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30/07/2021 às 14h38min - Atualizada em 30/07/2021 às 14h31min

Crônica: sonhos pandêmicos

A pandemia influenciou a realidade das pessoas e, por consequência, seus sonhos

Ana Paula Alves - Editado por Andrieli Torres
https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2021/07/19/saiba-como-os-sonhos-tem-sido-influenciados-pela-pandemia-de-covid-19
Foto: Reprodução/Internet

Eu estava no mercado, encolhendo os legumes que pareciam mais frescos. Olhei ao redor e vi as pessoas andando, também escolhendo seus vegetais, todas de máscara.

Peguei uma cenoura para analisar, mas ela era muito pequena, do tamanho de um dedo. Procurei um pouco mais, achei uma que parecia bonita, a cheirei para ter certeza de que estava boa. Mas eu não devia conseguir cheira-la de máscara. 

Foi quando percebi que minha máscara derretia sobre o meu rosto, formando uma poça colorida aos meus pés. Entrei em desespero, larguei a cenoura contaminada e tentei reunir a poça para formar a máscara novamente, mas o líquido escorria pelos meus dedos.

Me levantei, gritei perguntando para as pessoas se alguém tinha uma máscara reserva para me emprestar. Mas quando olhei para seus rostos, suas máscaras também derretiam e, ao contrário de mim, elas pareciam não se importar. Uma moça desmascarada se aproximou, eu corri dela, assustado, tentando fugir de todas as outras pessoas no mercado, que talvez estivessem contaminadas. Procurei pela saída do mercado, mas aquilo parecia um labirinto, eu comecei a ofegar, de medo e de cansaço pela corrida. Tantas pessoas. Sem máscara. Espaço fechado. Eu só queria comprar cenouras.

 

Eu acordei ofegante. Aliviado ao perceber que foi só um pesadelo. Deus me livre se algo assim acontecesse na vida real. Foi tão vívido, mesmo com coisas tão absurdas acontecendo. Fiquei durante mais um tempo na cama, até o sonho ser varrido para o esquecimento, junto com o medo que ele trazia.

Me levantei e me arrumei para ir ao mercado de verdade, pois realmente era o dia que eu precisava fazer compras. Eu sempre vou bem equipado, máscara bem colocada, face shield e álcool em gel no bolso. Não posso correr o risco de me infectar ou aos meus pais, isso seria horrível.

 

* * *

 

Eu estava na rua de casa, andando normalmente. Ao longe, vi uma senhora, também andando. Então a vi tombando, caindo no chão quase como se estivesse em câmera lenta, começando a se contorcer com tosses fortes e agressivas. 

Olhei perplexa para aquela cena, e tentei correr até ela, mas meus pés não saiam do chão, pareciam presos, grudados ao solo. Não tinha mais ninguém na rua para ajudar a senhora, apenas eu, e não conseguia sair do lugar. A observei enquanto ela se curvava sobre o próprio corpo devido a tosse intensa. Tentei forçar ainda mais minhas pernas a se moverem, mas elas não respondiam.

A senhora começou a demonstrar uma respiração ofegante, desesperada por ar em seus pulmões, as células começando a sentir falta do oxigênio. Enquanto isso, minhas pernas afundavam na calçada, que estava tão pastosa quanto lama, me prendendo e imobilizando. A senhora já começava a ficar com uma coloração azulada que não deveria ter, estava sufocando. Vi seus últimos espasmos em busca do ar que lhe faltava, então seu corpo simplesmente parou. Não precisava me aproximar para constatar. Morta. Eu a deixei morrer. Eu a assisti sem poder fazer nada.

 

Acordei perturbada. Agora que minha mente estava desperta, podia entender o sonho a partir do que ainda me lembrava. Não é como se fosse a primeira vez, como se eu nunca tivesse acompanhado a morte de alguém. Mas o sentimento de impotência era abalador. Eu sabia disso quando escolhi minha profissão, sabia que veria cenas horríveis, mas têm sido pior nos últimos meses, mais recorrente.

Me esforcei para esquecer isso e me aprontar para a realidade, que necessitava mais da minha atenção do que as perturbações de um pesadelo. Levantei e comecei a me arrumar para sair de casa rumo ao hospital em que trabalhava, onde, talvez, eu pudesse pelo menos tentar ajudar alguém.

 

* * *

 

Eu estava deitada em minha cama, mas não dormia. Não conseguia. Estava inquieta com algo, embora não soubesse o que era. Sentei na cama e olhei ao meu redor, não havia nada de estranho no quarto, me deitei novamente. 

Logo que o fiz, as sombras se moveram ao meu lado. Estavam na cama esse tempo todo. Elas ondulavam de forma lenta, emitindo uma respiração pesada e regular. Podia sentir que estavam olhando minhas pernas, encarando de uma forma desconfortável. O olhar passou pelas minhas coxas, minha cintura, meus seios. Elas não paravam, não se desviavam de mim. Eu me encolhi, tentando inútilmente me afastar de seus olhos perturbadores. Elas não desistiram, se atiraram sobre mim, me envolvendo em um calor repulsivo, roçando na minha pele. 

Por que elas estão fazendo isso? Me deixem em paz! Me soltem! Não toque em mim! Pânico! Medo! Desespero! Tudo me atingiu como uma onda que quebra nas pedras da praia, como as sombras que se chocavam contra mim. 

Eu tentei gritar, abri a boca e usei toda a minha força, mas não saiu som algum.

 

Quando acordei do sonho, estava atordoada, não me lembrava mais dos detalhes, apenas da sensação de pânico. Me vi sozinha na cama, agradecida por meu marido já ter se levantado. Isso permitiu que eu me acalmasse e que aos poucos o sentimento ruim fosse embora. 

Era bom que ele não estivesse com vontade de fazer nada essa manhã, como estava em tantas outras. Eu não estaria com vontade, não iria querer fazer nada, mas ele insistiria, como sempre fazia. E eu iria discutir, falar que não queria, mas no fim, como sempre, ele iria fazer o que quisesse comigo, ou porque a insistência me faria ceder, ou porque ele se forçaria contra mim. Eu me encolhi ao lembrar das vezes que isso aconteceu, sentindo um bolo na garganta.


 
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