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17/07/2020 às 12h16min - Atualizada em 17/07/2020 às 11h58min

Café com Balzac

Existem influências entre as escolas literárias, isso é um fato, mas o realismo e a literatura contemporânea dividem semelhanças indiscutíveis

Bárbara Contiero - Editado por Bruna Araújo
Pintura representando o autor francês Honoré de Balzac (Crédito: Divulgação/Companhia das Letras)

Certa vez em uma aula de literatura, o professor, falando sobre as escolas literárias, fez uma observação que trago comigo até hoje. Ele estava explicando a importância de entender o background histórico de cada autor, livro ou estilo e então disse: “Assim como nada vem do nada, tudo aquilo que foi escrito, foi escrito por uma razão”. Essa frase parece tão simples, mas quando entendemos que uma escola literária é influenciada por suas antecessoras, a constatação do docente ganha novas proporções.


O realismo não seria sórdido, se o romantismo não fosse tão idealizador. Talvez suas diferenças não sejam tão irreconciliáveis, pois ao passo que se distanciam, elas se misturam e nesse composto pavoneado, encontramos autores singulares, como por exemplo o francês Honoré de Balzac. Apesar da escola literária ter se iniciado com Madame Bovary, de Gustave Flaubert, o autor de O Pai Goriot foi quem o inspirou, além de autores subsequentes com suas obras e ambição, tentando demonstrar desde a maior petulância dos franceses, até suas qualidades artísticas e aptidões para amar.


O realismo francês era extremamente provinciano, pois na época muitos dos autores vinham de castas finas e famílias ricas. No entanto, a escola literária cresceu com a sordidez dos fatos. O ouro e luxo não escondiam hipocrisias e problemas, pois as páginas os ilustravam sem pudor, como apresentado nas obras da vida de Balzac, o compilado do qual ele chamou de A Comédia Humana. O romance continuava presente, mas já não era mais bonito e puro, vinha recheado com os defeitos inatos do ser humano.


Algumas das características do realismo são: o retrato fidedigno da realidade, objetivismo (descrevendo o mundo à volta e seus expoentes sem a objetividade e perfeição do Romantismo), cientificismo e materialismo (características herdadas do momento político, social e cultural vivido, isto é, agitado e progressivo), temáticas urbanas e cotidianas (afinal, o que seria mais real do que o cotidiano?), denúncias sociais, personagens profundos e com o psicológico bem expandido (nós entendemos os defeitos, mas as motivações e ambiguidade também) e críticas aos burgueses e instituições (também aquecidos pelas reivindicações políticas da época).


“O ódio, tal como o amor, alimenta-se com as menores coisas, tudo lhe cai bem. Assim como a pessoa amada não pode fazer nenhum mal, a pessoa odiada não pode fazer nenhum bem”, concluiu Balzac em Contrato de Casamento, caracterizando a sordidez dos sentimentos em sua escola literária.


Entendendo o realismo em sua síntese, conseguimos então observar as semelhanças entre a influência deste sobre a literatura contemporânea. Os livros populares continuam sendo aqueles que demonstram a realidade, sobretudo na literatura periférica. É do interesse conjunto traçar o dia-a-dia e a vivência de pessoas das quais os algozes são ignorados, ou pior, romantizados por burgueses, assim podemos chamar criadores de produtos culturais que não fazem mau ou bem para a imagem de bairros e comunidades, estas que representam grandes trechos da civilização brasileira, mas continuam tendo seu potencial artístico ignorado pelas elites.


Vale lembrar que os principais problemas e reivindicações literárias da época não são os mesmos, assim como arquitetura, tecnologia, política e moda sofreram grandes metamorfoses, tendências sociais também passaram pelo casulo dos séculos.


Tornando-se uma característica independente dos autores da época, uma parte importante do ônus realístico, o objetivismo viu sua decadência com o modernismo, mas o forte retorno com o contemporâneo.

Como pontuado pela autora Beatriz Jaguaribe em O choque do real: estética, midia e cultura (2007), parte dos produtos literários, cinematográficos, comunicacionais e - me arrisco a dizer -     “textões”, crônicas e outras ferramentas para denotar pontos de vista, são usados para retratar de forma ambígua e realista faces da violência urbana, mas também os cenários para novos figurões da s indústrias artísticas.


“O "boom" de biografias, livros de reportagem, documentários, filmes e narrativas realistas não é uma novidade para o público brasileiro, mas o que marca a produção recente é o forte apelo ao retrato da realidade em face da violência. Favelas, centros correcionais, periferias urbanas carcomidas, prisões infectadas e a saga de traficantes são alguns dos tópicos abordados”, escreve a autora em sua obra de 2007. “A despeito da variedade de códigos e registros, esses relatos ficcionais e documentais realistas constituem também uma resposta às fabricações televisivas do "real". 


Livros contemporâneos como Redemoinho em dia quente, pela autora Jarid Arraes, utilizam-se de contos para demonstrar o pensamento, o cotidiano, a singularidade dos seres humanos em condições - muitas vezes - adversas. A maestria em retomar a criação de narrativas do cotidiano não recomeçam no século XXI, mas sim anteriormente, com a autora Carolina de Jesus e O Quarto de Despejo, a realidade que se desprende do pano de fundo elitista - ainda que tenha boas intenções - do modernismo, demonstra que muitos talentos não chegam ao reconhecimento por uma questão de insalubridade de nossas políticas: a educação de qualidade e oportunidades iguais são um luxo para quem vive às margens turbulentas da sociedade.


O objetivismo de Balzac levou aos autores da época uma nova perspectiva e um novo ideal literário. As plácidas reuniões de alta sociedade agora tinham sua hipocrisia escancaradamente expostas, o pano fino e a maquiagem pesada não mais cobriam a cara de pau dos monarcas e burgueses.


“Por trás de toda grande fortuna há um crime”, disse Balzac em uma das obras que completa A Comédia Humana. A caça às bruxas pela corrupção foi uma das motivações da Revolução Francesa, acontecimento que datou de um renascimento político francês, mas também antecedeu o nascimento de Balzac, que viveu seus 51 anos passando pelos desmontes gradativos da monarquia francesa, a falência de lordes e barões.


Vimos a literatura brasileira passar por transformações, desde os primeiros livros realistas brasileiros demonstrando as mazelas de casamentos infelizes, da pobreza e da precariedade social e econômica, através de Machado de Assis e Raul Pompéia. Atualmente estamos assistindo um ressurgimento do realismo, desta vez de forma mais democrática. O surgimento de tecnologias, redes sociais, blogs e portais especificamente criados para enriquecer a literatura e inspirar novos autores, possibilita que sua voz possa ser ouvida, afinal, o realismo desde a síntese de sua criação foi uma forma de desabafo.


“Quando temos 20 anos, estamos convencidos de que resolvemos o enigma de mundo. Aos 30, começamos a refletir acerca dele. Aos 40, descobrimos que ele não tem solução.” (Honoré de Balzac) 

 

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