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30/07/2020 às 15h21min - Atualizada em 30/07/2020 às 15h06min

Marielle vive

As contribuições da liderança para pensarmos a violência policial no Brasil

Franciele Rodrigues - labdicasjornalismo.com
Reprodução | Instagram

Marielle Franco faria 41 anos no último 27 de julho. A mulher negra foi o quinto nome mais votado para a Câmara Municipal do Rio de Janeiro nas eleições de 2016, quase 47 mil apoiadores. “Cria da favela da Maré” como se apresentava, Marielle deixou muitos amores: filha, companheira, mãe, irmã, pai. Marielle deixou sementes.

Presidente da Comissão da Mulher da Câmara, a vereadora propôs projetos em defesa dos direitos humanos e das minoriais sociais, contra a homofobia, lesbofobia, transfobia, também levantou a necessidade da oferta de programas de acolhimento às crianças no período da noite enquanto os seus responsáveis trabalham ou estudam, buscou a institucionalização do Dia de Thereza de Benguela, líder quilombola, como celebração adicional ao Dia da Mulher Negra.

Além disso, criou campanha permanente de conscientização e enfrentamento ao assédio e violência sexual nos espaços públicos e transportes coletivos do Rio de Janeiro, ela também procurou responsabilizar os poderes públicos por ofertar oportunidades de ingresso no mercado de trabalho para jovens que cumpriram medidas socioeducativas. Contribuiu, ainda, para a elaboração do Dossiê Mulher Carioca, o documento tem como finalidade auxiliar na formulação de políticas públicas para mulheres em diferentes áreas como Saúde e Assistência Social, entre outras iniciativas.

Ao longo de sua trajetória política, Marielle constantemente teve que lembrar que aquele espaço era também lugar dela como em seu último discurso realizado em 08 de março de 2018: 

 

“Não serei interrompida. Não aturo interrompimento dos vereadores dessa casa. Não aturarei o cidadão que veio aqui e não sabe ouvir a posição de uma mulher eleita".

Segurança pública a partir de Marielle

Representante do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), ela formou-se socióloga e fez mestrado em Administração Pública. Na pós-graduação, a sua pesquisa versou sobre segurança pública e militarização nas favelas, em novembro de 2018 o estudo foi lançado em formato de livro. Nas mais de 130 páginas, Marielle reflete sobre a ausência do estado nas periferias ao passo que estes são regulados pelos tráficos de drogas e armas. De acordo com as suas observações, com a instauração das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPP), a polícia (e não a política) passou a ser compreendida como o único aparato capaz de garantir a paz. 

Ela notou que as forças policiais ao ocuparem as favelas não são acompanhadas de outros serviços públicos e investimentos bem como de ferramentas de participação política, ou seja, aos grupos mais vulneráveis é dispensado, majoritariamente: violência. Recorrendo as suas avaliações:

 

“Uma vez que o processo de pacificação não alcançou o conjunto da população, pois os grandes investimentos são priorizados para a cidade dos grandes eventos e não para um legado permanente do conjunto de cidadãos, para os moradores das favelas sobrou a polícia. E isso feito em clima de vitória como se não houvesse duas “nações” disputando o território. Ao final de cada ocupação, são colocadas as bandeiras do Rio de Janeiro e da polícia como se o governo e a polícia não fossem também dos moradores da favela”.

Ainda, Marielle constatou que, mesmo após cinco anos da implementação das UPPs, era perceptível o despreparo da segurança pública, pois não era incomum policiais serem feridos em treinamento e as abordagens violentas dos moradores por parte da polícia também eram frequentes. Os reflexos da militarização ainda podem ser percebidos. 

Balas perdidas? 

As verificações da liderança partem de 2014, mas de para cá a realidade não se transformou. Só nos cinco primeiros meses de 2020, o Rio de Janeiro registrou 741 vítimas de violência policial, segundo dados do Instituto de Segurança Pública. Ainda, de acordo com o levantamento, pretos e pardos correspondem a 78% dos mortos em ações policiais no estado durante 2019.

Casos como o assassinato, em maio de 2020, de João Pedro Mattos, de 14 anos, morto no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, ele estava brincando com amigos quando foi baleado durante uma ação das polícias Civil e Federal. Cerca de oito meses antes, Ágatha Vitória Sales Félix, de oito anos, foi baleada nas costas quando voltava para casa, ela estava dentro de um veículo, foi atingida e não resistiu.

Familiares da menina disseram ao G1 que no momento não havia nenhum confronto, uma moto passou, os policiais desconfiaram e atiraram. Segundo eles, foi apenas um tiro ou mais uma bala perdida que parece ter destino certo.

Voltando a 2020, no início de julho, Alice, de quatro anos, foi baleada durante uma festa de aniversário na Vila Isabel, também no Rio de Janeiro. Matéria da Folha de São Paulo, conta que de acordo com testemunhas, dois homens passaram atirando de uma moto. Além da menina, outras setes pessoas foram feridas entre elas o aniversariante, de 17 anos, que morreu na hora. Alice chegou a ser socorrida com vida, mas não resistiu.

Também segundo informações disseminadas pela Folha de São Paulo, mortes por policiais cresceram 43% no Rio de Janeiro durante o isolamento social, provocado pela pandemia da Covid-19. Policiais também são alvos, com base em dados emitidos pelo Fórum Nacional de Segurança Pública, em 2018, 343 agentes foram perdidos. A maioria deles é composta por homens negros entre 30 e 39 anos.

Além de Marielle, outros pesquisadores da segurança pública têm apontado para a urgência de repensarmos as ações de guerra às drogas no Brasil. O antropólogo Luiz Eduardo Soares, em seu livro “Desmilitarizar”, publicado em 2019 pela Editora Boitempo, considerou que o alto número de homicídios dolosos (intencionais) é um dos principais problemas do país atualmente. Crimes cujas resoluções são mínimas e cuja impunidade marca 90%. Ainda assim, a população carcerária no Brasil é a terceira do mundo. Soares aponta que quando o réu é branco de classe média, na maioria das vezes, é julgado como usuário enquanto o preso como traficante é negro e pobre. 

Marielle, então com 38 anos, foi morta em 14 de março de 2018 quando ela e seu motorista, Anderson Gomes, foram alvejados. Eles voltavam para casa após a vereadora compor o evento "Jovens negras movendo as estruturas" na Lapa. O carro foi cercado na região central da cidade, Marielle foi atravessada por quatro balas, Anderson por três. Uma assessora da parlamentar que também estava no veículo sobreviveu aos ataques. As câmaras de monitoramento de trânsito estavam desligadas. O crime ocorreu há 870 dias e as nossas perguntas ainda persistem: quem mandou matar Marielle? E por quê? 

Também gritamos a pergunta de Marielle postada um dia antes da tragédia nas redes sociais: "Quantos mais terão que morrer para que essa guerra acabe?" 

Marielle Vive!

A dissertação defendida por Marielle na Universidade Federal Fluminense (UFF) está disponível para leitura a seguir: https://app.uff.br/riuff/bitstream/1/2166/1/Marielle%20Franco.pdf

 


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