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10/07/2020 às 17h00min - Atualizada em 14/07/2020 às 14h00min

Questões China-Brasil: as discussões despertadas pela pandemia

Uma análise das associações polêmicas que o brasileiro faz da potência mundial

Marina Semensato - Editado por Caroline Gonçalves
Fonte: AgroRevenda

Nos últimos anos, a China tem se destacado como potência mundial. Esse destaque foi, inclusive, uma das questões que serviram de base para teorias conspiratórias sobre o coronavírus. Ainda que o local do surgimento da doença seja um mistério, as especulações de que ela tenha se originado num mercado chinês circulam nas redes diariamente, levantando debates que vão desde seus costumes alimentares até suas medidas de fiscalização sanitária. Essas discussões chamam a atenção para questões históricas, políticas e sociais que influenciam muito mais do que o seu cotidiano, mas também aspectos que aproximam a China de outros países.

 

A Grande Fome: uma mancha na história chinesa

De acordo com o historiador e pesquisador em China moderna, Rud Eric Paixão, desde quando a República Popular foi fundada, em 1949, o país sofria sanções constantes dos Estados Unidos e vivia sob a ameaça de uma invasão. Durante a Guerra da Coreia, em 1950, a tensão entre China e EUA, que estavam de lados opostos no conflito, cresceu após a decisão americana de intervir na região - o que a China interpretou como “uma ameaça direta à sua segurança nacional”, completa o historiador. 

 

Internamente, a China passava por problemas desde os anos 30: além da invasão japonesa no começo da década, conflitos civis somados à falta secular de um governo fortificado criaram um cenário delicado no país. O grande contingente populacional, desfalques na produção agrícola e industrial, conflitos políticos internos e a intimidação constante de potências estrangeiras criaram uma instabilidade desesperadora no país.

 

O período de dificuldades levou o governo a criar o “Grande Salto Adiante”, um plano de reestruturação das produções agrária e industrial, que foi implantado em 1958. Seu objetivo era acelerar o desenvolvimento econômico da República Popular da China e superar a Grã-Bretanha em 15 anos. Um dos pilares da medida era a colaboração do povo, que foi dividido entre comunas de produtores rurais, construtores de obras públicas de infraestrutura e fabricantes de aço. 

 

Apesar das expectativas, o governo chinês não previu os vários problemas que levariam o Grande Salto ao fracasso: o aço produzido era de baixa qualidade, a mão de obra agrícola foi desviada para obras políticas, houve o aumento da inflação quanto aos números da produção de alimentos feitos pelos quadros locais e por fim, os desastres naturais que aconteceram em 1959 e 1960. Ainda em 1960, vários técnicos da União Soviética que orientavam 170 projetos industriais voltaram para o seu país, o que obrigou as autoridades a reajustarem ainda mais a economia.

 

Os métodos irrealistas do Grande Salto custaram milhões de vidas pela fome, exaustão e violência - esta última, principalmente, a quem discordava do governo, como foi relatado no livro "A grande fome de Mao", do pesquisador Frank Dikötter, especializado em China Moderna.  Segundo Rud Eric, “os historiadores têm certa dificuldade ao falar sobre o período, pois muita coisa simplesmente não foi registrada.” Hoje em dia, estima-se que pelo menos 20 milhões de pessoas morreram na época.

 

Nem tudo é o que vemos

Mesmo que se pense numa correlação entre o período da Grande Fome e o consumo de animais silvestres, associação feita comumente pelos países do ocidente, é difícil saber o que, de fato, influenciou a gastronomia chinesa. Existem, entre as 56 etnias que formam sua população, questões culturais, religiosas e econômicas que precisam ser consideradas para evitar a generalização. Porém, ao contrário do que é muito difundido pelas mídias - principalmente as do continente americano, a alimentação da China se baseia em grãos, massas, carne de frango e carne suína. 
 

Os pratos com animais silvestres e insetos são mais encontrados nos centros turísticos do país e, pelo seu caráter de iguarias, não possuem um preço tão acessível. Por isso, Rud Eric acredita que o turismo é, na verdade, um dos sustentos dessa culinária, pela demanda e oferta dos viajantes. “Assim, os chineses que vivem do serviço aos turistas, tanto como guias quanto como vendedores, oferecem esse tipo de produto. Nisso, acabam reforçando a própria pré-concepção que o estrangeiro tinha sobre o país e sobre o que encontraria lá”, conclui.
 

