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02/04/2021 às 10h15min - Atualizada em 02/04/2021 às 09h57min

"Sonhos confinados”: imagens de um momento histórico

Sonhos em tempos de pandemia como mensagens do inconsciente

Ianna Oliveira Ardisson - Editado por Roanna Nunes
Fonte/Reprodução: Instagram @sonhosconfinados
A pandemia de Covid-19 desorganizou nossa rotina diária, e com isso, também afetou os tipos de sonhos enquanto dormimos. Pessoas que não se lembravam de seus sonhos começaram a relatar com clareza o que passaram a sonhar quando tudo começou a nos atingir no Brasil em 2020. Em março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou oficialmente a pandemia do coronavírus. Pouco antes disso festejávamos do mesmo modo de sempre e fazíamos planos para um novo ano comum como todos os outros. Mas, de repente, tudo mudou ao nosso redor, perto e longe de nós, um novo modo de viver surgiu, passamos a sobreviver em um tempo de isolamento e adaptações.

 

 
“Medo do futuro, da ascensão do fascismo. Medo da morte, do luto. Medo de ficar presa... de perder liberdade. Não tenho certeza de nada, só que esses sonhos estão ficando mais reais.” (ALGUÉM, BRASIL,2020)

Esse trecho acima foi retirado do livro “Sonhos confinados: o que sonham os brasileiros em tempo de pandemia” lançado recentemente. A obra foi o resultado de uma pesquisa-intervenção realizada em parceria pela USP, UFMG, UFRGS, UFRJ e UFRN, sobre os sonhos na pandemia, que ofereceu escuta individual a mais de cem pessoas.

Na introdução do livro é destacado que “esse recorte dos sonhos em momentos importantes da história não é algo exatamente novo. Desde Freud sabemos da importância que tem a escuta psicanalítica estar lá onde o desamparo dos sujeitos se encontra”. É com a publicação por Freud de “A interpretação dos sonhos”, em 1900, que começam a entender o papel do inconsciente na elaboração dos sonhos. Freud nos traz elementos para interpretação dos sonhos como acesso ao inconsciente. Primeiramente ele formula a hipótese de que o sonho é “a realização de um desejo”. Depois, reformula essa primeira hipótese ao analisar pesadelos, sonhos de angústias e outros materiais e conclui que “o sonho é a realização (disfarçada) de um desejo (reprimido, recalcado)”.

É importante perceber que nem tudo que vivemos durante o dia é “bem elaborado” pela nossa consciência. Freud denomina de “restos diurnos” esses elementos que possivelmente irão aparecer em nossos sonhos. Como o sujeito se constitui a partir de sua relação com a sociedade da qual faz parte, percebe-se na composição das narrativas dos sonhos individuais as questões públicas e sociais do todo. A pretensão da análise dos sonhos na obra não é fazer uma “predição do futuro”, os sonhos são analisados como parte da construção do tempo em que vivemos. Sendo assim, é importante perceber “a vida onírica como testemunha das questões que constroem nosso tempo social, político e cultural”.

O neurocientista Sidarta Ribeiro, vice-diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em uma live do canal “Valor Econômico”, no Youtube, falou sobre sonhos e o momento de pandemia. Ele explica que, normalmente, temos de 4 a 5 sonhos por noite. Segundo Sidarta, com a “perda da arte de sonhar” vivida por nossa sociedade, perde-se também uma capacidade de compreender melhor a sociedade humana. Sidarta destaca que o sonho não tem função na nossa sociedade, é algo particular, não compartilhado, que não diz respeito ao outro. Sendo assim, informações que dizem respeito ao coletivo são deixadas de lado por essa falta de interesse no rico material proveniente dos sonhos.

Sidarta Ribeiro cita estudos feitos sobre os sonhos na pandemia e diz que já foi detectado que palavras como “medo” e “agressividade” ficaram mais frequentes nos sonhos, dados obtidos por estudo feito por análise quantitativa de frequência de palavras. Além disso, relata dois tipos de sonhos que têm sido observados nessas pesquisas: sonhos do desespero e alguns sonhos épicos e profundos que fazem as pessoas cuidarem mais de si e de suas famílias. Sobre sonhos na pandemia ele explica como estão relacionados ao sofrimento vivido:
 
“As pessoas que sonham mais com contágio, que têm sonhos com mais medo e mais agressividade, emoções negativas, isso também explica o sofrimento psíquico tal como medido por uma escala psiquiátrica. Em outras palavras, o sofrimento das pessoas é expresso pelos sonhos, está expresso nos sonhos. E é um momento muito importante porque nos coloca como grupo novamente.”


Observou-se na pesquisa realizada, que resultou na obra “Sonhos confinados: o que sonham os brasileiros em tempo de pandemia”, uma tendência à “normalização” da atividade onírica alguns meses após o início da pandemia. Com as mudanças de hábitos e atitudes exigidas de todos nós a serem postas em prática rapidamente tivemos um esforço psicológico muito grande para lidar com o novo que surgiu.

Nosso trabalho psíquico foi muito intenso nesse momento histórico e percebe-se esses “sonhos confinados” como testemunhas desse processamento psíquico feito por nós. Ao perceber como os sonhos nos trazem informações podemos olhar com maior clareza para eles. Para ilustrar um desses sonhos “estranhos” vividos por tantos no início da pandemia leia a descrição de um dos sonhos, presente no livro já citado, e observe as palavras em destaque tal qual estão no original:
 

“Estava num prédio muito ALTO, imagino que no vigésimo andar. Não era um prédio luxuoso, mas era aparentemente SÓLIDO e com uma estrutura bacana, além de visualmente bem decorado. Por algum motivo que não sei exatamente qual, tive que sair de forma URGENTE, poderia ser um incêndio, poderia ser um curto-circuito apenas...mas o fato é que não poderia usar o elevador. Então corri para a ESCADA e quando a encontrei fiquei muito chocada pois o prédio havia ´se virado em seu EIXO’... tipo, invertido os lados... e a escada ficou virada para a PAREDE, além de ter aberto um BURACO, um vão da altura dos andares. Além de a escada ficar aparentemente INACESSÍVEL por ‘começar na parede’, a fenda muito larga que se abriu me IMPEDIA de sequer tentar chegar até a parede das escadas. Olhava o tamanho do buraco e a altura em que estava e sabia que seria IMPOSSÍVEL. Fiquei muito desesperada por estar ENCURRALADA ali e tive clareza de que não conseguiria me salvar, meu sentimento era de PÂNICO, muito REAL e até físico, tanto que acordei muito assustada e impressionada com tantos detalhes e a clareza com que eu via minha morte.” (ANNA, 38 ANOS,20 DE MAIO DE 2020)

Como observado pelo neurocientista Sidarta Ribeiro perdemos a “arte de sonhar” em nossa sociedade e, com isso, também deixamos de lado sinais importantes que os sonhos nos trazem. Seria enriquecedor resgatar esse olhar para os sonhos, ter interesse por aquilo que elaboramos ao dormir com os “elementos” que desprezamos enquanto estávamos acordados. Será enriquecedor avaliar os próprios sonhos para um crescimento pessoal que irá refletir no contexto que fazemos parte.

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