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17/08/2020 às 21h42min - Atualizada em 17/08/2020 às 21h36min

Relações de política, religião e sexo no ‘Conto da Aia’

A distopia de Atwood atravessa gerações e traz debates atuais para a sociedade

Ingrid Andrade - Editado por Bruna Araújo
Capa do livro "O Conto da Aia". Foto: Ingrid Andrade.

O romance distópico da canadense de Margaret Atwood, Conto da Aia, foi lançado em 1985. O livro ganhou adaptação para seriado na plataforma de streaming Hulu, em 2017. A série The Handmaid’s Tale, o título original da obra, foi sucesso pelas críticas e recebeu três indicações no Globo de Ouro 2018. E, ainda, em 2017, conquistaram 13 indicações ao Emmy e levaram 8 estatuetas. A atriz protagonista Elisabeth Moss recebeu dois prêmios de Melhor Atriz Dramática, um em cada premiação.

 

A partir da narrativa de Offred, que é uma Aia, começamos a entender as estruturas da República de Gileade. O antigo Estados Unidos agora é dominado por um regime teocrático, onde as Escrituras Sagradas são base de leis e costumes, o Deus cristão é o centro. Margaret desenvolve a história aos poucos, no início quase nada se sabe, mas o devaneios da personagem principal vai esclarecendo. Ela não queria estar ali, teve seus direitos tomados.

 

Há uma queda drástica na fertilidade, com isso, as Aias, que eram mulheres comuns, são as poucas capazes de reproduzir. Elas concebem filhos das Esposas do Comandante, que fazem parte do golpe e por isso possuem um cargo tão alto. Nessa base, tem as Marthas, que são inférteis e sua única utilidade é limpar e cuidar das crianças. E há as Tias, que são responsáveis pela lavagem cerebral das Aias.

 


Representação das Aias na série 'Handmaid's Tale'. Foto: Reprodução/Google.

 

Offred tem seu horário para acordar, comer, fazer compras e dormir. Não tem amigos, diversão já é passado. Mesmo todo o controle do mundo, ela ainda tem suas lembranças e vive-as com saudade, conta aos poucos para não se esquecer. A sua filha de apenas 5 anos tirada de si, seu marido Luke, sua amiga Moira e sua mãe, tenta não se esquecer.

 

As mulheres vivem a base do versículo bíblico: “Frutificai e multiplicai-vos, enchei abundantemente a terra”. O que passou é visto com promiscuidade; a mulher trabalhar, diversos relacionamentos, roupas minimamente extravagantes, dançar.

 

Apesar de ter passado mais de 30 anos desde seu lançamento, o Conto da Aia ainda é atual. A obra de Margaret Atwood trás debates atuais. A leitura faz refletir dos temas destacados na distopia, como a privação das mulheres, maternidade compulsória, poder do patriarcado, as problemáticas de uma sociedade teocrática.

 

Conceito feminino

 

As mulheres são separadas por cores, elas definem seu espaço e utilidade para a sociedade. As Aias vestem vermelho, com um chapéu que esconde cabelo e é difícil a visão lateral; Marthas vestem verde; as Tias marrom; e as Esposas azul. Todos vestidos longos, com manga comprida e gola alta.

 


Atrizes da série "The Handmaid's Tale' caracterizadas como as personagens. Foto: Reprodução/Google.

 

Elas apenas podem se sentir completas se forem mães, e não muda tanto para a realidade. A pressão política é imposta com muito mais terror na República de Gileade, afinal, quem não quer ser mãe ou são inférteis, são consideradas pecadoras e enviadas à Colônia, um campo de escravização, onde vivem precariamente e morrem cedo. 

 

No Brasil, por exemplo, temos lei que dita que a mulher não pode simplesmente escolher não ser mãe. Ela só pode fazer a cirurgia de laqueadura caso tenha dois filhos vivos, estar em um matrimônio e o cônjuge deve estar de acordo. Trata-se de uma tentativa de impedir futuro arrependimento. A maternidade é romantizada, que é entendido que a mulher nasce com o instinto materno, ela se sente mulher com um filho e sente amor incondicional, não importa se não planejado. E as culpam por não sentirem vontade.

