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06/11/2020 às 03h38min - Atualizada em 06/11/2020 às 03h34min

Quem me representa?

O “negro vende” é engajamento social, mas a sociedade ainda não reflete sua ancestralidade e seu orgulho de ser

Jéssica Meira - Editado por Gustavo H Araújo
Reprodução: Portal Geledés

 

"Nega, neguinha, mulata, crioula, moreninha."
 

“Ah! mas você nem é tão escura assim.”

“Só porque seu cabelo não é liso, não significa que você seja negra.”

“Você vai precisar prender esse cabelo para trabalhar aqui.”

“Você penteia o cabelo?”

 

“Como você consegue deixar ele assim? É natural?”

“Seu cabelo é lindo, mas se você fizer uma escova vai ficar mais legal.”

 

O que é o gosto, senão uma construção cultural? Quem te ensina o que é bom ou ruim, bonito ou feio senão seus pais, sua sociedade, seu grupo social, que formam e definem quem você é e o que será: excluído ou inserido. Nenhuma criança nasce racista, com o preconceito na ponta da língua. Ninguém cresce com a certeza de que sua cor, seu cabelo, sua fala, sua religião, seus costumes são certos ou errados.
 

Nos anos 1920, pessoas com cabelos crespos e pele escura eram consideradas sujas, mal educadas, primitivas e, com o passar dos anos, essa ideia foi sendo cultivada. Pretos não se misturavam com brancos, a cor definia sua posição social, seus sonhos, seu lugar, sua origem. Seu cabelo era escondido, enfaixado, alisado, cortado, podado para servir ao padrão branco majoritariamente.
 

O bom passou a ter cor, o mal era escuro e assustador. Mulher de pele escura, olhos de jabuticaba e cabelos curvados, enrolados, para cima, “indomáveis” era empregada, objeto de pecado e desejo proibido dos seus senhores. Possuir uma negra era desafiar o próprio diabo, era domar o mal e fazê-lo curvar-se.

Homem negro era forte, bom para trabalhos pesados, objeto de cobiça seja para suas padroas, ou para uma sociedade que os via como “burros de carga”. Pessoas de cor, como diziam, não frequentavam escola, não possuíam inteligência, condições financeiras ou capacidade para tal coisa. Seus empregos eram subordinados, jamais cargos elevados e ninguém pensaria em ver um negro ou uma negra em posições de liderança, não serviam para essa finalidade.

Com o passar dos anos, a mistura foi ficando inevitável, mas era preciso colocar barreiras, evitar impurezas, assim, seus lugares e permissões se tornaram seletivos. O poder, a força de uma ancestralidade rica e bonita, foi se deixando dominar, tentando sobreviver, lutando como podia, mas sem muitas esperanças.

Tia Conceição conta que, no tempo de moça, as mães trançavam os cabelos das pequenas, escondiam com faixas e, na sua maioria, o pente quente de ferro era a única solução. "Nossa como doía, por dentro e por fora". O cabelo era esticado, chapado, domado, alisado, mas nunca seria igual. De qualquer forma, mantinham-se controlados.

Na TV a beleza era branca, as modelos eram loiras e toda menina queria ser como a boneca Barbie: lindas curvas, pele clara, cabelos dourados e lisos, brilhando e tudo mais, mas nossa realidade era a Globeleza.

 

“Eu chorava muito. Queria ser assim. Eu queria ser como as meninas da escola, como as pessoas gostariam que eu fosse. Eu só queria ser aceita e considerada bonita, mas para isso era preciso nascer de novo”.

 

O mercado não te representa, a sociedade não te aceita e dentro de casa, muitas vezes, a família ensina a se adaptar, buscar ser como as outras para não causar confusão, se manter no padrão e conseguir subir na vida.

 

Foi nos anos 1960 que o movimento Black Power trouxe um novo ponto de vista: Angela Davis, um dos nomes mais populares nessa luta, que assumiu seu black, assim como tantas outras mulheres, chocando uma sociedade branca e opressiva.

 

O movimento tinha como objetivo não apenas libertar seus cabelos crespos e sua negritude, mas conquistar direitos políticos, sociais, econômicos e tantos outros que eram negados há muito tempo. As culturas afro passaram a se inserir nas artes, nas políticas, nas ideologias e em tantos outros espaços, batendo de frente com uma estrutura segregacionista forte e dominadora, que agora se via mais fraca lidando com uma situação que, até então, não se via com tanto radicalismo e furor. A ordem mundial definida pela Guerra Fria (1947-1991) era desafiada e as demandas em prol da justiça e das lutas anticoloniais, impostas.
 

