Lab Dicas Jornalismo Publicidade 728x90
17/09/2021 às 10h44min - Atualizada em 17/09/2021 às 10h28min

“Abecê da liberdade”: livro é retirado de circulação após críticas

Navios negreiros apresentavam condições desumanas e superlotação sendo impensável ver crianças se divertindo na viagem como retratado no livro infantil

Ianna Oliveira Ardisson - Editado por Talyta Brito
Fonte/Reprodução: Google
No dia 11 de setembro de 2021, a Companhia das Letras reconheceu em nota a falha cometida no processo de reimpressão do livro “Abecê da liberdade”, de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta. Após receber críticas sobre como foi abordado o processo da escravatura retiraram o livro de circulação. A obra conta a história do escritor, advogado e abolicionista Luiz Gama. O livro poderia ser uma contribuição para a valorização da cultura negra, entretanto busca suavizar a história de sofrimento ao trazer a cena de crianças brincando no navio negreiro.
 
O Grupo Companhia das Letras publicou emitiu um pedido de  desculpas pelo conteúdo do livro, o qual teria sido reimpresso automaticamente sem uma releitura interna. Lamentaram e reconheceram o erro cometido. Esclarecem que a obra foi retirada de circulação:
“Lamentamos profundamente que esse ou qualquer conteúdo publicado pela editora tenha causado dor e/ou constrangimento aos leitores ou leitoras. Assumimos nossa falha no processo de reimpressão do livro, que foi feito automaticamente e sem uma releitura interna, e estamos em conversa com os autores para a necessária e ampla revisão.”
 
A cena mais polêmica apontada e firmemente criticada é a que o personagem principal, Luiz Gama, ainda pequeno, aparece feliz brincando de roda no navio negreiro com outras crianças. Essa situação nos permite olhar com mais cautela para o doloroso processo vivido pelos negros e alertar para a preocupante situação de romantização da escravidão. Veja abaixo a ilustração presente no livro e leia o trecho da obra:

"Eu, a Getulina e as outras crianças estávamos tristes nos [sic] começo, mas depois fomos conversando, daí passamos a brincar de pega-pega, esconde-esconde, escravos de Jó (o que é bem engraçado, porque nós éramos escravos de verdade), e até pulamos corda, ou melhor, corrente", descreve o narrador na página 27.

Ao olhar para a história da escravidão não há espaço para diversão em um navio negreiro que, por vezes, se dirigia ao Brasil superlotado. Em períodos anteriores ao século XIX o número de crianças traficadas pode ter atingido níveis equivalentes a 10% do total de negros transportados. Durante o transporte utilizavam o libambo, uma sólida corrente de ferro, que prendia pela mão direita várias dezenas de escravos ao mesmo tempo. Em relação às crianças, relata-se que ficavam soltas perto de suas mães. Além disso, homens e mulheres ocupavam compartimentos diferentes nos navios.
 
 A alta mortalidade que se observava na travessia relaciona-se à superlotação dos navios, ao tempo de duração da viagem e a estação do ano escolhida para início da jornada.  As viagens eram longas e exaustivas, dados do século XVIII mostram que de Luanda até o Rio de Janeiro, por exemplo, o tempo médio de viagem era de 34 dias. Com certeza, não podemos comparar essas condições desumanas de transporte, a uma viagem de férias em que crianças se divertem juntas. Não há espaço para diversão e para desfrutar das alegrias da infância nessas situações de vida a que foram submetidos.
 
Em situação desumana negros eram transportados. Entrava-se em um navio na África despojado de tudo: de seu nome, roupas, famílias e amigos. Começava assim o processo de “coisificação”, passavam a ser apenas um tipo de mercadoria.  As condições de salubridade nas embarcações eram péssimas, devido ao cheiro desagradável, de excrementos e mortos, sabe-se que os próprios marinheiros evitavam descer aos porões de carga. Fome, sede e doenças os afligiam constantemente. Ficavam expostos a temperaturas altíssimas durante a viagem, além disso não podiam lavar seus corpos o que acarretava diversas doenças. Outra situação a ser observada era que dificilmente conseguiam ficar de pé devido à distância entre eles. Dentre tantos sofrimentos físicos adiciona-se ainda, toda dor e sofrimento mental e emocional, sofrida por seres humanos submetidos a tamanhas crueldades. O tráfico negreiro no Brasil só foi abolido efetivamente por volta de 1856, o que possibilitou o fim desse processo foi a Lei Eusébio de Queirós de 1850.

Ynaê Lopes dos Santos, doutora em História, posicionou-se em uma de suas redes sociais a respeito do polêmico livro “Abecê da liberdade”. Ela analisa que toda a obra é atravessada pelo racismo.  A ilustração de crianças brincando no navio é classificada pela doutora Ynaê como “mais um episódio de racismo estrutural, aliado ao racismo institucional e individual”. Indigna-se ao constatar que os “escritores tiveram a audácia de transformar um dos maiores crimes contra a humanidade numa passagem lúdica. Como se fosse possível suavizar a violência inerente aos crimes contra a humanidade”. Destaca ainda a falta de comprometimento histórico e falta de empatia dos autores com a luta antirracista.
“O problema não para por aí. O livro publicado em 2015 foi reeditado em 2020. Um possível lapso racista dos autores e da editora teve tempo suficiente para ser revisto, consertado. Mas os privilégios da supremacia branca ‘não viram problema nenhum na publicação’. Só depois que a obra foi denunciada, que a editora Cia das Letras tomou uma providência. Não podemos passar panos quentes em atitudes como essa. É necessário responsabilização, sobretudo da parcela branca da população. O antirracismo não pode se reduzir a um selo editorial”, analisa Ynaê Lopes dos Santos.

Reconhecer o erro e se desculpar em nota não parece suficiente em vista de tanto sofrimento e de tamanha distorção e suavização da dor do outro. Quantas crianças já tiveram contato com a obra nesse período em que esteve em circulação e formaram imagens românticas e equivocadas sobre a escravidão? Como reparar essa construção errada provocada pela leitura do “Abecê da liberdade”? Ao que parece a obra não precisa de pequenos ajustes, mas sim de uma total e consciente reestruturação.
 
Artigo usado como referência:  GUTIERRES, Horacio. O tráfico de crianças escravas para o Brasil durante o século XVIII. 1989. História, São Paulo, 120, p.59-72. jan/jul.

 

Link
Notícias Relacionadas »
Comentários »