embora tenha recorrido a autores não-indígenas que tratam também dessas temáticas. “Levo o trabalho também por uma questão política: exigir direitos e mostrar o quanto a política de morte afeta a vida desses povos”, confirma. “Trabalharemos [se referindo a sua orientadora e ao grupo de pesquisa] com literaturas que não são classificadas como literatura infantil, mas que, nas livrarias, são consideradas infantis”, problematiza. Carina diz que se de fato seu campo de pesquisa for em escolas (a indecisão tomou forma devido ao Covid-19), a ideia é apresentar às crianças algumas leituras indígenas. “A gente entende as literaturas como um acesso para que as crianças possam se apropriar e ter a curiosidade de refletir a desconstrução de estereótipos”, explica. A aproximação das crianças pode vir a diminuir o estereótipo de que o índio vive somente na aldeia, mas evidenciando a elas que o indígena também vive em um contexto urbano.
           

















Adesivos de Miguel Simões (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Tratando-se em ambiente acadêmico, Carina diz que encontra desafios por parte da academia porque essas temáticas não são abordadas na maioria das vezes. “A questão do imaginário não é muito presente, é desafiador desvincular o olhar eurocêntrico”. Ela explica ainda que é difícil convidar outras pessoas para ter esse contato e que tais temáticas podem e devem fazer parte da estrutura acadêmica. Estudar a fundo essas literaturas mostra a capacidade dos movimentos de resistência, ao dar voz ao sujeito indígena, ao autor e também de todo um povo que traz marca, voz e presença política. “As literaturas apresentam aos não-indígenas questões culturais, permitindo aos leitores reconhecerem os indígenas como pessoas que fazem parte do território brasileiro”, enfatiza. Ter acesso a essas literaturas dá às pessoas o conhecimento de que os povos têm suas especificidades; os territórios são sagrados e cultivados. Além da relevância da literatura, “podemos fazer com que as gerações atuais tenham acesso as obras indígenas, que permitam cultivar outros imaginários – que não aos nossos antepassados – mas a de uma luta política que tenham políticas públicas culturais, educacionais e civis”, concluiu.  

Cartoon 

 


Link
Notícias Relacionadas »
Comentários »