Contudo, questões sociais elitistas, políticas - com a soberania branca em posições de autoridade - violência, mortes, atentados e crises na construção do poder negro, à frente dos movimentos mais relevantes do período (como os "Panteras Negras", que por um tempo se instauraram em posições estratégicas e de poder, em busca da luta sólida dos ideias negros) começou a enfraquecer a força que o movimento Black Power difundiu, deixando um marco importantíssimo na história da luta contra o racismo e suas imposições. 

 

Podemos dizer que com o passar das décadas as mudanças conquistadas pelos movimentos anteriores e posteriores ao Black Power se tornaram mais claras, despertando a comunidade afrodescendente para seu poder e sua força, em diversas partes do mundo. As segregações foram deixando de existir e mais figuras negras tomaram outros lugares importantes nessa nova sociedade, seja dentro das câmaras, nas lideranças ou em cargos de grande status. O preconceito continuou e continua até hoje, mas daquele momento em diante as lutas passaram a existir, o que tornou cada conquista um ponto de impacto para todo o seu povo.

 

O racismo tomou uma posição estratégica a partir da revolta afro. Ele se escondeu atrás de máscaras, piadas, brincadeiras. Tornou-se um preconceito velado e escondido, mas ainda assim intenso e dissimulado.
 

 

"Cansei!

Cansei de ser a morena, mulata, parda. De pessoas que me chamam de afrodescendente, jamais negra, a cor de Dandara. 

Ah! Nosso Brasil, país da miscigenação... "
 

(trecho  do poema “Negra sim!” - autora: Renata Araújo)


A segregação ainda existe, mas não é clara e estampada. A repulsa, a raiva e os olhares de estranheza, talvez até indignação, são visto todos os dias, são enfrentados, testemunhados e mesmo pela lei os direitos do afrobrasileiro não estão totalmente resguardados.

É preciso ir a fundo no racismo estrutural escondido, ignorado. Somos mais da metade da população brasileira, considerando apenas aqueles que sabem quem são, considerando aqueles que assumem seu lugar de fala e sua ancestralidade. Além de tudo isso, ainda precisamos considerar nossa miscigenação, afinal, não há um brasileiro que não tenha um traço africano em suas veias, em sua origem. A mistura que resultou em quem é.


Mas se somos a maioria, por que ainda parecemos tão estranhos para a nossa sociedade?

A liberdade brasileira, ou seja, sua “absolvição” do colonialismo e do poder europeu, se instaurou muito tarde, deixando traços de uma cultura estrangeira em nossos costumes. O tradicional é estranhar o diferente, abolir aquele que não é igual a mim, aquele que se expressa com vivacidade e assume uma raíz que não a branca padronizada. Assim, muitas famílias, comunidades, regiões e indivíduos educam seus filhos e seus netos, disseminando ainda hoje o preconceito, o racismo, o medo do diferente, a repulsa pelo que não segue os famosos padrões de beleza européia, ainda tidos como superiores e perfeitos.

 

A menina, quando criança, não quer ter o cabelo crespo e a pele escura, pois ela não vê a sua sociedade dessa forma. A publicidade ensina, a mídia ensina e rapidamente ela deseja se manter no padrão aceitável, para ser incluída, para se sentir parte de algo bom e relevante para os seus.

Conhecer sua ancestralidade, sua origem, reconhecer quem você é e aceitar tudo isso é um processo difícil e, por muitas vezes, doloroso, seja na infância, na adolescência ou na vida adulta.

 

“Tem de alisar o cabelo, ficar bonita para os garotos olharem para você.”

“Toda menina quer ter o cabelo liso, você também precisa ter.”

 

É preciso muita força e uma rede de apoio muito forte para sair da pressão social, o que muitas vezes não é a realidade dentro de casa.
 

A grande maioria recebe instruções no âmbito familiar sobre como agir, se vestir, se portar, falar e parecer, o que torna ainda mais difícil essa desconstrução lá na frente.

 

Hoje os processos como a transição capilar, os movimentos de ativismo negro e o acesso à informação com relação a cultura e a ancestralidade africana têm ajudado centenas (ou milhares) de meninos e meninas a enfrentar com mais força o seu processo de aceitação, assim como barrar e se proteger do preconceito que ainda é grande.

 

O meu cabelo, nosso crespo, não está na moda, está na raíz."

"Nossa cor é negra em muitos tons, mas com a mesma força."

 

"Nossa luta é diária, firme e vem do legado de tantos que morreram, sofreram e se fortificaram nas esperanças das próximas gerações."

"Eu sou negra e não considero um insulto. Sou negra e não moreninha, sou afro, crespa, cacheada, empoderada e quanto mais você tenta me apagar, maior é o meu poder de fogo, minha vontade de gritar: SIM, EU SOU NEGRA E ME RESPEITA!”


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