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19/07/2021 às 10h25min - Atualizada em 19/07/2021 às 20h57min

Tatuadores buscam desmistificar preconceito em pele negra

Mercado da tatuagem ainda precisa de incentivos para o estudo da tatuagem em pele preta

Leticia Menezes - Revisado por Isabela dos Santos
Tatuadores relatam que é possível fazer tatuagem colorida em pele negra. O ideal é procurar um profissional qualificado para isso. (Foto: Sketch Gamble | Reprodução Twitter

Estudos realizados acerca da da tatuagem apontam que, desde a sua origem, seus usos ao longo da história foram sendo, além de uma manifestação cultural, parte de rituais, marca punitiva, identificação grupal, entre outros diversos papéis na sociedade. Porém, seu uso por grupos específicos como prisioneiros, escravos e pacientes psiquiátricos acabaram mantendo a tatuagem associada a um caráter negativo ao longo da sua história. Esse processo histórico não apagou os estigmas na atualidade, principalmente relacionados à população negra. 

Pensamentos eurocêntricos referentes à tatuagem marcaram a história do surgimento desse estigma. A influência das raízes europeias e da colonização colaboraram para o preconceito enraizado na sociedade atual de que a tatuagem em pele negra não é bonita, de que não se deve usar cores nos desenhos e de que a tatuagem só serve para as peles brancas.

“Pele preta tatuada não é tão enaltecida quanto uma pele branca: se você entrar no Pinterest, por exemplo, você não vê nenhuma referência de tatuagem em pele preta. Isso leva as pessoas a acreditarem que a tatuagem não é para a pele delas”, afirma Nathalia Avidago, tatuadora há 2 anos e meio. De acordo com ela, essa é uma realidade de muitas pessoas negras ao buscarem modelos de tatuagem na Internet e, consequentemente, o motivo que as deixam mais inseguras no momento de fazer a tattoo. 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Uma publicação compartilhada por ᪥ NATHALIA AVIDAGO ᪥ (@avidago.tattoo)A estilista Edna Correa Rosa, de 39 anos, concorda que, no momento de procurar inspirações e referências, o Google não favorece as pesquisas para a pele negra: “Tem que procurar específico, né. Se procurar ‘tatuagem’, vai aparecer só pele branca. A busca tem que ser bem minuciosa: no Instagram, com especialistas, ou no Pinterest, escrevendo exatamente ‘tatuagem em pele negra’”.


A estilista Edna Correa Rosa, de 39 anos, concorda que, no momento de procurar inspirações e referências, o Google não favorece as pesquisas para a pele negra. “Tem que procurar específico, né. Se procurar ‘tatuagem’, vai aparecer só pele branca. A busca tem que ser bem minuciosa: no Instagram, com especialistas, ou no Pinterest, escrevendo exatamente ‘tatuagem em pele negra’”.

Ela, que já realizou várias tatuagens durante a sua vida, disse que, com certeza, já ouviu falas cotidianas e comentários preconceituosos sobre a tatuagem colorida em pele negra, inclusive de que pretos não deveriam ter tatuagem porque ela não aparece ou fica desbotada. A dificuldade nas buscas de referências refletem no apagamento da visibilidade da tatuagem em pele negra pela sociedade. Além disso, a falta de informação estudada e divulgada sobre a pele negra leva as pessoas a reproduzirem discursos equivocados, como os citados por Edna.  

Ponto de partida


Esse apagamento, bem com o preconceito enraizado, foi o principal motivo para que Zulu Gregorio começasse a sua caminhada na especialização de tatuagem para peles negras. Ele, que tatua há 3 anos e 9 meses, lembra que, quando desejou aprender mais sobre, ouviu de um tatuador do seu bairro que, por ele ser negro, só poderia realizar tatuagem com tinta branca: “aquilo me impactou. “Como assim, eu sou negro e não posso fazer tatuagem?” Acho que esse foi meu primeiro gatilho”.

Já o carioca Alexandre Henrique conta que entrou no mundo da tattoo porque sentia falta de representantes negros no meio, além de perceber a ausência de tatuadores publicando seus trabalhos em peles pretas no feed das redes sociais. Tatuador há 1 ano e 9 meses, ele vê a presença de pessoas negras na tatuagem como representatividade.

 

“Nós temos que estar em cargos importantes, em empregos significativos, em áreas que, por esse racismo estrutural que vivemos, acabam sendo ocupados em sua maioria por brancos. Eu quero cada vez mais pretos na tatuagem e em muitos lugares da arte, nos representando e inspirando outros pretos todo dia para acabar com essa segregação.”

 

 

O mercado é branco


Mesmo com a população negra fazendo parte de 54% da população brasileira, de acordo com dados do IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística- ainda é evidente a ausência de registros de tattoos em portfólios de tatuadores, além de haver pouco espaço para os tatuadores especializados em tatuagem para pele negra mostrarem os seus trabalhos. Isso corrobora para um mercado excludente - tanto para os tatuadores, quanto para as peles negras tatuadas.

