Um novo nicho não abarcado por redes sociais “Quando nada parece dar certo, vou ver o cortador de pedras martelando sua rocha talvez 100 vezes, sem que uma única rachadura apareça. Mas na centésima primeira martelada a pedra se abre em duas, e eu sei que não foi aquela que conseguiu isso, mas todas as que vieram antes. ” – Jacob Riis (1849-1914), jornalista e fotógrafo documentarista dinamarquês, radicado nos Estados Unidos Londres, 2016.
Timothy Stokely poderia ser apenas mais um criador das já muitas e populares redes sociais que tanto atraem a atenção de usuários das mais variadas idades. Porém, não foi bem isso o que decidiu ser. Indo na contramão de serviços gratuitos como o
Facebook, Instagram ou
Twitter, tornou-se o inventor do
onlyfans.com, uma rede de divulgação de conteúdos diversos, produzidos por pessoas identificadas como ídolos, cujos seguidores, ou fãs, precisam fazer assinaturas, em geral pagas, e depositarem gorjetas para terem acesso às postagens feitas pelos usuários.
Embora a idolatria já sugerisse a presença maciça de artistas ou outras celebridades, foram os anônimos que terminaram se destacando como famosos na plataforma, devido à não proibição de conteúdos envolvendo nudez e até pornografia, restrição comum em outras redes.
Deste modo, pessoas que trabalham com conteúdo adulto – os
sexworkers – enxergaram no
OnlyFans uma ferramenta interessante de negócios, sobretudo pela remuneração ser feita em dólares. Dos pagamentos, 20% é retido pelo site; o restante, vai para a conta dos ídolos.
A este fato, somou-se o necessário distanciamento social ocasionado pela pandemia mundial de coronavírus: tempo ocioso para quem não sente inibição em se expor em fotos, vídeos e transmissões online pela internet; tempo livre para quem tem interesse em acessar a intimidade alheia, mesmo que de modo pago.
Uma ruiva que decidiu ser médica
Dezembro de 2021. A página de
Aurora Raw anuncia uma nova promoção: oferta limitada de inscrição em sua página do
OnlyFans por 31 dias, ao preço de $ 5,00 dólares. Os outros pacotes de assinatura são de três, seis ou doze meses, respectivamente por $ 25,50, $ 42,00 ou $60,00. O “visto por último” aponta para dezoito horas atrás, indicando visita recente ao site.
Ruiva e de olhos azuis, a paulistana
Aurora assim se batizou em referência à bela adormecida, princesa da
Disney. Só que com algumas diferenças:
piercings nos mamilos; no corpo, algumas tatuagens, em especial a citação de
Jacob Riis nas costas
, próxima ao ombro esquerdo. Por trás do sorriso aberto, seus 27 anos, completados em outubro último, remontam a uma já longeva carreira como
sexworker.
Sua história no universo adulto começa em 2014, quando ela e a irmã
Venusss, nome artístico, estão em um bar em
São Paulo na companhia do ex-marido de
Emeline Rodrigues Valejos, atriz pornô, conhecida como
Emme White.
Aurora está decidida quanto à carreira a seguir: a medicina. Contudo, sabe as dificuldades até obter a sonhada aprovação no vestibular. Percebe que precisa estudar muito para passar; consequentemente, quanto mais tempo livre dispuser para o projeto, melhor. Mesmo assim, também necessita trabalhar para se manter e está à procura de emprego. O choque é inevitável: para ela, uma rotina com horário fixo de entrada e saída em uma empresa representa diminuição sensível nas horas de estudo pré-universitário.
À mesa, o amigo lhe sugere algo improvável: trabalhar virtualmente como
stripper, isto é, ser uma
camgirl. A ideia fica em sua mente. Já havia experimentado a intimidade por meio de uma câmera antes, por manter um relacionamento à distância com um garoto. Pensa uma, duas, três, várias vezes. Toma a decisão após certo tempo, depois de buscar informações sobre esse ramo de entretenimento adulto até então pouco conhecido no
Brasil.
O trabalho lhe dá a chance de fazer o próprio horário e de ganhar dinheiro. Dois cadastros são feitos, um no
Câmera Hot; outro, no
Câmera Privê. Aurora passa a ter duas salas virtuais na internet. Com o tempo, termina optando pelo segundo site. A estreia como
camgirl é tranquila: quarenta minutos, ênfase na conversa com um cara que se mostra gente boa.
Nos primeiros tempos, apenas a mãe, a irmã e o então namorado sabem do trabalho virtual da garota. Contudo, após o término do relacionamento, mal aceito por ele, o garoto decide “fazer o favor” de contar para quem pode a respeito dos shows de
Aurora, que ainda não está pronta para fazê-lo por si própria.
A indevida divulgação traz as primeiras – e difíceis – reações de familiares e amigos e, com elas, o preconceito envolto no trabalho de uma
sexworker. Após este susto,
Aurora chega a admitir ter sido bom e até libertador o episódio. Com o tempo, se sente como alguém que não tem nada a esconder. Alguém dona de sua própria vida, responsável por suas próprias escolhas. Afinal, se alguém não gosta de seu trabalho, não precisa ficar perto dela. Tudo muito simples.
