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14/02/2021 às 18h31min - Atualizada em 14/02/2021 às 18h21min

Cidade invisível: produção da Netflix destaca folclore brasileiro, mas erra no apagamento indígena

Série é elogiada pelo público ao abordar tema relevante, mas povos indígenas se sentem ofendidos com a produção

Letícia Gouveia - Editado por Letícia Agata
Marco Pigossi, Alessandra Negrini, Jéssica Coré e Wesley Guimarães fazem parte do elenco de "Cidade Invisível" - Divulgação/Netflix


“Cidade Invisível” estreou na plataforma de streaming Netflix na sexta-feira, dia 5. Com uma trama inovadora, a série mistura personagens do folclore brasileiro com um caso de assassinato. A produção é dirigida por Carlos Saldanha, que até então só tinha em seu currículo animações como A Era do Gelo (2002) e Rio (2011).

Os personagens folclóricos abordados na produção passam longe da visão infantilizada e caricata que se tem das lendas. Eles são representados como pessoas comuns, construídas sobre aspectos da sociedade e com desenvolvimento psicológico, como se vivessem invisíveis pela sociedade, não por serem entidades que se escondem, mas por serem parte de classes marginalizadas, como, por exemplo, o caso do Saci, que vive em uma ocupação.

De acordo com o jornalista, pesquisador e especialista em folclore brasileiro, Andriolli Costa, folclore são os modos de sentir, pensar e agir de um povo, os quais são transmitidos pela tradição e repetição que caracterizam a identidade cultural do grupo. Dessa forma, podem existir diferentes tipos de folclore, como o brasileiro, os regionais, os indígenas, os gastronômicos, entre outros, que sempre se relacionam com o contexto histórico e social ao qual estão inseridos.

O apagamento indígena

Os indígenas têm evidenciado problemas muito sérios relacionados à série. Nela, há o apagamento indígena ao não citar os índios quando utilizam seus mitos e lendas, e também não possuir atores indígenas representando suas entidades.
“O que a série faz é apropriação cultural e redface. Apropriação, quando usa elementos da cultura indígena sem ter indígenas na produção, separa a cultura dos indivíduos a qual ela pertence para comercializar essa cultura. E é redface justamente por haver na série entidades indígenas sendo interpretadas por atores não-indigenas”, comenta Thainá*, indígena estudante de ciências sociais.

Andriolli acredita que o apagamento indígena foi feito propositalmente pelo medo de subrepresentá-los ou cometer erros ao abordar o assunto nesta perspectiva.
“Mas fingindo que eles não existem, o silêncio falou ainda mais alto do que algum possível erro. Isso foi um problema. De certa forma, faltou dignidade aos mitos no momento que se esquece, ou que se finge esquecer, a origem indígena”, explica o jornalista que possui um blog sobre folclore brasileiro, o Colecionador de Sacis.   

Repercussão

A série, por estar vinculada a uma plataforma de streaming mundialmente conhecida, está aberta a repercussão midiática muito grande. Na trama, as questões ambientais também estão presentes e salientam a importância de se falar sobre o tema, visto que a Amazônia registrou 45,6% de casos de queimadas ilegais na região em 2020, o maior número desde 2010, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Trazer uma narrativa folclórica nacional para as produções de mainstream (conteúdo comercial de grande circulação) pode ser o começo para o melhor conhecimento sobre o tema. De acordo com o jornalista, isso pode ser positivo, pois mostra que nossos saberes tradicionais são um material que pode ser acessado facilmente e transformado em narrativas engajadas e envolventes, porém poderá haver uma confusão pelo público ao associar que apenas o que se é representado na série é o correto, sem levar em conta toda a diversidade do folclore brasileiro.
“A mídia pode servir para duas coisas: uma para a distribuição e reconhecimento amplo dessas tradições culturais e outra é o desvirtuamento das tradições”, explica Andriolli.

Além disso, a produção também pode ser responsável por repassar valores estereotipados e para exclusão e silenciamento de certos grupos.
“Infelizmente, a gente vive em um país que invisibiliza muito os povos indígenas e trata suas culturas e cosmovisões, suas entidades e divindades como mero "folclore" e isso é apagamento, epistemicidio e racismo” comenta Thainá sobre a série.

A produção



“Cidade Invisível” tem Beto Gauss e Francesco Civita na produção, Caito Ortiz, Maresa Pullman e Marco Anton na produção executiva, Mirna Nogueira como roteirista-chefe, Luis Carone e Julia Jordão estão na direção e Luis Carone na direção-geral. Além de Marco Pigossi como o protagonista Eric, Alexandra Negrini como Inês, e outros grandes nomes da atuação brasileira.

O ponto forte da produção são seus efeitos especiais que dão vida à história. É importante que o folclore brasileiro e suas lendas sejam inspiração para novos roteiros de produções nacionais. A Netflix investiu mais de R$ 350 milhões em conteúdo brasileiro em 2020, segundo matéria publicada no site Valor. 

Na plataforma de streaming, a cultura brasileira pode ser contemplada mundialmente, o que é positivo para a produção e importância do tema, como comentou o diretor Carlos Saldanha em entrevista à Uol: "Temos esperança de que o brasileiro consiga se reconectar com o folclore, com essa arte, que se envolva nessa redescoberta. E também de que o mundo possa ter curiosidade de descobrir um pouco da gente.”

Entretanto, para que esses objetivos sejam alcançados, há uma necessidade de respeitar todas as culturas envolvidas nos mitos e lendas brasileiros. A série tem um bom potencial e pode ser que ajuste algumas problemáticas, caso seja renovada para sua segunda temporada.

*nome fictício para preservar o anonimato da fonte
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