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04/03/2021 às 09h45min - Atualizada em 04/03/2021 às 09h03min

Um retrato do retrato

James Joyce e a moldura de seu alter ego

Thiago de Oliveira - Editado por Gustavo Henrique Araújo
Foto: James Joyce | Reprodução: Google

“Dedicou-se a apaziguar os violentos desejos de seu coração diante dos quais tudo o mais era inútil e lhe era alheio. Pouco se lhe dava estar em pecado mortal, que sua vida tivesse passado a ser uma colcha de subterfúgios e falsidades. Além  do desejo selvagem que trazia dentro de si, de realizar as enormidades em que pensava, nada lhe era sagrado.” — Um Retrato do Artista Quando Jovem, James Joyce


E o tio me balançava. A tia me olhava com receio. Mamãe descansava no sofá. E os planos eram feitos em volta de mim. O irmão era só gracejo. Eu olhava e olhava, dói os olhos e fecho. O auau latia por papá. Tia Maria cabeluda me segurou. Era um dia quentinho de primavera no interior do Paraná. 

 

Se essa rua

Se essa rua fosse minha

Eu mandava

Eu mandava ladrilhar

 

Alguém cantava isso pra ele intermitentemente.

 

Uma biografia do escritor quando único

  Fotografia: Beinecke Rare Books and Manuscri | Reprodução: BBC
 

De todos os mortos, apenas James Augustine Aloysius Joyce lembra que morreu — em 13 de janeiro de 1941, na Suíça, aos 58 anos. Nascido na Dublin de 1882, o escritor irlandês se dizia não um literato, mas sim um memorialista. James Joyce, mais conhecido por seu livro Ulysses, narra na primeira página de seu Um Retrato do Artista Quando Jovem algo parecido com o que tentei narrar no começo deste texto. Obviamente, nem o escritor nem eu narramos isso baseado em memórias de quando éramos bebês — apesar de eu não ter tanta certeza sobre Joyce. 

 

Famoso pelos seus fluxos de consciência, o Retrato não é um livro com uma história empolgante. Nem era esse o objetivo de Joyce ao escrevê-lo. Majoritariamente autobiográfico, o livro tem nas memórias do escritor um dos seus trunfos. Ao escavar essas memórias, o escritor aplica não só a sua genialidade linguística, mas também os diferentes entusiasmos de suas sensações. O hoje, o ontem e o amanhã estão nos fluxos de consciência que formam o livro. Outro trunfo é o estilo narrativo aplicado. O narrador vai ficando mais sofisticado conforme o personagem vai crescendo, experienciando o mundo e amadurecendo. 

 

De família católica e com rigorosa formação jesuíta, Joyce circunscreve a personalidade de Stephen Dedalus personagem principal do Retrato em torno da religião. Outro fator autobiográfico bastante presente neste bildungsroman (romance de formação) é a constante presença de figuras reais com as quais Joyce teve contato durante sua vida. Algumas vezes aparecem com seus nomes verdadeiros, outras não, mas quase sempre a descrição desses personagens é totalmente fiel à realidade. Por fim, muitos acontecimentos da vida do escritor irlandês, mesmo os mais longínquos, são inseridos nas páginas de Um Retrato do Artista Quando Jovem.

  

Retrato do artista quando humano

 

Não, Stephen Dedalus não é carismático. Mas é interessante e profundo. O seu sobrenome vem de Dédalo, personagem da mitologia grega que foi incumbido de construir um labirinto para aprisionar o minotauro. Dédalo, com o desenrolar da história, acabou preso na própria criação e teve de se esforçar para conquistar a liberdade e sair do seu próprio labirinto. Ao fim, ele consegue construir asas com penas e cera, alçar voo e se libertar. Já o nosso Dedalus está preso à religião, à política, ao patriotismo, aos ideais de relacionamento, a Dublin e a si mesmo. O que vemos durante o livro é sua vivência no labirinto e sua iminente libertação.

