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15/04/2019 às 10h04min - Atualizada em 15/04/2019 às 10h04min

“É possível parar de respirar e continuar vivendo?” dispara cartunista do dialeto piauiês

Ohana Luize
Arte: Joaquim Monteiro/ Fotos: Ohana Luize
Para preservar o modo de expressão dos piauienses, o dialeto chamado piauiês, e torná-lo conhecido através do humor e da arte visual, o artista Joaquim Monteiro já conseguiu reunir, por meio de dois livros publicados, diversos retratos cotidianos. Os materiais trazem o uso de expressões como mermã (abreviação de minha irmã, forma de chamar alguém em uma conversa), nam (jeito piauiense de falar não, especialmente quando quer enfatizar), armaria (ave Maria), mangar (rir de alguém), bulir (aborrecer), dentre tantas outras. Aos 49 anos, o professor, cartunista e designer gráfico também expressa nos desenhos uma visão de mundo para além do seu quintal, tocando em questões sociais e políticas desde os anos de 1990.
 
“Só comecei a fazer trabalhos profissionalmente após 1995, quando já havia iniciado o curso de Artes na Federal e comecei a ver meus desenhos com outros olhos. Até então era só ‘uma diversão sem futuro’. Em 1996, na primeira participação em um concurso de caricaturas (o Salão Internacional de Humor do Piauí) já emplaquei um desenho entre os 10 melhores. Mesmo assim, só comecei a priorizar o desenho de humor 10 anos depois, em 2006, quando resolvi usar as redes sociais para divulgar meus trabalhos. Em 2011 lancei meu primeiro livro de cartuns (Dê gaitadas a folote com o Piauiês) e eles viraram memes nas redes sociais”, conta Joaquim sobre os trabalhos artísticos.
 
Graduado em Educação Artística com habilitação em Artes Plásticas pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) e especialista em História da Arte e Arquitetura, Joaquim prefere usar o título de arte-educador. Ao longo da trajetória ele já expôs trabalhos em eventos como: XIV Salão Internacional de Humor do Piauí em Teresina-PI (1996); Mitos e Lendas – República dos Quadrinhos em Natal-RN (2010); Traços Pelos Direitos Humanos do Instituto Henfil e ABI-RJ (2013); Salão de Humor da Unimed em Teresina (2015); Exposição sobre a Jovem Guarda no projeto Artes de Março do Teresina Shopping (2018). Dentre as modalidades de desenho ele destaca: “gosto muito do desenho realista, retratos realistas em especial, mas minha especialidade é mesmo o desenho de humor - o cartum, a charge e a caricatura”.


 
Como referências artísticas ele preserva grandes nomes a exemplo de Michelangelo e Leonardo da Vinci, mas segue uma vertente expressionista e classifica: “Van Gogh é Deus!”. Nas peças de humor há espaço para outros como “o Angeli, o Glauco e a Laerte. Do Angeli, em especial”.
 
Na função de professor, ele acredita em uma arte “inconformada, transformadora (em sua essência) e revolucionária, não só do ponto de vista técnico-formal, mas do ponto de vista do conteúdo”. O artista pessoalmente aparenta comportamento introspectivo, meio tímido, e fala que gosta de deixar o ambiente leve e quase informal nas aulas que leciona nas redes estadual e municipal de ensino público em Teresina. Para ele, uma das missões como arte-educador é fazer valer o que chama de “função desalienadora da arte. A arte é irrequieta, a arte quando se acomoda vira o principal instrumento do establishment*. Mas quando ela segue sua natureza, ela sempre será contestadora, revoltada e revolucionária”.
 
Essa visão pode ser considerada polêmica. Nos trabalhos de Joaquim é possível observar a acidez nas críticas que faz e um posicionamento político abertamente de esquerda. “A charge, seguindo a tradição de Daumier, é uma carga de críticas, de humor mordaz, fino e certeiro. Mas existem chargistas que utilizam mais ou menos humor. Latuff, por exemplo, tem como filosofia não usar o humor, seu trabalho é mais jornalístico, mais descritivo de uma realidade. Já outros usam um humor mais refinado, como a cartunista Laerte. Eu sou do time dos que gostam do humor escrachado, já citei que sou fã do Angeli. Um humor meio anarquista. Meus cartuns e minhas charges são bem humoradas e são carregadas de uma critica da realidade cheia de sarcasmo. Esse tipo de humor incomoda. O mestre Henfil nos deixou uma lição, que o verdadeiro humor tem de incomodar os que estão no poder, e não os oprimidos. Portanto, carrego a pena contra os que estão bem, no conforto de seus privilégios e do poder”, conta.
 
