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03/07/2020 às 10h02min - Atualizada em 03/07/2020 às 08h53min

A opção pela cegueira frente ao coronavírus

Como os poderes públicos e a sociedade têm se organizado para diminuir as desigualdades sociais agravadas pela pandemia?

Franciele Rodrigues - Editado por Bruna Araújo
Cleo Velleda/Folha Imagem
“Ensaio sobre a cegueira”, livro ícone do célebre José Saramago, foi publicado pela primeira vez em 1995. A obra que é a mais conhecida do escritor português recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1998. Em 2008, o livro foi adaptado para filme. A produção audiovisual recebeu o mesmo nome atribuído às páginas escritas (“Blindness” em inglês) e foi dirigida pelo cineasta brasileiro Fernando Meirelles com parceria de atores e demais profissionais oriundos do Japão e Canadá.

Mais de uma década depois, em março de 2020 e em meio à pandemia da Covid-19, o romance apareceu entre a lista dos mais vendidos da Revista Veja. Sou uma das pessoas que revisitou Saramago nos últimos meses. O pedido de socorro é acompanhado da tentativa de compreender tudo que tem nos atingido e roubado o ar, para além do vírus ou juntamente com ele.

“Ensaio sobre a cegueira” conta a história de uma epidemia de cegueira branca que se espalha pela cidade e acomete um a um, comprometendo, assim, o funcionamento da sociedade e instaurando o caos. Os personagens não são identificados por nomes, mas pelas características físicas que possuem ou profissões que exercem. O “Primeiro Cego” é um homem que esperava o semáforo autorizar a sua passagem quando é atingido por um nevoeiro branco que lhe rouba a visão “de repente a realidade tornou-se indiferenciada à sua volta”. A fim de tentar solucionar o problema, ele procura o médico, que após a consulta, apresenta os mesmos sintomas, ou seja, a partir do contato os seus olhos também passam contemplar somente uma imensidão branca à frente.

Com isso, a cegueira se alastra por toda a cidade, a única que não é afetada é a “Mulher do Médico”. O governo local resolve juntar todos os cegos em um mesmo prédio, local em que antes habitava um manicômio. Com a chegada de cada vez mais pessoas e a escassez dos recursos, os indivíduos passam a lutar pela sobrevivência e a razão perde espaço para os instintos: matam uns aos outros e comem as carnes, estupram, roubam, praticam todos os tipos de violência.

Então, o “Primeiro Cego”, “A mulher do Primeiro Cego”, “O médico”, “A mulher do Médico”, “O Velho” e “A Rapariga (mulher jovem)” se unem a fim de estabelecer uma convivência pacífica entre os que estão lá e os novos cegos que não param de chegar. Um incêndio ocorre e o abrigo é destruído. “A mulher do Médico” nota que a cidade está arruinada, mortos e vivos estão lado a lado. Há sujeira, ratos, fezes por todos os cantos. Diante da calamidade, o desafio é garantir os insumos mínimos para viver fora do antigo manicômio.

O cenário é fictício, porém não parece tão distante daqui. Assim que os primeiros casos de coronavírus foram confirmados no final de fevereiro, por diversas cidades brasileiras as pessoas lotaram supermercados e estocaram alimentos, produtos de higiene pessoal, mesmo diante da informação de que não havia perigo de desestabelecimento. O pânico inicial é compreensível, mas os efeitos podem ser duros, já que a grande procura por mercadorias tende a aumentar os preços, tornando o consumo ainda mais desigual. O capitalismo já cria isolamentos entre as pessoas há tempos.

Com as rotinas alteradas, aumenta a ansiedade para que possamos voltar ao que chamam de “normalidade”. Mas, como o que nos é comum é construído? Escorrendo o suor de quem o dia a dia segue como acostumamos que ele seja? Será que pela manutenção da pretensa “normalidade” não nos deixamos cegar? Em quarentena, a exemplo dos personagens de Saramago, as desigualdades sociais tornam-se ainda maiores. Temos visto que o privilégio ao distanciamento físico é uma realidade para poucos. Temos visto mesmo?

Ao conhecermos a trajetória da Covid-19 no Brasil, percebemos que a doença, primeiramente, atingiu as regiões mais favorecidas das cidades, foi trazida por pessoas que regressavam de viagens internacionais, sobretudo, da Europa, e que dispunham de planos de saúde. Entretanto, olhando para os dados disseminados pela Secretaria Municipal de Saúde, é possível verificarmos que até 22 de junho, São Paulo, epicentro da doença no Brasil, registrava 11.727 mortes e 119 mil casos confirmados de covid-19. Ainda, constatamos que os bairros que apresentaram os maiores índices de mortalidade estão localizados nas franjas da cidade como: Sapopemba, Brasilândia, Capão Redondo, entre outras regiões periféricas. Quais fatores corroboram para este cenário?

