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28/05/2022 às 13h45min - Atualizada em 22/05/2022 às 23h23min

Vandalismo contra estátua de Iemanjá persiste em Natal

Os limites entre protestos e intolerância religiosa.

Robeson Dantas - Revisado por Flavia Sousa
Inaugurada em 2020, a nova estátua de Iemanjá volta a ser alvo de vandalismo. (Foto/Reprodução: Tribuna do Norte. Crédito: Magnus Nascimento)

Corriqueiramente, a imagem de Iemanjá situada na Praia do Meio na Cidade de Natal-RN sofre depredação e pichações associadas à intolerância religiosa. A Imagem representa para muitos religiosos de Umbanda, Candomblé e outras religiões de matrizes africanas, um local de culto, religiosidade e representatividade. 

 

O último ato de intolerância ocorreu em janeiro de 2022, quando a imagem teve o rosto e as mãos pintadas com tinta preta, descaracterizando a arquitetura original da obra. O ato chocou a sociedade local, e mesmo depois de restaurada e pintada novamente com a cor original (pele branca) fica a reflexão: o ato, pode ser considerado vandalismo em sua totalidade, ou um ato de protesto contra o embranquecimento da divindade?

As várias faces de Iemanjá.

As várias faces de Iemanjá.

(Foto/ Reprodução: A Gazeta. Crédito: Kerlyn Chiely/ AJ Romani/ Rita Muniz)

Afinal, como é a fisionomia de Iemanjá?

 

Antes de afirmar questões como características da divindade, traços físicos e vestimenta, é preciso compreendermos que não há apenas uma religião de matriz africana no Brasil. Frequentemente, se confunde a Umbanda e o Candomblé. Esses dois segmentos afro-religiosos apresentam diferenças e pontos de conexão. O Candomblé nasce com a vinda dos negros escravizados para o Brasil, foi uma forma de reorganizar o culto aos orixás, inkices, voduns, ou seja, o sagrado do panteão africano, e também de resgatar, unir, reorganizar as famílias vindas de África.

 

A Umbanda também nasceu no Brasil há pouco mais de 100 anos, mas sua origem veio do Kardecismo, espiritismo de Allan Kardec, origem constituída por uma elite branca, europeia, projeto também de embranquecimento da religiosidade afro-brasileira, mas como o sagrado é sábio e transcendeu as perseguições, colonização, entre outros projetos da eugenia branca, o sagrado tornou-se popular, absorvendo assim os deuses do panteão africano e indígena, suas práticas, absorveu também o sincretismo católico, tornando-se uma das religiões mais populares do Brasil.

 

Flaviana Maia, Flavinha d´Oxum – Iyalaxé do Ilê Axé Dajô Obá Ogodô, é a coordenadora colegiada do Gama/RN (Grupo de articulação de matriz africana e ameríndia do RN), e acompanha os casos de depredação à estátua de Iemanjá desde 2017. Ela explica que as duas religiões são unidas pelo sagrado, ambas são enxergadas como religiões afro-brasileiras, e consequentemente são perseguidas por intolerantes.

 

Para a sociedade preconceituosa, não importa se o religioso é umbandista, candomblecista ou Juremeiro, todos são de terreiro, pejorativamente conhecidos como “macumbeiros”. Isso é tão legítimo que mesmo a Iemanjá da umbanda, sendo cultuada através do sincretismo como nossa senhora dos navegantes, de cor branca, é tão perseguida quanto uma iemanjá afrocentrada.

 

Sobre a cor da pele da estátua e seus traços físicos, Flaviana reforça que, de fato, a imagem na praia do meio não é negra, ela é uma imagem branca, sincretizada como uma santa católica.

 

A estátua anterior da praia do meio tinha traços europeus, a nova tem traços natalenses, indígenas. Uma estátua de iemanjá com traços afrocentrados tem outras características, como se apresenta no corpo de uma mulher gorda com seios fartos, ou vestida em homenagem ao orixá iemanjá. Candomblecistas não cultuam imagens, e sim forças da natureza. Essa é uma representação de como nossos irmãos umbandistas cultuam a divindade, e são atendidos por ela em suas preces".

A estátua de Iemanjá é substituída em Natal.

A estátua de Iemanjá é substituída em Natal.

(Foto/ Reprodução: Tribuna do Norte)

Preconceito e racismo religioso

 

Flavinha d'Oxum relata que convive com o preconceito desde o início, familiares como sua mãe, que não e tinha medo de que ela sofresse preconceito ou rejeição das pessoas. Flaviana afirma que sofreu também preconceito de um ex-marido, mas é a escola que pode se tornar, muitas vezes, um ambiente hostil.

 

"Como mãe de uma criança também de terreiro, o ambiente escolar muitas vezes se torna hostil, quando encontramos uma escola que nos dê suporte, temos que enfrentar os pais intolerantes extremistas.”

 

As situações de preconceito são corriqueiras, como olhares, cochichos ou comentários maldosos. Flaviana conta que ao ser iniciada no Candomblé, ainda na adolescência precisava ir à aula com uma roupa específica e cabeça coberta (estava com cabelo raspado). Isso fazia com que muitas pessoas se afastassem, ou quisessem ceder a cadeira pensando que ela estava em tratamento de câncer.

Cultos a Iemanjá são realizados em Natal -RN.

