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23/09/2021 às 23h41min - Atualizada em 23/09/2021 às 23h18min

Crônica: um homem e uma mulher voltando para casa

O caminho para chegar em casa é o mesmo, mas a forma como ele é vivenciado depende do gênero

Ana Paula Alves - Editado por Andrieli Torres
http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/08/movimento-vamos-juntas-une-desconhecidas-contra-violencia.html
Arte: Ana Paula Alves. Imagens: Unsplash

Meu nome é André. Já está escuro quando eu saio da estação, confiro novamente o bolso em que deixo a carteira e o celular, ambos continuam nele, e espero que fiquem assim até eu chegar em casa. Não é um trajeto muito longo, apenas alguns quarteirões, mas já é noite e as ruas estão vazias, o cenário perfeito para dois caras em uma moto encostarem do meu lado para me roubar. Espero que não aconteça, nem terminei de pagar as parcelas desse celular. De qualquer forma, eu começo a andar em direção à minha casa.

 

***

 

Meu nome é Helena. Eu detesto ter que voltar para casa tão tarde. O ônibus parou de frente ao ponto no qual eu desço todos os dias, dou um longo suspiro e piso os degraus com certo receio. Eu odeio essa rua, mas é o ponto que fica mais próximo da minha casa. Ela está escura, como sempre, luzes claramente insuficientes saem dos postes, espaçados demais. Eu fecho mais o casaco sobre o meu corpo e seguro as chaves de casa entre meus dedos, minhas únicas possibilidades de proteção, estou pronta para dar os passos mais acelerados possíveis em direção à minha casa, rezando para que nenhum homem note minha presença no caminho.

 

***

 

Tem alguns bares nas ruas que eu ando, o que é bom, deixa o caminho menos deserto. Mesmo que os bêbados nas portas sejam meio irritantes, gritando, ocupando metade da calçada. Pelo menos eles não fazem nada demais. Passo por eles e mantenho certa distância, não quero que nenhum deles tropece em cima de mim, tento ignorar a gritaria, mas estou feliz de não ficar tão sozinho na rua.

 

***

 

Me preparo para passar pelos bares. Me encolho, tentando me esconder o máximo que eu  posso. Não queria ter que passar por aqui, mas os outros caminhos conseguem ser ainda piores. Eu vejo de longe, sinto o cheiro do álcool à distância, os bêbados estão na calçada, com posturas trôpegas, cambaleantes, prontos para atacar. Se pudesse, eu desviaria deles, manteria dezenas de metros de distância, mas a rua é estreita demais, suas calçadas muito próximas, de nada adianta tentar fugir atravessando-a, eles me veem do mesmo jeito.

“Ô, gostosa! Vem aqui, vem!”, é  a primeira frase que ouço na noite, que me faz virar a cabeça involuntariamente, um estúpido erro de principiante, sua percepção do meu movimento incentiva suas falas, “Ei, você! Vem aqui sua delícia!”, ele grita, encarando certas partes do meu corpo de forma nada discreta. Eu ignoro, engulo a raiva para o fundo da minha garganta, não vou reagir, não vou fazer nada que possa ser o mínimo incentivo para ele ir atrás de mim. Tento andar ainda mais rápido do que já estava. Escuto ao fundo: “Ô lá em casa, se tivesse uma dessas quebrava no meio!”

É assim em todo maldito bar.

 

***

 

Depois dos bares, vem a rua deserta, essa é a que eu menos gosto, tem só um poste de luz funcionando em todo quarteirão, e ainda uns becos aqui e ali. Muitos assaltos acontecem aqui, é perfeito pra emboscar alguém. Passo a mão pelos meus bolsos de novo e tento escondê-los com minha blusa amarrada na cintura. Mantenho uma postura mais intimidadora, com passos mais duros e os punhos fechados, minha ideia é: caso alguém pense em me abordar, que pense duas vezes. Não que isso faça muita diferença se essa pessoa estiver armada.

Eu vejo uma silhueta ao longe, vindo na direção oposta, seguro a postura com mais força, paro de respirar por uns segundos, me preparando para o confronto, para a arma apontando para mim, para perder o que batalhei tanto para conseguir, para ter minha vida ameaçada. Já começo a planejar como vai ser a minha reação. Não vou arriscar minha vida por um celular, mesmo ele sendo caro. Se a pessoa me emboscar, vou só entregar tudo, independente de ver uma arma ou não, e ir para casa rápido, sem arrependimentos, mesmo se eu perder uma coisa que vale meses do meu salário.

Mas quando a pessoa chega mais perto, vejo que é só uma mulher vestindo um grande casaco. Posso voltar a respirar aliviado, relaxo os ombros quando ela passa, muito rápido, por mim. Não é hoje que vou ser roubado.

 

***

 

Eu odeio essa rua. Apenas um poste funciona, é óbvio que não é o suficiente para iluminá-la, grande parte do quarteirão fica mergulhado na escuridão, incluindo os becos profundos e vazios. Meu corpo treme só de pensar na possibilidade de ser arrastada para algum deles, de alguém estar apenas esperando para puxar meu cabelo e me agarrar. Eu me encolho mais dentro do meu casado, ando ainda mais rápido, no limite entre o caminhar e o correr, tentando manter um pouco de fôlego, caso seja necessário. As chaves ainda permanecem entre meus dedos, eu as seguro com mais força, em uma posição que seja simples empunhá-las. Eu queria que fossem pequenas lâminas ao invés de meros pedaços de metal, mas teriam que ser o suficiente para me defender se eu precisasse.

Então eu vi. Alguns metros à minha frente, um homem corpulento andava em minha direção, com uma postura intimidante e passos duros, meu coração deu um salto e entrei em alerta. Apertei mais as chaves, já me preparando para um possível golpe, eu mantinha o foco em minha frente, acompanhando os movimentos do homem, esperando a menor menção de que ele tentaria alguma coisa…

Então ele passou por mim sem fazer nada, sequer olhou muito para mim, apenas seguiu o caminho que estava fazendo, eu suspirei aliviada e continuei andando, querendo sair daquela rua o mais rápido possível.

Eu alternava meus passos com viradas de cabeça, para olhar para trás e verificar constantemente se alguém estava me seguindo. Em um desses olhares, uma silhueta se fez diante dos meus olhos, meu coração deu um salto novamente. Até que eu percebi que se tratava de uma mulher também, pude dar mais um suspiro aliviado. Não é hoje que serei atacada, ou estuprada, ou morta.

Ela se aproximou, eu diminuí a velocidade dos meus passos quando notei que ela pretendia me alcançar.

“Ei, tá tudo bem?”, ela perguntou, quando já estava ao meu lado, “Quer companhia? Você parece um pouco nervosa”.

“Ah, meu deus, seria ótimo!”, eu respondi com um sorriso, o maior que eu podia dar.

“Vamos juntas, então! Odeio ter que andar aqui sozinha à noite”, ela disse, olhando para trás, checando os arredores.

“Eu também”, e ela me acompanhou. 

Conversando, descobri que ela morava a apenas alguns metros de mim, e que voltava para casa quase no mesmo horário que eu. Trocamos nossos contatos e combinamos de nos encontrarmos todos os dias para irmos para casa juntas. Me senti mais segura, mais forte, com ela andando ao meu lado.


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