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13/09/2021 às 18h52min - Atualizada em 13/09/2021 às 18h42min

Crônica: Se a Floresta falasse

Uma semana desde o “Dia da Amazônia”, ouvi muita comoção no dia, mas eles logo esqueceram que eu existo. No final, eu continuo, ou tento, mas algumas perdas são irreparáveis e dolorosas demais

Evellyn Torres - Editado por Talyta Brito
Reprodução / Carl de Souza - AFP
Mais um ano, cada dia que passa eu ouço e enxergo menos. Normalmente, alguns séculos ou décadas não trazem tanta diferença, mas, agora, toda a Terra sente, a dor, as cinzas, a morte presente. Algo precisa ser feito se quisermos sobreviver, mas essa decisão não cabe a nós, e sim aos humanos. 
Antes, meu alcance era gigantesco, o que não conseguia alcançar os animais da Terra traziam, contavam histórias e cuidavam da nossa casa, mas eles foram os primeiros a serem levados, vendidos ou mortos. Os índios também, eles me protegem e eu os protejo, ou pelo menos era assim, a maioria foi assassinada, poucos restaram. Não consegui salvar todos. Para os que persistem, lutar pelo direito de viver é a única opção. 
Posso ter milhões de anos, mas em toda a minha existência, nunca conheci algo tão destrutivo quanto o homem branco. Há muita arrogância, se acham superiores, constantemente brigando entre si e destruindo o que há em volta. Não posso me envolver diretamente nos conflitos, assim como meus irmãos e irmãs, então nós observamos.
O que acontece agora é apenas consequência das ações deles, infelizmente, não conseguimos proteger os mais fracos, eu mesma não consigo me proteger. Sei que não devemos nos apegar às vidas humanas, mas com tanta tragédia e injustiça, nosso tempo vai se encurtando, sofremos com cada perda mais do que nunca.
Passou-se uma semana desde o dia 5 de setembro, eles pensaram mais em mim. Comentaram sobre nós nas redes sociais, mas não consigo me sentir especial, pois eles logo me esqueceram, não se importam de verdade, se interessam mais com a opinião pública. Políticos falam como a Floresta Amazônica é importante e deve ser protegida, cheia de biodiversidade, com mais de 5 milhões de Km2, espalhados pela América Latina e 60% da minha extensão em território brasileiro, mas são os mesmos que votam em projetos para a minha destruição. 
Um ou outro pássaro me traz notícias, alguns humanos também, eles tiram fotos, procuram os responsáveis, choram, cuidam dos feridos. Eu sinto a dor deles e vejo no olhar, sei que se importam de verdade. Um me disse que fizeram uma reunião com os líderes mundiais para debater sobre o clima, minha segurança e a de minhas irmãs e irmãos. Bem, homens velhos sempre se reúnem para debater tragédias, mas dificilmente fazem algo a respeito. 
No começo, achei a homenagem bonita, um dia para debaterem, não esquecerem, mas percebi que na maioria, são apenas palavras vazias. No final, qual o significado de tudo isso? Também vejo eles traduzirem o que acontece comigo em números, gráficos, não é nem 1% do que sinto, mas considero o esforço. As fotos que jornalistas e ambientalistas fazem conseguem expor melhor como me sinto. Mas não é só a dor que eles capturam, também tem a beleza, cores, texturas, rios, tem vida, antes tinha muito mais.
Enquanto penso sobre isso, vejo mais uma parte sendo derrubada fazendo um som ensurdecedor, como um grito de agonia, também vejo homens armados andando dentro de mim. Sinto mais uma vida se perdendo para o fogo, lágrimas de quem tentou salvá-lo tocam o solo. Vejo outros explorando a terra com máquinas enormes, cortando as árvores e levando-as para longe. Invadem as terras indígenas e terras protegidas pela lei do país. 
Além deles, há o garimpo, a mineração e a contaminação das minhas águas e rios. Eles parecem não notar o efeito cascata que isso acarreta no ambiente, ou talvez saibam, apenas não se importam como muitos no poder, que ousam culpar os meus guardiões pelo fogo que se espalha. 
Pesquisadores de institutos falam que o desmatamento só aumenta, cresceu 51% nos últimos 11 meses, maior destruição em dez anos. Com isso, há o avanço da pecuária, queimam, cortam e jogam outros animais no lugar, dizem que é “criação de gado”, em outros casos plantam soja para exportar. E o ciclo se repete, campos enormes e vazios de cor, de alma. 
 
Consigo sentir tudo. Todos os animais sofrem, a vida vai se esvaindo, a Floresta queima no planeta todo, eu queimo enquanto eles debatem sobre mim. Mais uma ano está por vir, na data que declaram como meu dia, as vozes irão aumentar. Quando eu queimar mais um pouco, irão publicar manchetes e fazer tweets indignados. Quando mais uma parte de quem eu sou for desmatada para se tornar um pasto, alguns irão chorar, se revoltar, tentar fazer algo. Só espero que não seja tarde demais para todos nós, ainda tenho fé de que não é tarde demais para a humanidade. Afinal, é só o que me resta.


 

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