De acordo com Zulu, os tatuadores negros com trabalhos incríveis têm pouquissima visibilidade e reconhecimento, e o algoritmo não favorece a partir de certo ponto. Nathalia Avidago conta que, nos concursos de tatuagem, os tatuadores sempre procuram uma pele branca para darem destaque ao seu trabalho.“O mercado da tatuagem é totalmente branco”, afirma, contribuindo que, hoje, se vê poucos tatuadores pretos no mercado. 

Ela complementa: “quando você entra como tatuador no mercado de tattoo, nunca te falam dessa diferença de tatuagem em pele preta e pele branca. É algo que muitos tatuadores não estudaram e não desenvolveram técnicas” afirma, reforçando que, assim como existem técnicas adequadas para se usar em pele branca, existem técnicas diferentes para realçar uma tatuagem na pele preta, por isso que a visibilidade aos tatuadores profissionais negros é importante.

A tatuadora denuncia que, ao entrar no mercado de tatuagem, não há incentivos para o estudo da tatuagem em pele preta, e isso leva tatuadores a não aceitarem esse tipo de trabalho por falta de estudo, enquanto outros acabam aceitando apenas pelo dinheiro, e as tatuagens tendem a não ter um bom resultado. Alexandre instiga: “a grande maioria dos tatuadores já está confortável só tatuando brancos, então, para quê vão se preocupar com a gente, não é mesmo?”

Um outro olhar para os traços


No processo de realização da tatuagem em pele negra, a atenção especial no processo de escolha dos traços, das cores e dos estilos pode influenciar no resultado final. A tatuadora Nathalia afirma que é importante saber aplicar sombra e cor na pele preta, além de estudar os tons e subtons para valorizar o trabalho.

Zulu lembra o fato da pele negra ter mais melanina e, por isso, evidencia o cuidado para o espaçamento entre um traço e outro, o contraste de uma agulha, além de usar algumas técnicas a favor como luz, sombra e algumas tintas como o vermelho, o laranja e o branco.

A escolha certa da cor também influencia para a duração da tatuagem. Laura Rodrigues, funcionária pública, já realizou muitas tatuagens coloridas e concorda que há cores que funcionam na pele e que as percebe vivas até hoje, sendo a cor vermelha uma delas. “Me tatuei com tatuador negro e, realmente, o vermelho que ele usou na tatuagem já faz 10 anos e ainda está vivo”, conta.

“A primeira coisa que a gente tem que fazer é olhar para aquela pele em especial, para aquela pessoa que vai carregar a tatuagem. Saber como está aquela pele, a tonalidade, saber por qual caminho a gente vai trabalhar”, afirma Zulu.

 

Cuidado redobrado

 

A Dra. Katleen da Cruz Conceição é referência em tratamento para a pele negra no país e sempre debate sobre o assunto. Em entrevista a Elle, a dermatologista afirma que o processo de pigmento na pele negra é trabalhoso, porque a melanina age como filtro e esconde pigmentos mais claros que o tom da pele, além de advertir que ela fica mais suscetível a quelóides, sendo necessária certa sensibilidade e atenção ao tatuá-la. 

Nathalia adverte seus clientes da tendência de quelóide e sempre pede para ficarem atentos, passando pomada nos dias seguintes do processo, bebendo muita água e ingerindo alimentos saudáveis. Zulu recomenda que a pessoa evite a exposição ao sol, pois ele agride a pele. A tatuagem é um machucado, portanto, é necessário o uso do plástico filme pós sessão e a lavagem pelo menos com água, já que a própria pele libera uma secreção que serve como lubrificante natural e cicatrizante. 

Para a pele negra, é ideal o uso de restaurador térmico próprio para tatuagem, pois, às vezes, a própria química da tatuagem expele mais tinta. Após três dias com esses processos, deve-se hidratar a pele aos poucos - evitando, também, ingerir alimentos e bebidas que retardam a cicatrização e a recuperação da pele, como o coco, açaí, frutos do mar, destilados e comidas gordurosas. 

Desconstrução

Os tatuadores especializados em pele negra buscam, além da visibilidade para tatuagens, a desconstrução do imaginário criado pela sociedade - quanto mais retinta a pele, mais provável de ouvir comentários negativos - que alimenta o discurso de que a cor não é bem-vinda. As pessoas não estão acostumadas a ver o trabalho colorido na pele negra, e Zulu é um dos tatuadores que quer desmistificar esse preconceito, afirmando que dá, sim, para colocar cor na tatuagem, além de querer estudar e aprender cada vez mais para trazer um trabalho que é tribal e ancestral.

Nathalia reflete que a maior parte dessa insegurança das pessoas pretas em relação à tatuagem é porque elas ouviram isso a vida inteira, e que essas falas equivocadas e preconceituosas que sempre escutam causam frustrações e as deixam inseguras. “Eu estou tentando desconstruir isso, mostrando totalmente ao contrário - mas, mesmo assim, ainda é um pouco difícil e delicado convencer as pessoas que é, sim, possível [fazer tatuagem colorida]. É só procurar tatuadores que vão saber lidar com a pele delas pra elas terem um resultado satisfatório na tatuagem”, afirma.

 

“Um apelo que eu faço é simples, irmãos pretos e pretas: procurem sempre profissionais pretos para fazerem suas tattoos, ninguém entende melhor suas necessidades do que outro irmão preto.” - Alexandre Henrique, tatuador.

 

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