Questionado sobre retaliações, ele diz que nunca ocorreu diretamente. “Já ouvi relatos de pessoas que queriam me processar por essa ou aquela charge postada ou que estivesse circulando por ai. Mas até agora nada me chegou em mãos”.
 
Piauiês e outros trabalhos


 
Os livros “Dê gaitadas a folote com o piauiês” e “Dê gaitadas a folote com o piauiês II – A peleja” foram lançados, respectivamente, em 2011 e 2015. “O primeiro foi resultado de um processo, digamos, natural. Eu gostava de fazer cartuns carregados de expressões regionais que eu ouvia quando criança, muitas delas já tinham caído até no esquecimento. Depois conheci ‘A Grande Enciclopédia do Piauiês’, do jornalista Paulo José Cunha, com ilustrações do cartunista Jota A, e então passei a mergulhar nessa obra e pinçar muitas expressões que foram utilizadas nos meus cartuns”, explica o cartunista que coleciona leitores dentro e fora do país em lugares como Argentina, Portugal, Espanha e Itália.
 
“Já o segundo veio como consequência do primeiro, melhor elaborado e mais maduro, com melhor acabamento, tendo o cuidado de não colocar cartuns que reforçassem opressões, cuidado que não tive no primeiro”, explica Joaquim que adianta estar trabalhando na produção de um terceiro projeto. “A ideia inicial é uma coletânea com alguns escolhidos dos dois primeiros e alguns inéditos. Vamos ver se dá certo”.
 
O jornalista Inácio Pinheiro produziu em 2016, junto com um grupo de estudantes universitários, atualmente profissionais, o documentário “Piauiês nosso de cada dia” para tratar das expressões divertidas e cotidianas. Durante a produção a equipe lembrou o trabalho de Joaquim e os dois livros sobre o assunto. A obra então foi objeto de estudo do grupo e baseou esquetes do documentário que contou com entrevista do autor.
 
“O que é mais legal do trabalho do Joaquim Monteiro é que a obra dele é acessível. Não se trata de um texto denso, de uma leitura complexa. São charges, gravuras, caricaturas com histórias e expressões muito engraçadas. Tanto as pessoas do Piauí como as de fora entendem e se divertem. São poucos os trabalhos como o dele. É muito importante para valorização da nossa história, da nossa cultura, do nosso jeito de ser”, opina o jornalista Inácio Pinheiro
 
As expressões correspondem ao dia a dia de pessoas que residem na capital, no interior e também aqueles que moram fora do estado, mas mantêm a tradição. “Não existe (ou não deveria existir) preconceito, porque todo mundo se entende e se enxerga nesse modo de falar. São expressões típicas daqui que nos unem e nos fazem únicos. É a nossa identidade”, lembra Inácio.


 Esse reconhecimento é considerado por Joaquim uma das suas maiores emoções como artista. “A grande satisfação do artista é ver a reação do público ante sua obra. Para mim, a maior surpresa mesmo foi ver a repercussão dos cartuns sobre piauiês e dos meus dois livros”. Ele utiliza as redes sociais Facebook e Instagram para divulgar os trabalhos e fala das dificuldades no mercado local para quem deseja viver de arte. “O artista piauiense para viver de arte tem que olhar para fora, fazer o máximo para que sua arte chegue aos grandes centros, e lá disputar corpo a corpo, com meio mundo de gente. Mas é fundamental participar de exposições fora do estado”.
 
Joaquim Monteiro declara um amadurecimento na sua arte e fala sobre o conceito de politicamente correto. “Acho que nos últimos 10 anos minha arte passou por um processo de amadurecimento e de responsabilidade social. Hoje sou mais consciente, mais maduro. Minha arte tem um caráter de classe. Sou mais politizado e atento com as demandas das minorias oprimidas. Não chamo de “politicamente correto” porque não gosto de me apossar de expressões cunhadas pelos inimigos para depreciar, digo uma arte classista e engajada politicamente contra as opressões”.
 
O piauiense procura escrever, desenhar e viver a arte em todos os âmbitos da vida e sobre a possibilidade de parar, Joaquim é rápido em dizer: “É possível parar de respirar e continuar vivendo? Ou de bombear o sangue e permanecer de pé?”. As respostas através de questionamentos já indicam que essa peleja (em piauiês podemos considerar como trabalho, tarefa árdua) deve continuar.
 
*Ordem ideológica, econômica, política e legal que constitui uma sociedade ou um Estado.
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