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14/05/2021 às 12h00min - Atualizada em 14/05/2021 às 11h58min

Crônica: organizando memórias

Como podemos olhar para uma estante e ver apenas livros?

Ana Paula Alves - Editado por Andrieli Torres
Foto:Reprodução/Internet

A estante de livros cheia de pó e completamente desorganizada estava começando a me incomodar. Cada vez que olhava para ela me sentia culpada pelo meu próprio descuido. Por isso, decidi tirar o dia para a limpar e organizar. Eu só não esperava a onda de memórias que me atingiu ao pegar cada livro da estante.

Havia um que minha avó me deu em um dos meus aniversários. Ela me abraçou, beijou minha bochecha, e, com muita ternura, colocou o pacote em minhas mãos. “Toma, minha filha, é algo simples, mas logo que vi eu lembrei de você”, f+oi o que ela disse. Realmente era simples, um livro clássico, numa edição de capa de brochura sem orelhas. Na primeira página, escrita à caneta, havia uma pequena dedicatória com a letra dela: “Para minha linda neta. A vó te ama!”.  As pontas da capa estavam envergadas e a lombada estava cheia de marcas, uma prova física de que eu o li incansávelmente, minha avó sempre acerta em seus presentes. Eu podia sentir o amor dela ao pegar o livro em minhas mãos.

Também acabei encontrando o primeiro que li por completo. Eu o ganhei de meus pais quando tinha dez anos. Na época, eu não cansava de me gabar por ter lido um livro de 60 páginas, sem figuras! Fiquei absurdamente orgulhosa por mim mesma. Eu havia demorado algumas semanas para terminar, a leitura ainda não era um hábito, mas eu ficava cada vez mais empolgada a cada página lida, cada uma era uma pequena conquista. Até hoje me lembro da história. E me lembro de deitar no sofá da sala e dizer que ninguém deveria me incomodar, pois eu estava lendo e isso era mais importante que qualquer outra coisa. Foi assim que os livros me capturaram em seu universo e eu nunca mais me permiti sair dele.

Eventualmente, me deparei com o livro que foi meu companheiro na época mais difícil de minha vida. Eu estava deprimida e sem disposição para continuar o dia a dia normalmente, precisei tomar certo tempo para me recuperar. Durante esse período, o livro foi minha válvula de escape, um momento mais leve em meio ao caos. Ele me ajudou a passar por aquilo, a continuar e ter esperança de que existiriam momentos mais felizes adiante. Infelizmente, acho que não conseguiria reler esse livro sem lembrar e reviver tudo que passei. O que é uma pena, é realmente um livro muito bom.

Em contrapartida, achei o livro que levei quando fiz a melhor viagem da minha vida. Eu o terminei durante os dias que se estenderam a viagem. Ele me acompanhou desde o trajeto para chegar ao meu destino, até os momentos em que eu apenas curti o lugar e relaxei, enquanto tomava uma bebida e comia petiscos deliciosos. O livro ficou até com o cheiro daquele lugar paradisíaco. Quando eu o peguei para tirar o pó, foi como se eu estivesse lá de novo, aproveitando alguns dos melhores dias da minha vida. 

Agora, depois que terminei de arrumar tudo e passei por todos os livros da minha estante, me senti ainda mais culpada por tê-los negligenciado. Como pude ignorar tantas memórias e deixá-las pegando poeira? Como pude olhar para essa estante e ver apenas livros? 


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