 

Parte 1

 

O livro é dividido em episódios marcantes na vida de Stephen Dedalus. A história começa com um bebê por volta de três anos narrando o que está se passando ao seu redor. Nasce o artista:

                              

Era uma vez, e foi muito bom dessa vez que a vaquinha mumu veio descendo a rua e não é que essa vaquinha mumu que vinha descendo a rua me encontra um menino bem fofo chamado Pitoco…

Como dito anteriormente, a forma narrativa segue o amadurecimento do personagem. Joyce tenta nos aproximar da linguagem de um bebê, que de maneira infantil descreve o que ocorre e tenta apreendê-lo.

 

Parte 2

 

Passado esse momento inicial, somos apresentados a um Stephen criança que vai tentar entender o mundo no Clongowes Wood College, colégio jesuíta localizado no condado de Kildare. Muitas são as coisas que o marcaram em seus anos no colégio. Durante uma viagem de férias à casa dos pais, Stephen presencia uma forte discussão acerca dos dogmas religiosos e das questões que envolviam a independência da Irlanda, isso coloca algumas dúvidas em sua cabeça.
 

“— Ah, é, então? — disse o Sr. Casey.

Ele bateu com o punho na mesa e, com o rosto enfurecido, foi levantando

um dedo depois do outro.

— Por acaso não foram os bispos da Irlanda, que nos traíram na época da União quando o bispo Lanigan ofereceu um juramento de lealdade ao marquês de Cornwallis? Por acaso não foram os bispos e padres que venderam os desejos de sua terra em 1829 em troca da emancipação católica? Por acaso não foram eles que denunciaram o movimento feniano nos sermões e nos confessionários? E não foram eles que desonraram as cinzas de Terence Bellew MacManus?”

Stephen sempre foi um aluno mais contido e introspectivo; via de longe as punições corporais que seus colegas sofriam pelos rígidos padres. Até que um dia chegou sua vez. Julgado injustamente de mentiroso, Stephen foi punido por estar sem seus óculos e afirmar que, assim, não poderia realizar as atividades (fato verdadeiro, seus óculos haviam quebrado acidentalmente). Mas um dos instrutores não acreditou na sua versão e o condenou ao castigo físico. Na frente de toda a sala, Stephen foi chicoteado nas mãos. Instigado pelos colegas a reclamar com a direção pelo castigo injusto, o garoto corajosamente acata e fala com o padre Conmee, reitor do colégio e personagem real, que entende e diz que o caso não irá se repetir. O acontecido aumentou sua reputação para com os demais estudantes.

 

Ainda no Clongowes Wood, outros episódios marcam o período infanto-juvenil de Stephen Dedalus. Cenas como quando ele foi empurrado numa poça d'água por um valentão, ou quando uma febre delirante acomete-o e o faz refletir sobre a vida e a morte. 

 

A descrição das fases e de acontecimentos pontuais na vida de Stephen é fundamental para compreendermos a big picture. James Joyce sempre adorou epifanias, e neste livro o autor nos presenteia com muitas delas. Os mais banais momentos revelam sentimentos e ideias que vão construir a personalidade de Stephen. O artista está se construindo da maneira mais humana possível. O retrato está em curso.

 

Parte 3

 

Falência da família, mudança de cidade e Belvedere College. Stephen chega à adolescência. Dedalus herege, Dedalus beato e Dedalus Joyce. 

 

O pai de Stephen entra em alguns negócios furados e acaba levando a família à bancarrota. A família Dedalus é forçada a se mudar para a grande Dublin em busca de oportunidades. Apesar da mudança, Stephen não deixou de ter uma boa educação. Agraciado com uma bolsa pelo já citado padre Conmee, o garoto começa a frequentar o Belvedere College. Lá ele se destaca e distingue-se dos demais alunos; chega até a ganhar um ótimo prêmio em dinheiro num concurso escolar. 

 

Seus desejos afloram. Munido de dinheiro e com a espiritualidade em decadência, Stephen passa a visitar os prostíbulos de Dublin. A distância entre ele e o seu pai que caiu em desgraça e virou um beberrão só faz contribuir para o comportamento do menino.

 

Logo vem a culpa. E aqui temos páginas e mais páginas de um sermão de um padre num retiro do Belvedere College. São descrições do inferno; da desgraça, da dor e do horror que é o pecado. Stephen cai de joelhos no seu quarto e inicia sua era de beato. Enquanto mantinha o ardor do artista, uma parte sua cogitava até virar clérigo. Foram meses de autoflagelo e culpa, muita culpa, oração, medo e mais oração. Mesmo assim, Stephen ainda questiona suas crenças depois do alívio da confissão.

