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25/10/2021 às 03h31min - Atualizada em 25/10/2021 às 02h32min

Cascavéis do Brasil, é hora de trocar de pele

"Às vezes vai ser extremamente burocrático. Não porque tem que ser, mas só porque, curiosamente, assim será tudo mais fácil"

Irion Martins - Editado por Ynara Mattos
RCP, TJPR, IBNCE
Spike e Rambo, resgatados. FOTO: Reprodução/RCP
Janeiro de 2020. Cascavel, interior do Paraná. O cão Jack sofria maus-tratos, preso numa coleira curta e sem alimento. Calma, isto não é uma fábula. E ufa! porque é sinal de que ainda tem gente boa no mundo para entrar em ação. E que ação, meus amigos. Esta, que a Organização Não-Governamental (ONG) Sou Amigo moveu, era judicial. E até que um tanto inusitada; o autor do processo era o próprio Jack.

“Nós precisamos instigar o poder judiciário a reconhecer os animais como sujeitos de direitos”, justificava Evelyne Paludo, que 
para não confundir  é uma humana. Muito além da biologia. Humana de verdade, a ponto de lutar por uma causa animal. Também advogada e presidente da ONG, à Rede de Comunicação Paranaense (RPC) ela disse que “os animais têm direito a uma vida digna e sem crueldade” e que “isso está na Constituição Federal".

A Justiça em Cascavel negou aquela autoria. Disse que “não é crível que o próprio cachorro tenha ido até à clínica e a farmácia, contraído débitos para seu tratamento em nome próprio, razão pela qual não pode por si, pleitear ressarcimento”. Ou seja, disse o óbvio. Pelo menos o óbvio para nós, que sabemos que isto não é uma fábula. Talvez para a juíza não fosse. Até porque, achando possivelmente que seu ponto seria contestado, ela ainda complementou: “Basta olhar em nome de quem foram emitidas as notas fiscais".

 

“A intenção não é que a ONG seja reparada dos danos que sofreu, porque a ONG não sofreu dano nenhum,” explicava Evelyne. “Quem sofreu esse dano foi o animal. Por isso, é ele que tem o direito de buscar o judiciário. Nós vamos buscar ao máximo que o judiciário reconheça esse direito”, afirmou.


E, defendeu que o animal é uma vida. Que o homem é também espécie animal! Que todos os animais, portanto, têm direito ao respeito e à existência. E isso era também óbvio. Contudo, a esse óbvio mais urgente e precisava ser dito, estavam ignorando.

Agosto de 2020, na mesma cidade. Jack não era um caso isolado. Antes já eram muitos, e agora eram mais dois: Spike e Rambo. Eles foram abandonados por 29 dias em uma residência, o que chamou a atenção de vizinhos-heróis que lhes encontraram com feridas e lesões. A Seu Amigo moveu mais um processo, mas Cascavel negou de novo. Em poucas palavras, é claro. Porque 
já concordamos  isto não é uma fábula. O tribunal municipal argumentou que o animal não tinha capacidade para ser parte em um processo. É, o processo também era daquele tipo que eu chamei de inusitado, no começo.  Falhei no adjetivo. Porque agora eu sei.

Sei, pelos dados da Delegacia Eletrônica de Proteção Animal (Depa), da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, que em 2019 as denúncias de crimes contra animais de estimação somavam 4.108. Sei que este ano o número subiu para 4.524. Sei também, que pelos cálculos (e para a glória dos de humanas, eles deixaram prontinhos), isso representa um aumento de 10%. E sei que tantos outros casos nem sequer tiveram a chance de integrar estatísticas.   

Também sei, e há pouco não sabia: que a cultura antropocêntrica do Direito não está só embutida na cabeça de quem o faz, mas nas heranças da própria legislação. O Código Civil de 1916, por exemplo, classificou os animais como sendo “objeto”, porque não poderiam se enquadrar na categoria “homem”. Sei que faz sentido, mas sei também que, em uma certa instância, e talvez só os verdadeiramente humanos entendam isso, o engessamento burocrático do Direito não nos serve. Ou talvez tudo seja mesmo uma fábula e eu, orgulhosamente, um animal. Mas sei. E penso que Cascavel, se soubesse, não sibilaria. E quantas cascavéis sibilam agora neste país?

Gosto de falar do passado para falar do presente. E esse é o grande perigo que os jornalistas correm, com seu dever de oferecer leads atualíssimos. Por isso pedi licença e por favor e por tudo o que é mais sagrado à editora, para que o texto dessa semana fosse opinativo. Não por gostar de falar do passado 
o que é verdade , mas sobretudo pela necessidade aqui imposta. Se eu começasse dizendo o fato mais recente e importante, que o Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), acima da reprovação de Cascavel, reconheceu a capacidade de Jack, Spike, Rambo, e de todos os animais, de serem parte em processo, você talvez sibilasse. E classificasse como mimimi, como fez um parente quando eu comentei, nesta errônea ordem hierárquica, lá em casa.

Hierarquia, inclusive, é um negócio complicado. No texto jornalístico você ainda pode mudar o gênero para então poder mudar a ordem das coisas. Mas e nos tribunais? Quem contestará o bater do martelo? Não estou confabulando 
até porque não é fábula , mas essa urgência em contextualizar o presente com o passado me fez lembrar também de uma obra que Kafka escreveu, ainda no século XX. Num certo trecho, um cidadão detido mostra seu documento de identidade ao guarda e, indignado, lhe pergunta onde está a ordem de prisão. O guarda, enquanto come pão com mel, pede para que o rapaz se conforme com a sua situação sem questionar ou lhe irritar. Do flashback, pondero: às vezes vai ser extremamente burocrático. Não porque tem que ser. Mas só porque, curiosamente, assim será tudo mais fácil. Para quem? Para eles, é claro.

Self-service de Justiça à parte, dessa viagem espaço-temporal que eu gosto também trago uma dose de presente (e que presente!): o Instituto Brasileiro de Novas Conexões Educacionais (IBNCE) lançou este mês uma especialização em “Direito Animal e Prática Jus Animalista”. É a primeira com esse tema no país. E penso que isso daria um bom lead, daqueles que iniciam uma boa reportagem. Mas, embora isto não seja uma fábula, ainda suponho que essa informação se sai muito melhor como moral da história
Cascavéis do Brasil, é hora de trocar de pele.

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