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26/03/2021 às 14h52min - Atualizada em 26/03/2021 às 14h45min

Crônica: o inimigo dorme ao lado

Na maioria dos casos de violência doméstica, o agressor é sempre uma pessoa próxima da vítima

Talyta Brito - Editado por Andrieli Torres
Foto: Reprodução/Freepik.com
O sol brilhava naquela tarde de domingo – contradizendo todas as previsões do tempo divulgadas nos dias anteriores. O cheiro vindo da churrasqueira predominava por toda área externa. As constantes mudanças na playlist eram a única coisa que tirava a harmonia do ambiente. − Deixa o meu pagode! – Gritou alguém antes de pular na piscina. Não! Troca isso por um sertanejo universitário – falou uma moça enquanto procurava os óculos de sol na bolsa. O intuito do encontro era rever os amigos da faculdade.

A graduação chega ao fim, cada um segue seu caminho e os encontros se tornam cada vez mais raros. O casal chegou com as mãos entrelaçadas e logo se tornaram o centro das atenções. Alguns dias atrás anunciaram no Instagram a chegada da primeira filha. “O pai do ano chegou! ” Falou o rapaz de blusa azul, que aparentava ter uns 28 anos, vindo na direção do amigo para cumprimentá-lo. "Esse vestido longo ficou tão lindo em você! “ Já dá até pra ver a barriguinha, alguém completou. Mal sabia elas que aquele vestido não foi uma mera escolha pessoal e sim uma imposição. 

 
Uma hora antes
 
− Tô pronta! − Falou enquanto procurava o celular no meio do emaranhado de papeis dispostos sobre a mesa.
− Você não vai com esse short! Quantas vezes eu já te falei que eu não quero você usando esse tipo de roupa?
− Vamos logo! Para falar a verdade eu nem queria ir nesse encontro. Tenho vários relatórios do trabalho para finalizar.
− Você não vai mesmo a lugar nenhum vestida assim!
− Larga de implicânnnnn... Sua voz foi silenciada com um tampa. As lágrimas vieram, ela logo tentou se controlar para não criar alarde nos vizinhos.
− Vista-se descentemente e desça! Estou te esperando no carro.

 
Assim que ele bateu a porta irritado, ela pensou em ligar para os pais, mas desistiu. Como falavam suas amigas “todo casamento tem problemas”. Embora fosse a primeira vez que ela tinha sido agredida, as brigas por conta das vestimentas aconteciam desde a lua de mel.  

Todo domingo, a senhora da casa branca, tinha uma rotina definida ao chegar ao final da tarde.  Era praxe revirar todo o guarda roupa para encontrar uma camisa de manga comprida e uma saia longa. Os trajes ajudam a esconder as marcas da violência. O culto começava por voltas das 19h, e como boa fiel que era ela não gostava de chegar atrasada. Alguns hematomas eram impossíveis cobrir com tecido. Quando alguém questionava o motivo da roxidão pele corpo ela sempre dava a mesma desculpa “foi um acidente doméstico, sou muito desastrada.” As pessoas pareciam acreditar naquela conversa, a família da mulher era uma referência naquela congregação, filhas atuantes no ministério, o marido um verdadeiro cristão, homem de família, qualquer insinuação de agressão parecia absurda. 

Embora se sentisse mal por estar mentindo, falar a verdade dentro do contexto que estava inserida geraria um verdadeiro rebuliço.  O que as pessoas não sabiam é que o seu maior inimigo dormia todas as noites ao seu lado. Já fazia vinte anos que a mulher sofria calada e vivia uma vida de aparências. Quando o primeiro ato de violência aconteceu, ela procurou seu líder espiritual. Ao invés de ampará-la e denunciar o agressor aos órgãos responsáveis, ele aconselhou a orar e permanecer firme, relembrando que “o que Deus uniu, ninguém separe o homem”.

                                                                                     ...
Quando o carro parou na garagem do prédio ela estava totalmente absorta nos próprios pensamentos. Poucas palavras foram trocadas durante o trajeto de volta.

− Amor? – Ele disse assim que desceram do veículo.
Ela fixou o olhar nele.
− Me desculpe pelo tapa, eu não sei onde estava com a cabeça. – Falou colocando o rosto entre a mãos para externar a vergonha pelo ocorrido.
− Prometo que isso não vai acontecer nunca mais. Eu te amo tanto – mais do que posso pôr em palavras, foi um deslize que ficou no passado. Agora temos que focar na nossa filhinha que vai nascer, e deixar esses episódios tristes para trás, não é? Ela assentiu.

A duas quadras do prédio onde o casal fazia as pazes e tentava seguir em frente, a estudante de Ciências Contábeis, se preparava para mais uma festa organizada pela atlética.  Ela chegou ao local por volta das 22h, meia hora depois, resolveu ir ao banheiro retocar a maquiagem. Antes mesmo de adentrar o aposento era possível escutar um choro abafado, mas a princípio ignorou. Antes de sair perguntou:

−Tá tudo bem? Nenhuma resposta. Quando já estava saindo ouviu o destravar de uma das portas. Uma garota com um lábio inferior ensanguentado, visivelmente abalada surgiu.
− Ele me bateu novamente – Disse tentando controlar o soluço
Quando a graduanda fez menção de pegar o celular, a outra moça gritou:
− Por favor, não liga para a polícia! Foi tudo minha culpa. Eu não deveria ter vindo para a festa sem avisá-lo.
− A culpa nunca é da vítima! – Disse enquanto discava para o Ligue 180.

                                                                       ... 

A paz entre o casal durou menos de 24 horas.
− Eu te avisei sobre certos tipos de roupa! Você está me desafiando? – Disse enquanto a puxava pelos longos cabelos pretos
− Me solta! – Gritou
− Pode gritar o quanto quiser, ninguém vai te ouvir! – Falou enquanto tentava tapar sua boca.
− Para! Você está colocando em risco a vida do nosso bebê – desabafou em meio a socos e pontapés
− Isso lá é postura de mulher casada? Apontou para uma foto do celular onde ela aparecia de biquíni
− Isso é uma recordação do facebook de três anos atrás – Disse em meio as lágrimas.
− Não importa! Trate de excluir, não aceito que minha mulher se exponha desse jeito. 

A sessão de pancadaria durou cinco minutos, mas a dores perduraram por muitos dias. Sua maior preocupação era com a vida que carregava no ventre, por isso decidiu procurar um médico. Na hora da consulta, inventaria alguma coisa do tipo: caí da escada, tropecei no estacionamento. Felizmente naquele dia a clínica estava vazia. O celular tocou e ao perceber que era o marido, o medo a dominou. Levantou rapidamente para atender e percebeu que ao longe uma senhora, aquela da casa branca, a observava. A princípio ficou incomodada, mas conclui a ligação dizendo que estava em uma das consultas pré-natais.

­ − Minha filha, por mais doloroso que seja, é preciso quebrar o círculo da violência. – Falou tentando puxar conversa.
− A senhora nem me conhece, não sei ao que está referindo.
− Tenho certeza que sabe, eu sofro desse mal há décadas, consigo identificar quem está sofrendo das mesmas dores que eu
− Não caia nessa conversa de mudança, denuncie antes que seja tarde. E lembre-se  a culpa nunca é da vítima.

 
Três histórias diferentes, e o mesmo problema – a violência doméstica.  Conforme, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em 2020, foram registradas 105.821 denúncias de violência através do Ligue 180 e Disque 100. 

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