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26/07/2020 às 16h32min - Atualizada em 26/07/2020 às 16h55min

Feminicídio: uma realidade vivida por muitas mulheres brasileiras

Ao longo dos anos, a taxa de crimes de feminicídio tem apresentado um aumento contínuo comparado aos crimes de homicídio contra mulheres, revelando um aumento de casos cometidos em decorrência ao seu gênero

Ana Paula Cardoso - Editado por Caroline Gonçalves
Foto: Laurent Hamels / Divulgação: Getty Images

O levantamento realizado pelo Monitor da Violência do G1 em parceria com o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em 2019 revelou um aumento de 7,3% nos casos de feminicídio em comparação com o ano de 2018, o que totaliza em 1.314 casos de feminicídio no Brasil no ano passado, sendo este, o maior número registrado desde que a Lei do Feminicídio entrou em vigor em 2015.

Por outro lado, os homicídios dolosos apresentaram uma redução de 14,1% em um ano, registrando 3.739 casos em todo o país. Ou seja, notadamente, os crimes de feminicídio vem apresentando a cada ano um crescimento em relação ao total de mulheres assassinadas.
 

Por mais que a sociedade lute para que não haja desigualdade entre homens e mulheres, ainda é cultivada essa ideia da família patriarcal e de desigualdade entre os sexos, assim, como consequência, a criança que cresce vendo sua mãe sendo vítima da violência doméstica diariamente acaba naturalizando a situação.

É rotineiro lermos ou vermos alguma notícia sobre violência doméstica, vitimando inúmeras mulheres do nosso país, sem dúvida, você já presenciou, conheceu ou ouviu a história de alguma mulher que sofreu desse crime.

O feminicídio é o homicídio praticado contra a mulher em decorrência do fato dela ser mulher, podendo acontecer através de uma discriminação de gênero ou em decorrência de violência doméstica. Já o homicídio contra mulheres é definido como um ato criminoso em que alguém tem a intenção de matar outro indivíduo, sendo que, essa ação não possui ligação com o seu gênero.

                                                          
Sendo a primeira mulher a presidir o Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (SINDPESP), Raquel Gallinati afirma não ter passado por nenhuma implicação pelo fato de ser mulher “o desafio é grande, tanto para homens quanto para mulheres, o grande desafio está em representar os nossos pares, os nossos pleitos e a defesa das nossas prerrogativas”, afirma Gallinati.

Uma das obras jurídicas na qual foi coautora - Lei Maria da Penha: Comentários artigo por artigo e estudos doutrinários - em que dispõe sobre o direito da mulher em situação de violência doméstica e familiar de ter atendimento policial e pericial especializado, ininterrupto e prestado, preferencialmente, por servidores do sexo feminino foi selecionada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) como referência e estudo doutrinário para juízes de todo o Brasil sobre Violência Doméstica.

                                                    

“A partir do momento em que a mulher está inserida em um relacionamento abusivo ela tem que parar com o relacionamento para que ela possa evitar de forma mais eficaz ser vítima de uma próxima violência” Em sua opinião, não existe melhor momento para se fazer uma denúncia, ela afirma que o ideal é que a mulher tenha um alerta ao estar inserida em um contexto de relacionamento abusivo.


Segundo Raquel quando as mulheres utilizam de forma equivocada maneiras privadas para tentar fazer justiça, a situação pode ficar gravosa para aquela mulher, pois o agressor pode ficar ainda mais irritado ao se ver exposto na internet “hoje, as mulheres podem também denunciar através do boletim de ocorrência eletrônico, o ligue 180 e o ligue 197”.
“Não devemos nunca confundir uma solicitação de apoio e ajuda às mulheres com os órgãos oficiais de denúncia”, alerta.
 
“Nos meses de março e abril tivemos uma diminuição de denúncias de crimes através dos boletins tanto eletrônicos quanto os boletins em delegacias através de estatísticas da Polícia Civil de São Paulo, porém os crimes de feminicídio aumentaram muito em relação aos números do ano passado”, afirma Gallinati.
De acordo com dados estatísticos da Segurança Pública de São Paulo (SSP), os crimes de feminicídio no mês de março entre os anos de 2019 e 2020, apresentaram um aumento de 7 registros, subindo de 13 ocorrências registradas para 20 registros no atual ano. Já no mês de abril dos dois anos comparados, os registros de crimes de feminicídio subiram de 16 para 21.
“Agora em maio e no mês de junho diminuíram tanto os crimes de violência contra a mulher quanto os crimes de feminicídio”, conta.
https://www.ssp.sp.gov.br/Estatistica/ViolenciaMulher.aspx
 
Ao comentar sobre o resultado que as estatísticas levantadas pela Polícia Civil de São Paulo trouxeram, ela afirma que para fazerem uma análise a respeito, é necessário passar pela pandemia e analisar concretamente o que aconteceu “se houve uma subnotificação e um aumento de subnotificação ou se realmente houve uma queda drástica de crimes de violência contra a mulher”, diz Raquel.

