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19/03/2021 às 11h47min - Atualizada em 19/03/2021 às 11h34min

“Pão de Açúcar”: uma obra de ficção e realidade

O livro do português Afonso Reis Cabral aborda através da narrativa literária o caso da transexual Gisberta, brutalmente assassinada há 14 anos em Portugal

Larissa Bispo - Editado por Roanna Nunes
Foto/Reprodução: Amazon
O ano era 2006. O lugar, um prédio abandonado em Porto, Portugal. Foi ali que a transexual Gisberta Salce Júnior, 45 anos, passou os seus últimos dias de vida antes de ser cruelmente torturada e assassinada por um grupo de 14 adolescentes.

Diante do medo da crescente onda de violência contra transexuais na década de 1980, em São Paulo, Gisberta deixou o Brasil com apenas 18 anos, optando por morar na França. Mais tarde, mudou-se para Portugal, onde trabalhou com transformismo em bares e boates. A vida como artista, no entanto, não lhe proporcionava renda suficiente para suprir suas necessidades básicas, fato que a faz recorrer à prostituição.

Gisberta, porém, era soropositivo e, sem poder se sustentar através da prostituição, junto às dificuldades de encontrar emprego, se tornou imigrante ilegal no país. Dessa forma, sem condições financeiras para pagar as contas, a transexual precisou deixar o apartamento em que morava para se abrigar em um prédio abandonado e precário em Porto. 

Recentemente, a triste e cruel história de Gisberta foi retratada no livro “Pão de Açúcar” do escritor português Afonso Reis Cabral, publicado em 2018 e lançado no Brasil apenas esse ano, pela editora HarperCollins. O título carrega o nome do cenário onde a transexual passou os últimos dias e traz uma obra construída a partir de uma narrativa que se utiliza da combinação de fatos e ficção.

A história gira em torno dos garotos desde o momento em que um deles, Rafael, conhece a brasileira e constrói com ela uma oscilante relação de amizade que perdura apenas até o evento em que Gisberta decide o revelar sua sexualidade e sua condição de saúde. Entretanto, o que antes era uma amizade se transforma em repulsa, e, movido pelo ódio, Rafael conta para seus amigos, dando então início a longa tortura e sofrimento de Gisberta até seu último suspiro.

O paradoxo incompreendido dessa história está no fato da mudança de comportamento dos garotos. Em um momento dispostos em ajudá-la e em outro, não mais. Outro interessante ponto é a escolha do autor, que opta por construir a narrativa através do ponto de vista de Rafael, um dos assassinos de Gisberta. Segundo Afonso, em uma entrevista para o site JPN – Jornalismo Porto Net, “(...) isto tudo dá um ângulo diferente à história. É um deles – que é agente ativo na narrativa – o narrador na primeira pessoa, que nos conta o que se passou e o que fez. Isto interessa muito, porque eu gosto de narradores não fiáveis, narradores que estão comprometidos na história, mas que nos contam de uma determinada maneira”. Ele ainda finaliza dizendo que “É preciso perceber como é que eles nos estão a contar a história”.

Não é novidade a importância do papel da literatura na abordagem de problemáticas sociais que vivem em constante discussão. Ela possui essa capacidade de trazer diferentes perspectivas de vivências além da nossa bolha e levantar autoquestionamentos. Através da ficção moldada por esses fatos, é possível não apenas encarar essas duras realidades que atravessam anos e gerações, mas também colocar em evidência a razão de precisarem ser discutidas, faladas e, principalmente, propagadas.

A partir da ficção em “Pão de Açúcar” baseada em fatos, a narrativa literária é inerente a reflexão sobre a crescente intolerância e as consequências causadas por ela. Gisberta deixa São Paulo para fugir dos altos índices de violência, mas acaba em um destino semelhante em Portugal. Não é preciso de muitas palavras para entender o grau dessa lamentável ironia que se faz presente e que, infelizmente, ainda continua configurando-se de maneiras distintas e trágicas.

O caso de Gisberta retratado no livro abre os olhos para encontrar um caminho de empatia. Mas No meio do caminho de Gisberta tinha uma intolerância, tinha uma intolerância no meio do caminho de Gisberta”, arrisco parafrasear Carlos Drummond de Andrade. De fato, esse conto de empatia perdida obviamente não é a resolução de todos os problemas e o contexto que envolve essa extensa problemática social a ser combatida, mas abre portas para compreensões e abraça dolorosas situações – talvez, quem sabe, evitáveis.

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