Cultos a Iemanjá são realizados em Natal -RN.

(Foto/ Reprodução: Palumbo Notícias)

Sempre precisamos enfrentar situações delicadas, e tudo isso nos ensina, mas nos machuca muito ao longo da vida. E jamais saberei como é ser uma pessoa negra de candomblé, o racismo é ainda mais cruel. Já nos levou algumas vidas. Dentro de um mesmo corpo candomblecista podemos ter concentrado várias violências como: gordofobia, lgbtfobia, racismo e ainda preconceito social”.

 

Intolerância religiosa ou intervenção social?

 

O último ato de vandalismo contra a estátua de Iemanjá, situada na praia do meio Natal-RN, foi em janeiro de 2022, na situação a imagem teve sua pele pintada de preto. Após a restauração, a estátua, projetada pelo artista Emanuel Câmara, voltou à sua cor original (pele branca). Com a divulgação da restauração voltou à tona a discussão e a atitude repercutiu nas redes sociais, trazendo uma reflexão acerca do ato: intolerância religiosa ou ato de protesto?

 

Flavinha D’oxum afirma que pintar uma estátua de preto não está contribuindo com o combate ao racismo do Rio Grande do Norte (RN). Intervenção social se faz com política pública. Ela reforça que o preconceito não está na cor da estátua, mas sim, contra a religião.

Estátua de Iemanjá volta a ser alvo de vandalismo na Praia do Meio.

Estátua de Iemanjá volta a ser alvo de vandalismo na Praia do Meio.

(Foto: Reprodução/ G1)

Alguns militantes do movimento negro foram e são bem radicais quanto essa questão, chamo atenção para um detalhe importante, muitos são pessoas que são mal orientadas e não tem vivência religiosa, porque o sagrado se reconhece no outro, e mais uma vez estão transgredindo o nosso maior princípio: o Respeito”.

 

Iyalaxé Flaviana sente muito pela falta de diálogo e de interesse da sociedade em não buscar entender o porquê dessa estátua de Iemanjá ser branca e não afrocentrada. Falta respeito à forma que cada segmento religioso tem de cultuar o seu sagrado.

 

A estátua de Iemanjá é um local de culto, conquistado pelos meus mais velhos que hoje são meus antepassados, já sou fruto desse amor ao sagrado que nos conduz na vida, então estamos falando de desrespeito, intolerância, racismo, crimes de ódio. Os ataques à estátua refletem o ódio que a sociedade sente em relação aos religiosos das matrizes africanas e ameríndias”.

 

A ação das autoridades

 

Desde 2017, já foram abertos três procedimentos no Ministério Público (MP) só para tratar as questões da Iemanjá, localizada na Praia do Meio. Flaviana prestou o último boletim referente à depredação ocorrida no dia 28 de fevereiro. Após o B.O, foi acrescentada mais uma denúncia ao procedimento aberto em 2020, quando sofreu ato de vandalismo. O processo anterior ainda segue em andamento.

Após várias audiências, haverá uma parceria entre o Centro Integrado de Operações em Segurança Pública (Ciosp) ligado à Secretaria de Estado da Segurança Pública e da Defesa Social (Sesed) e a Secretaria Municipal de Segurança Pública e Defesa Social de Natal (SEMDES). Sendo a ação prioritária a instalação de câmeras de videomonitoramento que identificaram futuros criminosos que tentaram atos de vandalismo e, deste modo buscar inibir os atos antes mesmo de acontecer.

 

Precisamos acionar o governo, como disse, o racismo se manifesta de várias formas e o institucional é uma delas, com a morosidade e falta de vontade política da prefeitura do Natal, fizemos a articulação com a SESED e agora as coisas vão caminhar. A próxima audiência será para mostrar as imagens da câmera instalada e o protocolo de atendimento de ocorrências.”

Leia Mais: Axé: intolerância religiosa no Brasil

 

Combater o preconceito e a intolerância religiosa é papel não só das autoridades, mas também de toda a sociedade. Após acionamentos constantes ao poder público, boletins de ocorrência, abertura de procedimentos. O ato de pintar uma estátua de preto não combate o racismo, e ainda atrapalha e desrespeita o culto do outro.

 

Protesto mesmo é acionar o máximo de parlamentares possível para conseguir verba pública, e por exemplo construir a casa de cultura negra/ameríndia de Natal, recursos para construir parques ecológicos, estátuas afro centradas com espaços culturais na orla, isso é protesto, e não a violação da fé de quem lutou muito pra conquistar”.

 

Flavinha D’oxum convida a sociedade a quebrar os grilhões que os separam do amor.

Deus fala pela voz do coração, então cada um escolhe a religião que lhe veste melhor. E assim é com os adeptos das religiões afro-brasileiras e ameríndias. Precisamos quebrar os “PRÉconceitos” que nos separam, o conhecimento é libertador, então visitem os terreiros, temos muitos e dos mais variados, dentro e mais afastados da cidade. Os terreiros são espaços de autocuidado, educação, socioassistencial de culinária tradicional e orgânico de cultura. Precisamos avançar no combate ao racismo e exercitar o bem viver em sociedade, sem intolerância e preconceitos”.

Finalmente, depois de cinco anos, o espaço no entorno de Iemanjá recebeu reconhecimento como local sagrado pela prefeitura de Natal e o tombamento da estátua está em processo de finalização.


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