 

Passada a agonia da vergonha ele tentou soerguer a alma se sua abjeta impotência. Deus e a Santíssima Virgem estavam demasiado longe dele: Deus era grande e severo demais e Santíssima Virgem, pura e santa demais. Mas imaginou que estava perto de Emma numa terra aberta e, humildemente e às lágrimas, que se curvava e beijava-lhe o cotovelo vestido.

Até que Joyce nos apresenta mais uma epifania: a garota da praia de Dollymount Strand. Enquanto andava pela praia, nosso anti-herói observara uma garota vagando pela areia gélida. Foi ali que o artista deu um passo além. Decidiu que precisava estudar estética e entender sobre a beleza das coisas.

 

Parte 4

 

University College Dublin. Caem as instituições; insurreição do artista. Mas aos poucos…

                

Bem vinda, vida, sigo para encontrar pela milionésima vez a realidade da experiência e engendrar na forja de minha alma a consciência incriada de minha raça.

Com a família vivendo em locais insalubres, a cabeça infestada de piolhos e a mente focada na questão do belo, o artista não se contenta com o que lhe é dado. Stephen toma coragem e rebate sua mãe em questões da Igreja, os seus amigos na questão nacionalista e a sua própria vida em seus limites. Os diálogos mais profundos se concentram nesta parte do livro. Seja em diálogos com seu amigo Cranly, seja em contestações e debates com outras pessoas. Stephen é um intelectual retratado e retratando. A maturidade chegou. O momento do voo para escapar do labirinto se aproxima. Dublin precisa ser deixada para trás, e o artista está recebendo sua pincelada final.

 

Retrato feito. Ufa! 

 

Parte 0 - E então?

 

Findado o retrato. Esmiuçado e escarafunchado. Exótico, perturbador por vezes, transgressor, engraçado. A inserção de cada ‘metamorfose do espírito’ do Retrato não transforma este texto em um resumo. Só é possível refletir a obra de Joyce como um todo se irmos fundo nela. Para tal, foi necessário expor um pouco de cada época da vida de Stephen Dedalus (a divisão em quatro partes é coisa totalmente minha), porque tudo culmina na partida de Stephen da Irlanda. 

 

O artista se desenvolve conforme entende a si mesmo. A resposta da equação "que sou eu?’ + ‘que eu quero ser?" é respondida durante todo o livro, aos poucos, mas Dedalus só dá a resposta final quando decide partir. Ali, finalmente, a parte da jornada de Stephen que acompanhamos pôde ser finalizada. O livro terminando com o diário de Stephen é a prova disso. O artista conheceu a si mesmo de forma que nem mesmo o narrador é mais preciso. Dispensa, além do narrador, Deus, dogmas e a Irlanda. Não por ingratidão, mas por precisar dispensar. O artista precisa saber quando voar. Joyce soube quando voar ao escrever Um Retrato do Artista Quando Jovem. Só ele poderia ter escrito um livro tão importante, considerado um dos marcos da literatura contemporânea, com tantas irreverências e quebra de padrões. 

 

Joyce soube quando e como escapar do labirinto em que havia sido posto. Seja no Retrato, em Ulysses ou em Finnegans Wake. O que vemos no Retrato é basicamente isto: Joyce escrevendo a sua própria vida, pragmático dentro de suas próprias criações, idiossincrático, humano e talvez megalomaníaco. Suas invencionices e os neologismos que estarão mais presentes em Finnegans Wake estão sendo cozidos em Um Retrato do Artista Quando Jovem. O que veremos nos próximos livros é uma refeição [quase] pronta. Uma refeição já comida e vomitada para alguns, que julgam pela dificuldade em engolir. Mas deliciosa para quem sabe apreciar.

 

Um Retrato do Artista Quando Jovem nos dá aperitivos. Aperitivos joyceanos. Pode ter uma textura um pouco difícil de ingerir, porém muito saborosa para os paladares certos.

                    

Et ignotas animum dimittit in artes

[E ele voltou seu espírito para artes desconhecidas]

Ovídio, Metamorfoses, VIII, 188.
 


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