A falta de investimentos por parte do Governo de São Paulo, acaba abalando a realização de uma segurança adequada no Estado mais rico da federação, afetando primeiramente a vítima e posteriormente o policial “a implementação de políticas públicas eficazes não são vistas na prática, porque a gente percebe que existe muita demagogia e tentativa em falar que existe um investimento necessário, mas na realidade, a gente percebe que não tem, mesmo assim, a Polícia Civil trabalha com os escassos recursos que nós temos”, declara. 

Fabiana Marques é advogada criminal,  professora, sócia no Escritório MF & FM Advocacia, presidente da Comissão da Mulher do Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estudo (IBRAPEJ), Coordenadora Adjunta do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Membra da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (ABRACRIM), Secretária da Comissão de Dados e Privacidade e membro da comissão de Direitos Humanos, ambos da OAB-RJ.



Ela atua diariamente atendendo mulheres vítimas de violência que precisam de um suporte criminal através de um advogado, esse trabalho é realizado não só no escritório em que é sócia, como também, através da Comissão da Mulher do Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estudo (IBRAPREJ) “fazemos um trabalho interessante com mulheres que não tem condição de ter acesso a um advogado, a contratação, que dependem de defensoria, que tem um conhecimento ainda menor em relação aos seus direitos”, conta.

A Lei Maria da Penha (lei 11.340/2006) objetiva a proteção da mulher, tornando crime a violência doméstica e familiar, seja física, psicológica, patrimonial ou moral. É destinada a mulheres em situação de vulnerabilidade em relação ao agressor no âmbito familiar. Observa-se, também, que a lei abrange a toda e qualquer pessoa que se identifique com o gênero feminino, ou seja, mulheres transgêneros e transexuais estão resguardadas pela referida lei.

“Por mais que a gente diga que toda e qualquer mulher pode ser vítima de violência doméstica ou de qualquer outro tipo de violência contra a mulher, fato é, que existem grupos mais vulneráveis entre as mulheres, e dentre elas, nós temos as mulheres negras, as mulheres pobres, até mesmo pela questão do conhecimento menor dos seus direitos e até da chegada de socorro em uma necessidade”, afirma a advogada especialista na área criminal.
Em suas palestras, Marques sempre fala que é necessário levar em consideração os marcadores sociais, de gênero e até mesmo da própria questão financeira nesse tipo de análise “se nós temos dificuldade como um todo em se entender em um relacionamento abusivo, se perceber dentro de um ciclo de violência, quanto menor o grau de instrução, o conhecimento dos seus direitos, se torna maior a dificuldade e vulnerabilidade para sair de uma situação dessas”, diz.
 
“Nem sempre essa mulher que procura um primeiro atendimento já vai estar pronta ou preparada para denunciar criminalmente esse parceiro ou ex-parceiro, ela quer quebrar aquele ciclo da violência, mas por ter filho (s) em comum, porque ainda acha que pode resgatar de alguma forma esse relacionamento, ela prefere não processar, não iniciar uma ação judicial”, alega Fabiana.

“A gente tem que saber ouvir em primeiro lugar, já é muito difícil para ela chegar numa instituição, ir até uma delegacia especializada ou até mesmo a delegacia comum para fazer algum tipo de queixa ou narrar o ocorrido, a história dela”, declara.
                                                       

Fabiana percebe na prática que isso acaba gerando todos àqueles pré-conceitos que nós conhecemos ‘tu tá gostando de apanhar’, ‘por que ainda não tentou sair dessa relação?’, ‘presta logo a queixa’, ‘faz logo o registro da ocorrência’. “Só que a gente tem que saber respeitar o tempo dessa mulher, às vezes se você faz esse tipo de pressão, fora as diversas que ela já está vivendo, ela nem volta a procurar uma instituição, você afasta a ajuda dessa mulher, por mais que sua intenção não seja essa”.
 