Mais recentemente, no último 02 de julho, a CNN Brasil expôs resultados de um novo estudo financiado Instituto Semeia, Grupo Fleury, Ibope Inteligência e Todos pela Saúde. A pesquisa demonstrou que o número de infectados pelo novo coronavírus em São Paulo é duas vezes e meia maior nos bairros mais pobres da cidade. A escolaridade também é um marcador social importante. De acordo com a investigação, 22,9% das pessoas que não completaram o ensino fundamental foram contaminadas. O número cai para 5,1% entre os terminaram o ensino superior.

Reportagem publicada pelo Nexo Jornal, em 23 de março de 2020, intitulada: “Por que as periferias são mais vulneráveis ao coronavírus” nos traz algumas respostas ao ouvir especialistas de diferentes áreas. O texto aponta que o abastecimento de água intermitente (vale lembrar que cerca de 35 milhões de pessoas não possuem acesso à rede de água potável, segundo o Instituto Trata Brasil), a falta de recursos para comprar sabão, álcool e as dificuldades para cumprir o isolamento social, estas últimas reflexos de vínculos de trabalhos informais e com baixas remunerações bem como às habitações que dispõem de poucos cômodos, quase nenhuma ventilação e, ainda assim, abrigam várias pessoas.

Além disso, a oferta de serviços gratuitos de saúde nas periferias também enfrenta o sucateamento, principalmente, após o estabelecimento da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 55, em 2016. A determinação limita o aumento dos gastos públicos durante 20 anos. Mediante ao avanço da Covid-19, os postos de atendimento tornaram-se ainda mais procurados ao passo que as demais enfermidades também não cessaram e demandam atenção. Enxergamos estas carências de todos os dias? Saramago ajuda: “É desta massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade”.

A interseccionalidade entre renda e pertencimento étnico racial é inevitável no Brasil, já que por aqui, 75% dos mais pobres são negros, de acordo com levantamento elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018. Voltando à capital paulista, em maio com base em boletins epidemiológicos, o risco de morte por covid-19 entre negros era 62% maior do que brancos. As projeções drásticas têm sido confirmadas, de acordo com investigação empreitada pela Agência Pública, há uma morte para cada três brasileiros negros hospitalizados, enquanto entre brancos a proporção é de uma morte a cada 4,4 internações.

Mas há momentos em que a opção pela cegueira é mais confortável, e o Ministério da Saúde só começou a separar os registros por cor a partir de 11 de abril, quase um mês e meio após a confirmação do primeiro caso no país, e devido à imensa resistência do movimento negro, ao qual nunca é dado o privilégio de fechar os olhos. “Se queres ser cego, sê-lo-ás” - alerta o escritor. Os efeitos do coronavírus sob as mulheres podem ser observados em diferentes dimensões também. Assim que a pandemia foi decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização das Nações Unidas (ONU) - Mulheres publicou um documento apresentando diversas medidas para garantir a igualdade de gênero enquanto o mundo atravessa a crise sanitária. Uma das principais preocupações do documento é voltada para os profissionais de saúde, já que 70% da categoria são compostas por mulheres.

No Brasil, de acordo com o Conselho Federal de Enfermagem, 84,6% dos profissionais da área são mulheres. A predominância do sexo feminino entre as profissões associados ao cuidado advém da idéia naturalizada, amplamente disseminada, de que é função das mulheres – e apenas delas – realizarem os afazeres domésticos (segundo o Banco Mundial, as mulheres dedicam três vezes mais tempo em serviços do lar do que os homens), também cabe a elas garantirem a educação dos filhos, os quais estão passando mais tempo em casa devido o fechamento das escolas.

No campo científico, uma análise desenvolvida pela BMJ Global Health identificou que desde o início da crise sanitária provocada pela covid-19, apenas um terço dos trabalhos publicados sobre o assunto conta com mulheres entre as autoras. As opressões são múltiplas, o documento “Violência doméstica durante a pandemia da covid-19”, criado pelo Forum Brasileiro de Segurança Pública, identificou que em 12 estados, os casos de feminicídio cresceram 22,2% entre março e abril deste ano, em comparação ao mesmo período de 2019. Percorrendo as linhas de Saramago, uma inquietude persiste até o último ponto final (que aliás não são muitos usados pelo autor): os olhos daqueles que só vislumbram um nevoeiro estão saudáveis (como a maioria de nós que chegou até aqui na leitura), ou seja, não trata-se de uma cegueira física, mas estes mesmos olhos, verdadeiramente, veem, reparam? 

“Por que cegamos, não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, cegos que vêem, cegos que vendo, não vêem”. 


 
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