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24/08/2020 às 15h20min - Atualizada em 24/08/2020 às 14h30min

Crônica: Sob os guarda-sóis

Reflexões em crônica sobre o caso do funcionário que faleceu no Carrefour e a modernidade líquida.

Ana Thereza Amaral - Editado por Letícia Agata
Corpo de funcionário escondido sob guarda sóis durante funcionamento da loja. | Imagem: Reprodução/Internet

“Morreu na contramão atrapalhando o público” é a melhor definição possível. É como se fosse apenas um número a menos para o patrão. Não há vida, o funcionário não tem humanidade… ou seria o patrão que não tem? Quando o ser humano se tornou isso? Um ser que prioriza bater as metas do dia e não uma vida perdida. Lugar errado, momento errado, prejuízo para os "senhores".

 

Há dois dias me deparei com esse caso, sendo noticiado nas redes sociais. O choque e a indignação com a frieza do ser humano acabaram por me deixar nauseada. Ainda não me conformo: aos 53 anos de idade, vítima de um mal súbito, o representante de vendas, Moisés Santos, veio a falecer numa loja da rede Carrefour, no Recife. A SAMU foi acionada e os primeiros socorros foram prestados. Entretanto, já era tarde e Moisés não resistiu. Como foram orientados a não retirarem o corpo do local até a chegada do IML, a equipe do Carrefour apenas cobriu o corpo do homem com guarda-sóis e o isolou em meio a engradados e caixas de papelão, entre os corredores, e deu início às atividades comerciais como se nada tivesse acontecido.

 

O ocorrido foi no dia 14 de agosto, porém só se tornou de conhecimento público no dia 18, quando fotos se espalharam na internet, tornando atitude do estabelecimento alvo de inúmeras críticas nas redes sociais. Só então a empresa se posicionou: publicou uma nota de desculpas, a fim de se retratar pelo ocorrido. Porém, casos assim não devem cair no esquecimento. Estamos tratando de uma vida perdida que foi ignorada em decorrência da extrema necessidade, criada pelo capitalismo, de vender desenfreadamente para aumentar ainda mais a fortuna dos aristocratas modernos. Um pedido de desculpas não traz ninguém de volta à vida.

 

Esse caso exemplifica bem a ideia de liquidez da sociedade globalizada, criada por Zygmunt Bauman: falta de comprometimento e apego vem sendo uma tendência crescente para com todos os aspectos da vivência humana em sociedade. Tudo isso alimentado pela ideia capitalista de produção e consumo exacerbados. A capacidade que o ser humano desenvolveu de se adaptar a mudanças repentinas o aproxima de máquinas programadas para reagir de maneira mecânica, sem afetar o sistema de produção.

 

Não consigo tirar da mente esse caso! São muitos questionamentos: quando nos tornamos seres tão cruéis a ponto de ter descaso pela morte de um outro indivíduo somente para atingir uma meta de vendas? Por que a vida de um funcionário é resumida a um número? Por que é mais importante enriquecer quem já é rico do que prestar socorro com dignidade a um semelhante? A sensação que tenho é de que a vida, a humanidade, perdeu o valor de mercado.


A música "Construção", de Chico Buarque, nunca me foi tão atual. Ao me deparar com trechos como "E se acabou no chão feito um pacote flácido / Agonizou no meio do passeio público", chego até a pensar que a letra foi composta agora, inspirada nesse caso, e não há quase 50 anos atrás. Contudo, sempre houveram e ainda há milhares de Moisés pelo mundo, que morrem na contramão, "atrapalhando" o público, e são omitidos pelos patrões. Mas graças à internet, temos a possibilidade de expor casos como esse pra que se tornem cada vez menos frequentes.


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