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29/06/2024 às 13h45min - Atualizada em 25/06/2024 às 06h14min

De volta às trincheiras, Twenty One Pilots se despede de uma era com "Clancy"

Lançado em maio deste ano, o sétimo álbum de Tyler Joseph e Josh Dun promete pôr um fim na narrativa que acompanhou por dez anos

Maria Eduarda Torres Cavalcanti - Revisado por Paola Pedro
(Foto: Reprodução / Rolling Stone)

A cena se passa à tarde: daquelas em que as baixas temperaturas pintam céus nublados e despem as árvores de suas folhagens. Casas enfileiradas — que parecem, à primeira vista, tão adormecidas quanto à própria vizinhança — são cortadas por uma longa estrada asfaltada, numa típica paisagem suburbana. Até que um homem de gorro vermelho surge, de maneira repentina, pedalando uma espécie de triciclo. Seu pescoço e mãos são tomados por uma camada fina e desleixada de tinta preta. Ele nos encara e põe-se a rimar sobre as aflições da vida adulta: “Me disseram que quando eu ficasse mais velho, todos os meus medos diminuíram / Mas agora eu sou inseguro e me importo com o que as pessoas pensam”  

Era 2011 quando o vocalista e multi-instrumentista Tyler Joseph e o baterista Josh Dun apostaram seu suor e cifras num arranjo musical que, posteriormente, deixaria a sua marca na indústria fonográfica: o Twenty One Pilots. Os conterrâneos de Ohio se destacaram na cadeia musical pela ousadia nas composições e pelo dom de transitar pelos gêneros com muita maestria, quase como camaleões: esguios, tatuados e sobreviventes natos da seleção natural — já que, à época, até mesmo o circuito alternativo franzia o cenho para a dupla, que preferia pianos e sintetizadores à empunhar guitarras, monstro das seis cordas.

No entanto, somente quatro anos depois de sua formação que a dupla sairia da garagem empoeirada para figurar no topo das paradas musicais. Em Blurryface (2015), premiado álbum de estúdio da banda, o personagem que dá nome ao disco é apresentado ao público pela primeira vez, materializando as inseguranças do intérprete de ‘Stressed Out’ em passagens de voz distorcidas e na fuligem que se apossa — e paralisa — aquilo que dá razão à sua existência. O que seria de um músico, afinal, sem a confiança na própria voz? 

Tyler Joseph não se preocupa em responder essa pergunta, ao menos, não diretamente. Por que se limitar em meramente dizer aquilo que pode ser expressado musicalmente, na sua forma mais honesta? Assim, atravessamos a infestação de ruídos e gritos do caótico e confessional Blurryface, como quem cruza um beco escuro: não há outra certeza que nos aguarda, exceto a de encontrar — e enfrentar — a si mesmo, por mais “poucos, orgulhosos e emocionais” que possamos parecer, como Joseph declama na faixa Fairly Local. 

A persona obscura do Blurryface — “rosto borrado”, em português — fora o início do que viria a ser a rica e complexa narrativa que conecta, até hoje, a discografia da banda e que vem se expandindo continuamente. 

O Leste Está Aberto 

Três anos depois, os intérpretes retornam de onde pararam: uma estrada deserta. Os destroços de um carro — que, outrora, fora consumido pelas chamas no clipe de Heavydirtysoul, forjado à sombra de seu antecessor, em 2015 — aparecem, em cena, como um tipo de prelúdio do que está por vir. Não demora muito para Tyler revelar-se sob a névoa e nos receber com um breve e misterioso monólogo: “Estávamos aqui o tempo todo. Você estava dormindo. É hora de acordar”. Num piscar, somos atirados numa estranha terra montanhosa e o vocalista mostra-se, desta vez, tão atordoado quanto nós. 

Um amarelo forte está presente nas ombreiras da jaqueta que vestira e nos curativos dos dedos. Ele olha em volta, tentando saber ao certo onde está, até se deparar com um misterioso grupo mascarado, à espreita das montanhas. Enquanto isso, uma figura encapuzada cruza, veloz, os campos à sua procura. As baquetas temperamentais de Josh Dun dão corpo à crescente atmosfera de fúria que é Trench (2018), um disco mais maduro e narrativamente mais afiado que seu antecessor. A história dos ‘pilotos’ do meio-oeste ganhara camadas mais profundas meses antes da trilogia de singles — Jumpsuit, Nico and The Niners e Levitate — ser lançada. 

Em um site misterioso chamado de demaorg.info, encontramos cartas de um homem conhecido como Clancy. Ao folheá-las, descobrimos que ele é morador de Dema, uma cidade projetada dentro de muralhas e governada por nove bispos autoritários: Nico, Andre, Lisben, Keons, Reisdro, Sacarver, Nills, Liveton e Listo. Há, também, uma força rebelde à espera de um deslize da capital: os banditos. Clancy quer escapar, mas sabe que, para onde quer que ele vá, Nico dará um jeito de arrastá-lo de volta e puni-lo. 

Indo de encontro às apostas da crítica — que esperavam do duo uma jogada segura no rap-emo característico— os grandes trunfos do Trench são a sonoridade, mais puxada para o rock pesado e o rap, e o cuidado acertado em “plantar” enigmas e estabelecer continuidade entre os discos, que tanto honra as memórias daqueles que acompanham, quanto oxigena a curiosidade dos novos ouvintes. O disco chega ao fim com Tyler sendo capturado pelos bispos, ao som dos arranjos melancólicos de Leave The City.

