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01/03/2021 às 22h18min - Atualizada em 01/03/2021 às 18h28min

Jornalismo e divulgação científica: uma entrevista com Salvador Nogueira, da Folha de S.Paulo

Em entrevista, ele alerta para o risco que representa o avanço das pseudociências e dos movimentos anticiência

Carlos Germano - Editado por Manoel Paulo
Salvador Nogueira é jornalista, escritor, colunista do jornal Folha de S. Paulo e da revista Scientific American Brasil. Possui experiência na área de divulgação científica com ênfase em Astronomia e Exploração Espacial. Foi sócio-fundador e conselheiro, entre 2005 e 2009, da Associação Aeroespacial Brasileira (AAB) e assessor de comunicação da Sociedade Brasileira de Física. Mantém um canal de vídeos no YouTube chamado Mensageiro Sideral – Desvendando os Segredos do Universo. Além disso, participa atualmente da missão espacial brasileira Garatéa-L, que planeja por o Brasil na Lua em 2023 com a primeira sonda lunar brasileira, e é editor do site Trek Brasilis, sobre o universo ficcional de Star Trek.
 
Nogueira também é autor de inúmeros livros, entre eles Rumo ao Infinito e o admirável Conexão Wright-Santos-Dumont. Em entrevista concedida por email, ele fala sobre sua profissão com entusiasmo e alerta para o papel da sociedade quanto ao risco que representa o avanço das pseudociências e dos movimentos anticiência. Confira na íntegra.
 
Quais as principais dificuldades como um divulgador da ciência no Brasil?

Salvador Nogueira – Presumindo que a pessoa tenha vontade de ser divulgadora de ciência e tenha apreço pelo tema, a maior dificuldade é conseguir espaço para abordá-lo. Historicamente as editorias de ciência dos grandes jornais e portais de internet serviram, normalmente, mais como reserva técnica — ter na equipe alguém que entenda vagamente de terremotos, tsunamis, asteroides, clonagem, biotecnologia etc. — nos momentos em que esses temas entram no epicentro do noticiário “convencional”. Isso traz uma vantagem e uma desvantagem para as equipes de ciência nesses veículos de imprensa. A vantagem é que eles costumam ter mais liberdade editorial em momentos de calmaria para pautar temas cientificamente relevantes e descobertas da fronteira da ciência. A desvantagem é que esse noticiário é em geral tratado como frio, de segunda classe, dispensável. (Isso é sintoma, por sinal, do analfabetismo científico crônico que vemos aí fora. Ele não se restringe, como se poderia pensar, a pessoas de pouco estudo, mas vai até quem estudou em boas escolas e faculdades. O problema é sistêmico, mais que social.) Essa desvantagem pesa muito em momentos de crise econômica — o noticiário “dispensável” é o primeiro a cair, as equipes de ciência tendem a encolher, reduzindo a “reserva técnica”, e assim por diante. E o quadro não é muito animador, pois, mesmo que a economia viva numa gangorra e esperemos uma recuperação, a mídia em particular vive uma crise própria e provavelmente incontornável, conforme veículos impressos, rádio e televisão vão perdendo espaço para a internet (que gera renda publicitária muito inferior e coloca em perigo a existência desses veículos nos moldes em que existiam até então). Resumo da ópera: o mais difícil para ser um divulgador científico no Brasil é arrumar um emprego estável para fazer isso. É verdade que quem quer se dedicar ao tema hoje tem alternativas de autopublicação, como YouTube, Facebook, Instagram e blogs, mas elas normalmente não permitem obter ganhos suficientes para que o divulgador possa viver sem um salário convencional.
 
A divulgação científica consegue fazer frente ao alcance epidêmico de pseudociências e absurdos como terra plana e homeopatia?

NOGUEIRA – Francamente, é um trabalho de formiguinha. É muito, mas muito mais fácil espalhar desinformação do que informação. Porque mentiras normalmente são mais atraentes que a realidade, e o público não teve um bom treinamento na escola e em casa, em seus anos de formação, para pensar de forma cética, entender como a ciência funciona e saber distingui-la da pseudociência. O clássico atual é “mas esta é a minha opinião”, sem compreender que a ciência busca justamente respostas que possam ser confirmadas de maneira objetiva, sem depender de opiniões. Acho muito preocupante o avanço da pseudociência e desse movimento anticiência. Terra plana, design inteligente, campanhas antivacinas, homeopatia, o caso bizarro da fosfoetanolamina e tantos boatos do naipe Nibiru/asteroide assassino/NASA mente me fazem às vezes pensar que podemos, sem perceber, embarcar numa Segunda Idade Média. Na primeira, a civilização decidiu jogar fora toda a cultura humanista da filosofia grega e embarcar num modo de pensar bitolado e autoritário, dogmático e antirracional. Foram dez séculos de atraso, só amenizados pelo fato de que, por mais esforço que se faça, é impossível conter o espírito humano e o livre pensar. Podiam matar Giordano Bruno na fogueira, mas não podiam proibi-lo de pensar e expressar suas ideias. No fim conseguimos sair disso, veio o Renascimento, o Iluminismo e fizemos o resgate — tanto quanto possível — da trajetória iniciada na Grécia, lá atrás. Nasceu a ciência moderna, que trouxe avanços surreais em 400 anos. Podemos andar para trás e embarcar numa Segunda Idade Média? Sinceramente, não sei. Às vezes, pelo volume de lixo que vemos por aí, sendo propagado e replicado sem o menor pudor, tenho medo. Tento, com meu trabalho, mostrar que esta seria uma má ideia. Mas tenho certeza que os pensadores gregos, em retrospecto, também pensariam na Idade Média como uma má ideia, e, no entanto, ela sobreveio.