O tempo passa.
Aurora ganha experiência e descobre os macetes do meio. Faz amigas e amigos, começa a utilizar redes sociais para se promover, sobretudo o
Twitter, influencia a irmã, recém-formada cirurgiã dentista, a abrir uma sala virtual e começa a descobrir novos interesses. Como já se sustenta, inicia a prática de
pole dance e tecido acrobático, se descobre fotógrafa, investe em equipamentos melhores para fazer fotos e vídeos, compra fantasias e
lingeries, faz ensaios usando
cosplays ou atuando em cenários diferentes, e se surpreende com os fetiches de alguns clientes. Um deles, por exemplo, durante um
chat de vídeo, pede a ela para que finja estar dirigindo um carro que o atropela – sensualmente, é claro; outro, sente êxtase ao vê-la enchendo balões até que eles estourem.
Nem tudo, porém funciona como o esperado. Em 2016, ano de crise,
Aurora precisa trabalhar muito mais do que o normal na frente da câmera, durante uns seis meses, para seus rendimentos não caírem, dada a escassez de audiência.
Passado o momento difícil, consegue estabelecer rotina mais organizada, priorizando os horários de estudo e encaixando a produção de conteúdo para seu trabalho nos intervalos. Para um cliente, por exemplo, atende a encomenda de um vídeo em que está em cima do capô de um carro, enquanto se despe lentamente.
Certo dia, em 2019, enquanto estuda em um
Starbucks, próximo ao curso pré-vestibular que frequenta na
Avenida Paulista, a princesa encontra um príncipe – um garoto com quem passa a conversar e que a reconhece como
camgirl. Dois meses depois, o namoro com o rapaz começa. Seu nome, a exemplo do par da
Aurora de Walt Disney, é
Phillip. Phillip Grimm.
Phillip consegue ingressar na medicina, enquanto
Aurora continua tentando. Porém, mais do que namorado,
Grimm se transforma em verdadeiro secretário e companheiro. Ajuda a garota no cadastro e divulgação em novas redes sociais, no atendimento de pedidos de
packs – pacotes de fotos ou vídeos com conteúdo de sensual a explícito – e, inclusive, passa a atuar no meio, juntamente com a namorada. Afinal, ele também precisa de uma fonte de renda, enquanto estudante em período integral.
Em 2020 e 2021, o trabalho de
Aurora se expande para outros canais: começa a produzir para o
OnlyFans, passa a pousar para o site adulto
Suicide Girls e faz aparições na mídia, contando sobre o universo dos
sexworkers, incluindo entrevistas no
UOL, no
G1, em blogs e em programas de televisão como o
Pornolândia, do
Canal Brasil, ou o
The Noite, do
SBT.
Já no
Twitter, com mais de 65.000 seguidores, promove seus
links de divulgação de trabalho, dentre eles, um contato de
WhatsApp, um
e-book com dicas para
sexworkers no
OnlyFans e, é claro,
banners de acesso a suas duas páginas no
site de
Timothy Stokely, uma gratuita, de divulgação, outra paga.
Atualmente,
Aurora segue nos estudos para iniciar a carreira universitária. Fica bem menos online do que antes em suas redes, preferindo focar em fotos ou vídeos. Quanto ao trabalho, ao contrário da irmã, que se revela atriz pornô em 2020, opta pelo conteúdo amador, pois este envolve menos logística e permite a produção de material personalizado para o público consumidor de material adulto, o que cria um ambiente de proximidade com os fãs e seguidores, animados por terem canais de contato direto com a modelo, mesmo que pagando pelo acesso.
Ao
striptease virtual, a garota credita a independência e a segurança que adquiriu enquanto pessoa, situação, para ela, libertadora em todos os sentidos.
O público e o privado Recentemente, em agosto, o
OnlyFans anunciou o banimento de conteúdo explícito no site, mas mantendo a nudez, seguindo a “Política de Uso Aceitável” que pretendia adotar a partir de primeiro de outubro deste ano.
Após reações desfavoráveis de produtores de conteúdo, até o fechamento deste texto, a plataforma decidiu voltar atrás em sua decisão. Afinal, isto afetaria diretamente o modelo de negócios do
site.
Para psicólogos, como
Maria Luiza, da
Clínica Centrum, o trabalho com a exposição da intimidade não chega a ser o ponto central da questão, mas sim a relação da pessoa com a realidade que terá pela frente quando decidir se tornar
sexworker. Se houver arrependimento, será difícil contornar a situação; caso contrário, se a pessoa se sentir confortável, a exemplo de
Aurora Raw, será uma opção pessoal.
De qualquer forma, vale o conselho da futura médica para quem pensa em produzir conteúdo adulto: antes de começar, melhor pensar uma, duas, três, várias vezes.
Para conhecer e seguir Aurora Raw: twitter.com/aurorawebmodel