 

“Decidi não ser mãe porque minhas prioridades são outras. Gosto de ter liberdade pra sair, viajar, dormir e viver a vida com as preocupações que estou apta a lidar. A maternidade nunca me atraiu. Antigamente, quando era adolescente, eu achava que tinha um problema por não querer ser mãe, mas hoje não vejo assim. A mulher com o passar dos anos, passou a ter mais liberdade de escolha. Há algumas décadas, era preparada apenas para ser mãe, esposa e dona de casa”, relatou a jornalista Ingrid Alencar em entrevista para o OitoMeia.

 

Na distopia, até mesmo ser mãe se torna deturpado. Apenas as Esposas podem, mesmo que não biológicos, já que em sua maioria, as Aias engravidam para elas. Offred chega a dizer que não é estupro, mas chega a ser uma imposição, elas são instrídas pelas Tias a aceitarem de bom grado, como se fosse a vontade de Deus. Contudo, é nítido seu desconforto, em que ela só quer que acabe logo. Se engravidar, é sinal que podem sair dessa, e sair viva.

 

Religião x Estado

 

O Brasil era para ser laico, mas está mais para um país em teocracia difusa, como cita o antropólogo Orlando Calheiros. É difusa, pois a nossa Constituição não é proprimente dita teocrática, está na essência de uma política fundamentalsta a partir da bancada evangélica, que abrange os cristãos em seu todo.

Começando pelo presidente eleito em 2018, Jair Bolsonaro, em que seu discurso parte da religiosidade, "Brasil a cima de tudo, Deus acima de todos". Ele quer um governo conservador, como o mesmo disse, quer "um evangélico fervoroso" para o Superior Tribunal de Justiça. E, bem, é no judiciário onde são colocadas em prática as legislações. Legislações essas que partem do Congresso Nacional e sua cúpula fundamentalista que trabalha duro com a ministra Damares para barrar ações do tipo de educação sexual, como também fazer a lei se parecer cada vez mais com a bíblia cristã.

A Associação Nacional dos Juristas Evangélicos, ANAJURE, fundada pela ministra Damares, tem esse objetivo de fazer as leis brasileiras seguirem sua ideologia religiosa. Afinal, para fazer parte, o juramento é: "Reconhecemos que a Bíblia é a Palavra de Deus, divindamente inspirada, inanerrante, infálivel, verdadeira, sendo ela a nossa única regra da fé e conduta".

A maior crítica que o Conto da Aia trás é a política autoritária de um país não laico e conservador, que desrespeita a liberdade e vontades individuais. E na obra,
as Escrituras foram distorcidas e até algumas coisas acrescentadas para que o povo seguisse seus comandos. O sexo prazeroso passou a ser proibido, nem mesmo a palavra “orgasmo” não era permitido. O ato era apenas um trabalho para “fins de reprodução”, pois diziam eles que antes de Eva ser enganada, não havia prazer. Logo, é pecado.

 

No livro, os traidores são mortos e pendurados no Muro, como lembrança para ninguém deixar de obedecer. O pecado de matar parece ser liberado para cometer apenas se para seu favor. Assim como pessoas de outras religiões, como judeus, eles podem fugir de Gileade ou se converter, os que se fingiam cristão podiam ser descobertos e levados à morte de qualquer maneira.

A teocracia de Atwood é muito mais radicalizada, pois ela já está implantada e, afinal, é uma ficção distópica. Esse ao qual nosso país está mirando. Menos diversidade no poder público abre caminho para a não realizações de políticas públicas contra intolerância religiosa, LGBTfobia, racismo, misoginia e outros tipos de violências. O fundamentalismo está passando diante dos nossos olhos.

 

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