“Eu ouço de várias mulheres o questionamento de que se elas ficarão seguras de forma garantida com a medida protetiva expedida em juízo, eu não posso dizer que ela vai ter um policial 24h na porta da casa dela, na prática, o agressor pode chegar na casa dela e dar dois tiros na cabeça dela, muitas mulheres desistem de prestar queixa por medo”, diz Marques.
MEDIDAS PROTETIVAS DA LEI MARIA DA PENHA
 
Imediatas
  • Atendimento policial especializado, de preferência de policiais do sexo feminino;
  • Salvaguarda de sua integridade física, psíquica e emocional;
  • Proibição de contato entre vítima e acusado;
  • Encaminhamento da vítima para assistência judiciária, se for o caso;
  • Comunicar o Ministério Público para que tome providências.

​Ao longo do processo
  • Suspensão da posse ou restrição do porte de armas afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;
  • Proibição de determinadas condutas, entre as quais:
- aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;
- contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;
- frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
- restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
- prestação de alimentos provisionais ou provisórios.

Cabe destacar que tais medidas podem ser impostas em conjunto ou separadamente, e outras medidas não previstas na lei também poderão ser aplicadas para assegurar a segurança da vítima, como o uso de tornozeleira eletrônica.

“Nós temos a teoria e a prática, não que não seja expedido de forma rápida, as juízas nessa área de violência da mulher pedem com muita rapidez a medida protetiva, só que tem o cumprimento prático dela”. Segundo Fabiana o ápice da violência doméstica e do feminicídio ocorre exatamente quando a mulher tenta de alguma forma quebrar esse vínculo, seja denunciando ou pedindo o divórcio, é aí que ela se encontra mais vulnerável, é o momento em que ela pode vir definitivamente a ser morta por quem a objetifica.

 
“Normalmente, esse tipo de violência começa com a violência psicológica, e uma das primeiras coisas que esse parceiro faz é ir afastando ela dos amigos, parentes, colegas de trabalho, normalmente alegando muito amor, dizendo que quer a companhia dela o máximo de tempo possível só para si, porque ele é profundamente apaixonado”, exemplifica.

“Por conta desse ideário de que ciúmes é prova de amor, as mulheres demoram muitas das vezes em enxergar isso como um relacionamento abusivo, é isso que eu percebo na prática, o click demora muito por parte da nossa própria cultura”, declara a advogada.

“Nos casos mais graves ela tem até a possibilidade de ir para uma casa abrigo, mas é algo muito complicado, nem todas as mulheres querem, para você ir realizasse a solicitação, o juiz defere, mas o problema é que você vai ficar completamente isolada, nesses casos, a mulher não pode entrar em contato com ninguém, não pode fornecer endereço, não pode ir trabalhar e se houver filho (s) ele (s) não poderão frequentar a escola enquanto estiverem lá”, conta.

 
                                                           
Durante a quarentena Fabiana percebeu um aumento na procura de ajuda em seu escritório por mulheres vítimas de violência doméstica “nós temos uma grande preocupação em não saber se todas as mulheres que sofreram esse tipo de violência, conseguiram de alguma forma entrar em contato com um advogado, ou mesmo registrar o boletim de ocorrência online”.

Segundo ela, nem todas podem estar conseguindo realizar suas denúncias “que mulheres têm acesso à internet de qualidade para fazer esse registro? Caso elas tenham esse acesso, esse parceiro vai estar distante tempo o suficiente para que elas consigam fazer esse registro?”, questiona.
 

DENUNCIE. #ÉPelaVidaDasMulheres
 
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REFERÊNCIAS

BRITO, Amanda. Lei Maria da Penha: para quem, quando e como?. Jus.com.br. 7/2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75166/lei-maria-da-penha-para-quem-quando-e-como. Acesso em: 19/7/2020.

VALESCO, Clara. CAESAR, Gabriela. REIS, Thiago. Mesmo com queda recorde de mortes de mulheres, Brasil tem alta no número de feminicídios em 2019. G1. 5/3/2020. Disponível em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2020/03/05/mesmo-com-queda-recorde-de-mortes-de-mulheres-brasil-tem-alta-no-numero-de-feminicidios-em-2019.ghtml. Acesso em: 19/7/2020.

Redação Carta Capital. Casos de feminicídio aumentam 7,3% em 2019, aponta levantamento. Carta Capital. 5/3/2020. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/casos-de-feminicidio-aumentam-73-em-2019-aponta-levantamento/. Acesso em: 19/7/2020.

Redação. Raquel Gallinati e Jacqueline Valadares têm obra selecionada pelo STJ como referência doutrinária para juízes de todo o Brasil. Delegados.com.br. 20/6/2020. Disponível em: https://www.delegados.com.br/noticia/raquel-gallinati-e-jacqueline-valadares-tem-obra-selecionada-pelo-stj-como-referencia-doutrinaria-para-juizes-de-todo-o-brasil. Acesso em: 19/7/2020.

 
 

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