Xiong Ziwei é professora de chinês no Instituto Confúcio da Unesp de Bauru há dois anos. Ela, que gosta de ser chamada de Panda, saiu do interior da província de Hubei (a 200km da capital Wuhan) e veio para o Brasil pela parceria de sua faculdade na China e a Unesp. Para a professora, o jornalismo brasileiro, muitas vezes, colabora com a visão de estranheza que o país tem dos costumes chineses e reforça o que foi dito sobre as iguarias: “A mídia brasileira mostra os hábitos alimentares da China de um jeito meio exagerado (...) essas comidas exóticas, por exemplo, espetinho de escorpião, inseto frito, sopa de barata, morcego, existem no centro turístico, normalmente quem experimenta são os estrangeiros.”

 

Mas e o coronavírus, afinal?

Com o seu passado que envolve o aparecimento de algumas doenças, como a sars (síndrome respiratória aguda grave), em 2003 e a gripe aviária, em 2005, a China se tornou alvo de muitas críticas. Agora, os questionamentos sobre o consumo de animais silvestres se intensificaram, apesar de não se ter, de fato, a comprovação de que o coronavírus tenha origem chinesa. Inclusive, um estudo liderado por pesquisadores da Universidade de Barcelona identificou, em quatro países, a presença do vírus em amostras de esgoto congeladas antes do primeiro caso ser notificado em Wuhan. Ou seja: sua circulação pode estar acontecendo entre os países há muito mais tempo do que se tem conhecimento. Ainda assim, a responsabilidade pela pandemia é atrelada à China e suas iguarias turísticas, mesmo que não existam estudos que comprovem sua relação com o surgimento da doença.

 

Até hoje, uma das únicas certezas dos pesquisadores é a de que o vírus seja de origem natural e evolução animal, provavelmente pelos morcegos - e não em laboratório. A Nature Medicine publicou uma artigo que defende a evolução natural do vírus, tanto pela sua forma, que possui elementos que “se agarram” nas paredes das células animais e humanas, quanto pela diferença no seu genoma em comparação às versões anteriores do coronavírus: se sua criação fosse, de fato, laboratorial, seria necessária a utilização de um genoma de um vírus patogênico conhecido.

 

Apesar da falta de provas e evidências de envolvimento com o vírus, o governo chinês se prontificou em reforçar a fiscalização do mercado de animais. Em maio, a empresa estatal de comunicação, China Global Television Network (CGTN), publicou uma medida estabelecida pelas autoridades de Wuhan que proíbem a caça e o consumo de animais silvestres, com o objetivo de reforçar as leis de proteção à fauna, de diminuir o comércio ilegal dessas espécies e consequentemente, o seu consumo. As diretrizes, que têm validade de cinco anos, também informam as condições para a criação e ingestão das espécimes.

 

As viroses e o Brasil: acusar é perigoso

Com toda a polêmica envolvendo as teorias da origem do vírus, outras dúvidas começaram a aparecer: o quê, de fato, pode influenciar no surgimento de doenças nos animais, com potencial de infectar os humanos? De acordo com André Luiz Mota da Costa, médico-veterinário e especialista em animais selvagens, é natural a circulação de viroses entre os bichos, de forma assintomática, com baixa ou nenhuma letalidade. O problema é quando aquela espécie sofre com um fator de desequilíbrio ambiental. “Aumento na densidade populacional, poluição, agrotóxicos, destruição de habitats ou qualquer outro fator que cause desequilíbrio ambiental pode desencadear surtos virais em animais de vida livre”, explica o especialista.

 

Outra coisa pontuada pelo médico-veterinário é que, no Brasil, também existe o risco do surgimento de um vírus com potencial pandêmico. “Além da alta taxa de destruição de nossos habitats, temos grande número de pessoas que consomem carne de caça em todo o Brasil. Muitas vezes essa carne é vendida em mercados como na China, com alta circulação de pessoas, principalmente no Norte e Nordeste”, afirma. Casos pequenos e não tão conhecidos de doenças causadas pelo consumo de carnes silvestres já aconteceram no Brasil. Por exemplo, em janeiro de 2019, no Piauí, foram identificados mais de 100 casos de micose pulmonar, causada por um fungo transmitido pelo manejo e consumo de tatus. 
 