Quais temas parecem ser os mais importantes a se abordar hoje na divulgação científica para o público brasileiro?
 
NOGUEIRA – Acredito que o essencial seja menos o tema, e mais o método. Precisamos, por meio dos mais variados trabalhos científicos, explicar às pessoas como a ciência funciona, por que ela funciona e por que ela é a única maneira reconhecidamente eficiente de aprendermos sobre nosso mundo e, com isso, podermos moldá-lo de acordo com o nosso benefício, respeitando o equilíbrio da vida na Terra e reverenciando a beleza do Universo. O grande problema da divulgação científica não é a escolha dos temas, mas o fato de que a maioria dos esforços da mídia vendem a ciência quase como um ato de fé — parece que os cientistas sobem ao topo do Monte Sinai e voltam de lá com as tábuas da sabedoria científica. E não é assim que funciona. É um jogo de inteligência, de acertos e erros, em que, por meio de hipóteses e experimentos, os cientistas interrogam a natureza. E sempre com a mente aberta, sempre dispostos a abandonar uma hipótese se ela não se conformar aos fatos. Precisamos desmantelar o argumento clássico e ignorante do “É só uma teoria”. Não é “só” uma teoria. Uma teoria aceita pelos cientistas é um conjunto interconectado de hipóteses que, depois de incontáveis testes, incontáveis interrogações da natureza, permaneceu de pé. É válida em todas as observações feitas até hoje, e oferece predições para futuras observações. Não podemos nivelá-la ao senso comum de conversa de bar, quando alguém quer saber por que tal time de futebol perde os jogos, e um amigo diz: “Eu tenho uma teoria”. É isso que falta.
 
Como você vê a má divulgação científica pelos setores midiáticos, logo eles, que deveriam fazer a ponte entre a literatura e a população iletrada cientificamente?
 
NOGUEIRA – Acho francamente catastrófico. Tem muita divulgação científica de qualidade, mas tem muito lixo também. E é apavorante, primeiro, o palco que se dá a pseudociência na mídia, em nome de audiência e de agradar determinados setores retrógrados e/ou alienados da sociedade. E, segundo, a desinformação que permeia mesmo quando a intenção da divulgação é boa e gira em torno de temas genuinamente científicos. Como eu disse lá no começo, ao falar das dificuldades de um divulgador, presumi na resposta que o profissional tem o desejo e o interesse de ser divulgador de ciência. Com isso espero que ele leia bastante sobre o tema, se aprofunde, converse com especialistas e genuinamente embarque na busca pelo conhecimento que é a ciência. Só que muitas vezes quem trabalha com isso ou tem vontade, mas não tem tempo para se dedicar a esse aprofundamento, ou simplesmente não tem vontade e caiu de paraquedas naquele setor. (Em muitos lugares, não há editoria de ciência, e o sujeito que escreve sobre ciência é o mesmo que cobre internacional, ou cotidiano. Aí nem podemos culpar o paraquedista.) E o estrago pode ser grande, pois estamos falando de espalhamento acidental de analfabetismo científico para uma população que já é largamente analfabeta científica.
 
Como é a relação, atualmente, entre cientistas e jornalistas? Há um acordo mútuo de troca de ideias e informações, ou ainda, existe aquela velha rixa de que jornalista não tem gabarito para escrever sobre ciência?
 
NOGUEIRA – Depende do jornalista e depende do cientista. De uma forma geral, minha experiência pessoal com eles sempre foi muito boa. Mas é uma relação que se forja com os anos e com um bom trabalho. Se um cientista recebe um primeiro contato de um jornalista, cede uma entrevista, e depois vê um texto cheio de erros e problemas, a tendência é ele ficar ressabiado. E, na média, os cientistas ficam mais ressabiados do que satisfeitos, o que alimenta um pouco o preconceito. Cabe ao jornalista também, ao falar com o cientista, transmitir alguma segurança, mostrar que sabe do que está falando, que a pesquisa dele está em boas mãos. É uma barreira que existe, mas que não impede o bom trabalho dos jornalistas se eles tiverem um pouco de jogo de cintura.
 
Por fim, qual conselho você daria para alguém que pretende se aventurar na área?
 
NOGUEIRA – Leia, leia, leia. E, quando cansar de ler, leia mais um pouco. Leia livros, leia revistas, leia jornais, leia artigos científicos. E não tenha medo de perguntar. A capacidade de perguntar está na base da ciência, e essa também é a base para o bom jornalismo de ciência.
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