A reflexão
Do ponto de vista da história, a historiadora e doutoranda em História na UFF, Carolina Bertassoni, entende que a atitude de Cléo beira o negacionismo, além da censura. “É a alteração de um documento histórico. Seria um apagamento do racismo da obra [...] afinal, estão querendo cortar partes dela para que ela não ajude a influenciar os leitores a terem pensamentos e atitudes racistas [...] liberdade de expressão tem limite, e o crime de ódio é um deles. Então eu acho que é uma forma de censura, mas isso não é necessariamente ruim”, alegou.
Os opositores se contrapõem a essa iniciativa ao alegarem desrespeito à literatura e à história. Oras, modificar uma obra literária que não é de sua autoria, seja por qual for o motivo, é uma interferência polêmica e, no mínimo, invasiva. O escritor e professor de literatura Daniel Cotrim admitiu que, se tivesse no lugar de Lobato, se sentiria mal. Ele considera também que a atitude da bisneta é como pedir desculpas por outra pessoa que fez 'mal' a alguém e que se ele não pode reparar o erro, ninguém pode.
Entretanto, o professor compreende a intenção de Cléo e reafirma que o preconceito não deve mais ser tolerado em ambiente algum, sobretudo, no escolar. “Como professor, entendo a atitude da Cléo. É preciso ter muito cuidado com as crianças, principalmente com a maneira como se mostra ou diz algo. Não dá para subestimar a capacidade de entendimento delas. E mais: realmente situações de racismo, preconceito e bullying não são bem-vindas, sobretudo na sala de aula”, declarou.
Muitas famílias não querem se desvencilhar da cultura brasileira de modo que arranquem Monteiro Lobato da infância dos menores. O autor é exemplo e referência para a literatura brasileira e quem não conhece o Sítio do Picapau Amarelo que atire a primeira pedra. Não é fácil, de fato, aceitar que quem fez tanto bem às crianças, hoje em dia pode feri-las. Entretanto, não há mais espaço para regresso.
Com isso, o professor ainda reiterou que a iniciativa empática de Cléo não extingue a permanência do racismo na sociedade, pois acredita que tirar termos de um livro, mesmo sendo de uma obra clássica, não impede que algumas pessoas tenham pensamentos preconceituosos, radicais e racistas.
É evidente que, para combater as mazelas sociais necessita-se de ações efetivas, fingir que preconceitos em obras culturais antigas nunca existiram não acrescentam na causa. A historiadora traz uma visão mais ampla ao entender que reparar historicamente é mais do que apenas uma edição. “Pensando em reparação histórica, dar mais valor e atenção a obras de autores(as) negros(as), dar mais incentivo, inclusive financeiro, para que possam produzir mais”.
Além disso, é pertinente analisar que, embora Monteiro Lobato seja um dos ícones da literatura brasileira e infantil, a introdução de seus livros no aprendizado da criança pode ficar em segundo plano, ou até mesmo modificar a forma em que é trabalhada. Vivemos em uma época diferente do autor em que a evolução, a adaptação e a renovação são requeridas constantemente. A estagnação está ultrapassada.
Bertassoni indica como alternativa uma abordagem crítica em relação às obras ao demonstrar seu ponto de vista: “Eu, sinceramente, optaria por ler outros livros até considerar seguro ser possível fazer uma leitura crítica junto à criança. No caso de querer ler o Monteiro Lobato no original de forma crítica, uma boa opção seria escolher uma obra capaz de fazer um contraponto ao racismo dele para ler em seguida e fazer a comparação com a criança”.
Partindo do âmbito histórico, a cultura é um patrimônio imaterial que deve ser preservada e é objeto de estudo atemporal. A alternativa indicada pela historiadora, além de continuar incluindo Monteiro Lobato na educação infantil, ajuda na criação de conceitos e ética desde menor. E, em complemento com a visão da literatura, pelas palavras de Cotrim:
“A literatura causa choque, tira da zona de conforto, inquieta, mas também faz refletir, relaxa, acalma”