No Brasil, as diretrizes que tratam da regulamentação do comércio e consumo de animais silvestres não são bem centralizadas e definidas: são tarefas do Ibama, Polícia Ambiental, secretarias de Meio Ambiente e Polícia Rodoviária Federal. De qualquer forma, a caça de determinadas espécies é proibida, mas dados levantados pela Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas) estimam que, anualmente, cerca de 38 milhões de espécimes são retiradas da fauna brasileira em atividade ilegal. 
 

Não se sabe a porcentagem do tráfico que é voltada para o consumo no país, tanto pela falta de fiscalização quanto pelos dados confusos que regulam as permissões para a sua comercialização. De qualquer forma, o consumo de carnes de caça no Brasil não é tão insignificante: uma matéria publicada na Folha em 2011 mostrou que, apenas o açougue Porco Feliz, do Mercado Municipal da capital paulista, vendeu cerca de 15 toneladas de carnes selvagens em 2010. 

 

Preconceito e desinformação: outras vacinas urgentes

A busca pelas origens e principalmente pela cura da Covid-19 parou o mundo. As recomendações de isolamento social foram impostas pela Organização Mundial de Saúde e cada país está agindo da sua maneira. Com a grande maioria em casa, a movimentação aumentou nas redes. A Internet, nesse período, foi palco para diversos debates que expõem mais problemas: a desinformação e o preconceito contra a população asiática aumentaram significativamente. 

 

A professora Panda (Xiong Ziwei) disse que, nesses dois anos no Brasil, já sofreu preconceito cinco vezes. Ela ainda relatou um episódio recente de racismo que sofreu nas redes sociais: “Eu pedi um Yakisoba num restaurante japonês aqui, só que comida veio cheia de bichinhos. Eu postei no grupo de Facebook para pedir ajuda e resolver o problema, e a postagem hitou no grupo, tinha quase mil comentários, vários comentários racistas! Disseram que ‘isso é a Yakisoba chinesa original’, ‘chineses gostam de comer assim mesmo’, ‘se isso fosse na China nem ia reclamar’... E começaram a atacar os chineses, falando que [o povo] chinês é tudo sujo, porco e tal. Esse dia pra mim foi péssimo, tanto pela comida quanto pelos comentários racistas”.

 

Para a psicóloga Ana Flávia Ribeiro, uma explicação plausível para o aumento da discriminação contra os asiáticos no Brasil durante a pandemia se deve a busca incansável do ser humano pelo autor do seu desconforto. “É uma situação nova e tudo que é novo, qualquer mudança, gera insegurança e medo e com isso a busca por explicações, que muitas vezes não fazem sentido, infelizmente cheias de preconceitos (...) as pessoas preferem acreditar em algo que tira a responsabilidade delas no que pode vir a acontecer”, conclui.

 

Em março, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL - PR) gerou polêmicas ao afirmar, numa rede social, que a China era a responsável pela crise do novo coronavírus. Um mês depois, foi aberto um inquérito contra o - até então - ministro da educação, Abraham Weintraub, por prática de racismo contra a China. Weintraub afirmou, via Twitter, que o coronavírus era parte de um plano para a dominação mundial e ainda fez piadas sobre o estereótipo do sotaque chinês no Brasil, utilizando o personagem Cebolinha, da Turma da Mônica. Para Ana Flávia, é o discurso problemático das autoridades “que acaba dando mais força a quem tem feito discriminações”. 

 

Na visão de Rud Eric Paixão, as atitudes tomadas durante a pandemia podem afetar as relações políticas e, consequentemente, econômicas entre os dois países ainda mais se forem considerados os altos números da exportação brasileira de soja e o aumento dos lucros dos latifundiários em virtude da alta do dólar. “Qualquer tentativa do governo brasileiro contra o governo chinês repercutiria negativamente em um estrato economicamente poderoso da população”, afirma o historiador.

 

Atualmente, a relação Brasil-China é dinâmica e muito proveitosa para o Brasil, tendo em vista que a China está entre as principais fontes estrangeiras de investimento direto no país e ocupa o primeiro lugar no ranking de exportações em 2019, mesmo ano em que a parceria comercial entre os países resultou num superávit comercial de 28 bilhões de dólares para o Brasil, segundo o portal da Comex Stat


 

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