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01/05/2019 às 21h38min - Atualizada em 01/05/2019 às 21h38min

A união de duas irmãs senhoras nos tempos da modernidade

Neusa, 58, e Herondina, 72, cresceram em uma época onde a tecnologia não fazia parte e o trabalho escravo infantil não era crime. Hoje, com suas vidas já feitas, elas preferiram não se individualizar e decidiram persistir no significado de família.

Rafael Campos - Editado por: Leonardo Benedito
Tumblr: Mariana do Carmo
Era uma terça-feira, muito corrida, eu havia acabado de chegar do meu estágio, mas logo pensando que aquilo não era sinônimo de descanso. As apostilas estavam prontas para serem lidas e marcadas com aquele desgastado marca-texto esverdeado. Mas antes, sentei no grande sofá da sala e me debrucei a fim de sossego, nem que fosse por quinze minutos apenas.

Com meus olhos fechados, refletindo todo o meu dia que nem pensava em acabar, escutei o celular de minha avó tocando. Era sua irmã, a mesma que havia ligado há dois dias atrás.

Neusa, o seu nome, é a irmã caçula de toda essa família de mulheres que a minha avó pertence. Ela que chegou recentemente na fase dos cinquenta, já passou por poucas e boas antes de completar meio século de primavera. Hoje, se encontra divorciada de seu marido agressor, morando sozinha em uma casa a frente de uma de suas três filhas. Mas o fato dela ser a única habitante de sua residência não significa ter solidão. Neusa é impressionada todos os dias pelas visitas de suas filhas, netos e amigos, que sempre bagunçam e sujam o seu piso amarelado, mas que dá alegria no seu coração e promove o sorriso em seu rosto.

Porém, ela ainda sente falta das visitas de sua família base, que hoje é composta por somente cinco irmãs, já que uma delas já se foi e sua mãe não está mais entre os vivos. Neusa, é uma das poucas que reconhece todas as qualidades e defeitos de suas irmãs, mas nem por isso, acha que a distância é um fato justificativo para o tal. Ela persiste ainda no significado de família, relutando contra os contras-tempos e desfazendo das tecnologias, achando primordial que a presença ou a voz escutada é a mais importante de todas elas.

E uma das irmãs que ela frequentemente conversa é a minha avó. A mais velha de todas elas e, que no passado, foi mãe-irmã ao se rotular como braço direito da matriarca dona Isabel. Minha avó diz gostar muito de Neusa e isso é perceptível. É para ela que Herondina conta suas histórias de uma forma tão livre e sem receio de julgamentos. É como se a mãe da minha mãe esperasse toda semana a ligação de sua irmã para poder desabafar, já que sua família não dá essa permissão, achando que ela está velha demais e raras vezes, se caducando.

Neusa liga sempre no período da tarde para perguntar apenas “se está tudo bem?”, “como foi o dia?” e “o que preparou no almoço?”. Portanto, a conversa que se encerraria em quinze minutos, dura mais de uma hora, devido à minha avó que se empolga nas falas e nas palavras.

Não há uma semana que as duas não tagaleram, nem que seja para falar as mesmas coisas, das pessoas, dos momentos. Nem que seja para falar do passado. De um tempo em que tudo era bom e que se pudessem, elas nunca mais sairiam de lá.

Quem escuta de fora percebe que existe uma saudade misturada com amargura, pois elas sempre rebatem os argumentos com atos que elas queriam ter feito, mas não fizeram, porque os pais, o marido ou os filhos, que eram crianças naquela época, não as permitiriam. E que hoje, elas colocam a realização destes atos como algo impossível, por causa da idade já avançada.

Eu sei de quase todas as histórias e cresci ouvindo esse principal argumento. E aos poucos fui guardando isso pra mim como aprendizado. De que os atos que eu fiz e me arrependi vão ser curados com mais rapidez, do que aqueles que um dia deixei de fazer por causa da negação dos outros. Às vezes, tenho compaixão por saber que ambas as irmãs não aproveitaram a vida como deveriam. Já falei para elas que ainda dá tempo, mas por causa da idade, elas insistem achar que já estão no fim da vida.

Abri os olhos, me levantei e comecei a ler a minha apostila. Para não me atrapalhar, coloquei  no último volume uma música de estudo, deixando afastar dos meus tímpanos, aquela conversa sobre o passado que duraria mais que meia hora.

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