 

Em maio de 2021, quando o mundo ainda enfrentava à pandemia do covid-19, o tão esperado regresso do Twenty One Pilots aos holofotes foi marcado, sobretudo, por uma grande surpresa: a dupla abandonara o condão sombrio para abraçar um universo regido por tons pastéis, dragões mágicos e timbres, assustadoramente, açucarados, a citar, por exemplo, a primeira faixa do disco, Good Day, que tanto remete à abertura de um desenho animado. 

A atmosfera de otimismo desmedido em Scaled and Icy é semelhante ao de After Laughter (2017), quinto álbum de estúdio da banda Paramore: os arranjos simpáticos estão lá para camuflar a acidez da letra que o acompanha. No caso de Good Day, as notas afáveis do piano e ukulele quase enganam, até que Tyler começa a versar sobre a perda hipotética da esposa e da filha. Mais tarde, como esperado, foram confirmadas as suspeitas: o apelo repentino ao pop alto-astral fazia parte de uma propaganda muito bem executada pelos bispos de Dema para enfraquecer possíveis levantes contra o regime. Composto por onze músicas, Scaled and Icy vende o escapismo como o ópio do povo, mas não deixa de cravar o desconforto nas entrelinhas.

Todavia, nos clipes de Saturday e The Outsideos dois últimos da trilogia narrativa deste sexto disco, a maré de sorte vira contra os dirigentes de Dema: Nico é traído por um dos bispos e a dupla consegue escapar, naufragando numa ilha deserta e, até então, desconhecida, habitada por pequenas criaturas mágicas — já vistas, inclusive, no clipe de Chlorine, faixa que compõe o Trench e Joseph desperta um poder que ameaça à soberania dos Niners

“Eu sou Clancy”

À frente do entusiasmo dos Skeletons Cliques — como se autointitulam os fãs da banda —, que costumam ser bem ativos quanto às teorias e easter eggs que permeiam a discografia, Tyler Joseph e Josh Dun não tardaram a revelar detalhes do novo álbum. Meses antes do lançamento, a dupla postou, em seu canal do Youtube, um vídeo-manifesto que conta toda a saga de Dema, esclarecendo, inclusive, a maior das incógnitas desde a concepção de Trench: Tyler é Clancy. O cidadão, o fugitivo e o único capaz de destruir os bispos. 

Em Clancy (2024), o garotinho que aprendera a cuspir fogo fez, da rima, sua própria pólvora. “Eu sou Clancy, filho pródigo / Cansei de fugir e Encontrei Josh Dun, procurado vivo ou morto”, vocifera Joseph nos versos de Overcompensate numa ode vigorosa à fazer arte em meio ao caos, sem deixar que às amarras da indústria musical falem mais alto que a paixão de criar. Já em Next Semester, somos eletrocutados por um punk rock nas alturas que descreve, com exatidão, o inconformismo e a ansiedade de encontrar sua própria voz em um mundo que tenta miná-la constantemente. Enquanto a faixa Backslide nos mergulha no eterno ciclo de se livrar do passado — ainda que, vez ou outra, ele continue ali: à mercê dos castigos da nossa própria mente —, somos arrebatados pelos delicados acordes de um ukulele em The Craving. Entre sussurros, o vocalista declara seu amor imperfeito e singelo em seu querer bem à sua companheira Jenna. 

Em Navigating, a bateria temperamental de Josh Dun e o vocal abrasador de Joseph, impelidos pela necessidade de avançar pelo labirinto de pensamentos, se tornam puro combustível da rebelião que estaria por vir. Snap Back nos entrega um Tyler temeroso em ficar frente a frente, novamente, com suas vulnerabilidades mais íntimas. Mas o perigo da recaída, desta vez, não o faz desviar a rota. Em seguida, a guitarra empostada e o vocal bem projetado de Joseph nos encontra em Paladin Strait: um feito glorioso — e medieval — de seis minutos e meio para encerrar, com honras, à jornada do fugitivo pródigo. Clancy regressa à Dema, mas desta vez, ele não está sozinho. Nico está à sua espera. Enquanto os banditos enfrentam a horda de cadáveres comandada pelos bispos, Clancy se aproxima de seu juízo final. Ele derrota os dirigentes de Dema um à um, até que… Nico o agarra pelo pescoço. A narrativa heróica é bruscamente interrompida pela voz assustadoramente familiar: “Tão pouco, tão orgulhoso, tão emocional. Olá, Clancy”. 

É magistral a forma como Tyler Joseph derrama a si mesmo em suas composições, semeando subjetividades e simbolismos que demonstram, mais uma vez, que quando o assunto é excelência criativa, os pilotos do meio-oeste estão nas trincheiras: prontos para serpentear nossos ouvidos. Assim como Clancy fortalecera sua armadura, Nico — que outrora foi Blurryface tornara-se um adversário à altura. Mas enquanto houver sol e pessoas com quem contar, a Dema — de Joseph e de nós mesmos — estará cada vez mais próxima da ruína, pois uma fresta de luz basta: para que sigamos em frente, sempre a lutar e se reerguer contra nossos demônios mais ocultos.


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