Lab Dicas Jornalismo Publicidade 728x90
12/09/2022 às 14h50min - Atualizada em 30/05/2022 às 22h46min

Crônica: o dia em que Cuiabá parou

Em uma cidade onde a alta temperatura é sinônimo do nome, um alerta pode garantir a certeza de um futuro não tão distante.

Mariana da Silva - editado por David Cardoso
Cuiabá. (Foto: Acervo pessoal/ Mariana da Silva).

Fazer calor em Cuiabá é quase como constatar que a água é molhada, em termos bem óbvios é praticamente um pleonasmo. Seria mais um dia comum de verão, se na verdade não fosse igual em qualquer outra estação do ano. Era metade de agosto, quase setembro, um período do ano muito marcante climaticamente falando para quem mora em Mato Grosso. O calor estava demais, até mesmo para os cuiabanos de tchapa e cruz acostumados com a quentura desta terra. De todos os lugares no mundo, parecia que o Sol estava mais próximo da capital mato-grossense naquele dia e os termômetros estavam marcando temperaturas surreais, mesmo para Cuiabá.

Ficar na sombra era questão de sobrevivência, embora houvesse poucas árvores. O recorde de temperatura ultrapassava até os desertos mais áridos do planeta e a atenção mundial se voltava para ela, que está no Centro Geodésico da América do Sul. Os calangos estavam escondidos. As aves procuraram refúgio e evitavam voar, tamanho era o calor. Nas ruas, calçadas, pontos de ônibus, lojas, camelôs, calçadões, em todo canto nenhum cidadão se encorajou a pôr os pés para fora de casa.

O silêncio pairava sob o ar, algo impensável para um lugar cujos sons guiam a rotina intensa e agitada de uma capital. Não havia buzinas, barulho de carros, motos, ônibus, vendedores ambulantes, propagandas de lojas, música alta, máquinas trabalhando no asfalto, pombos voando, nada disso, somente o ensurdecedor e angustiante som do silêncio. Um silêncio quente e cortante.

Praça Alencastro, Cuiabá.

Praça Alencastro, Cuiabá.

(Foto:Acervo pessoal/ Mariana da Silva).

Com a umidade relativa do ar em níveis críticos, a cidade estava em alerta absoluto, num cenário praticamente apocalíptico. As folhas das árvores nem se moviam, tamanha falta de vento naquela localidade, já muito castigada naturalmente pela sua posição geográfica, somada a décadas e décadas de poluição atmosférica, queimadas e expansão urbana. Chamar Cuiabá de cidade verde é quase como contar uma antiga lenda: tomada por prédios e pelo concreto, o verde sumiu da paisagem cada vez mais com o passar dos anos. Da cidade arborizada, só restava uma grande chapa de concreto no meio de uma grande depressão no cerrado mato-grossense, uma grande ilha de calor rodeada de chapadões.

Existe uma história que diz que se você jogar um sapo na água fervente (embora desconheço alguém que seria cruel a ponto de fazer isso) ele vai pular fora da panela. Mas se você esquenta a água aos poucos com o sapo dentro, ele se acostuma com a temperatura e aos poucos morre sem perceber que foi cozido. Essa metáfora seria boa para descrever a sensação térmica de décadas “assando” lentamente em Cuiabá sem perceber, e um determinado dia atingiu o ápice do calor. Parecia inacreditável, mas aquele dia tão temido e nada aguardado chegou.

O médico Celso Saldanha havia alertado há 20 anos atrás que a cidade futuramente poderia se tornar inabitável devido a vários fatores, como poluição atmosférica e a elevação da temperatura, que agrava quadros de doenças respiratórias atingindo diversas faixas etárias e debilitando a saúde dos acometidos. O clima seco e a baixa umidade relativa do ar, num local de pouca circulação de ventos impede que a poluição saia, gerando um acúmulo de gases poluentes junto da fumaça das queimadas.

Na televisão, o prefeito anunciava em uma coletiva de imprensa às pressas, antes de decolar em um helicóptero com urgência, que a capital se tornou inabitável e a população passaria por um processo de migração para abandonar o local o quanto antes. Era como um filme, mas se realmente fosse, teriam dito que o diretor exagerou demais no roteiro, pois apesar de previsível, medidas poderiam ter sido tomadas a tempo para evitar essa catástrofe climática e ambiental que ocorria. Reversível? Talvez não completamente, mas possivelmente diminuir os impactos para prevenir o colapso total.

Cuiabá.

Cuiabá.

(Foto: Acervo pessoal/ Mariana da Silva).

Em um suspiro profundo e desesperado, Ana abre os olhos e olha ao seu redor. Em seu quarto já está claro e é dia, o relógio marca 7h00 da manhã. Seu corpo está quente, como se tivesse febre, muito suada como quem correu uma maratona no sol e tentando entender onde está e o que foi aquilo que “presenciou” minutos atrás. Olhou para fora de sua janela e viu que os pássaros voavam e cantavam. Os sons comuns do centro urbano anunciavam nas primeiras horas da manhã, cuja rotina era a mesma de sempre: a vida normal. Demorou para se localizar após despertar do seu delírio noturno, mas logo constatou o ocorrido: ela havia pegado no sono e dormiu com o ventilador desligado.
 


Link
Tags »
Notícias Relacionadas »
Comentários »