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28/10/2021 às 19h42min - Atualizada em 24/10/2021 às 14h36min

Sujeira aqui não: projeto cultural da zona leste de São Paulo usa arte de rua para revitalizar pontos deteriorados com lixo

O Instituto Coletivo Cultural Cenário Urbano existe há mais de 20 anos e usa arte, cultura e educação ambiental para mostrar potencial da periferia paulista

Virginia Oliveira - editado por Larissa Nunes
Créditos: Instituto Coletivo Cenário Urbano/ Arquivo Pessoal/ Edição e Arte: Virginia Oliveira

Os coletivos culturais são conhecidos como ferramentas de transformação social. Neles, pessoas comuns se reúnem para promover atividades como feiras, exposições e oficinas sócio-educacionais para combater a exclusão. Essa iniciativa civil ficou mais forte aqui no Brasil em meados dos anos 1990, sendo advento da globalização e do despertar político na população mundial. 

Esses movimentos também se instauram com a finalidade de democratizar o acesso à artes e cultura, principalmente nas periferias, já que esses elementos são encontrados mais facilmente nos grandes centros urbanos. Um exemplo de coletivo bem sucedido e atuante na periferia paulista é o Instituto Coletivo Cultural Cenário Urbano (CCCU), fundado em 2000 por um grupo de moradores do Itaim Paulista, bairro da zona leste de São Paulo.  

Aproximadamente 23 integrantes compõem o CCCU, porém cinco deles estão a frente de departamentos específicos dentro do coletivo. André França (42) é formado em direito, grafiteiro, rapper, e produtor cultural há mais de 20 anos; Adelina Martins (64), funcionária publica, poetisa e contadora de histórias há 24 anos, Gerson Monteiro (32), grafiteiro e desenhista especializado em realismo, atua como conselheiro e também atua nas revitalizações e atividades com pinturas; Carla Bernardo (44), responsável por verificar documentações e pela organização de eventos e Roberto Silva (40) faz o mapeamento cultural, divulgação e mídias.


Em entrevista, André e Adelina contaram um pouco de como surgiu a ideia desse projeto que é responsável por transformar comunidades e pessoas através da arte.


"Por que não trocar o lixo por grafite?"
 

Mesmo com essa gana de usar a cultura como ferramenta de mudança no meio onde vivem, eles contam que no início ainda não sabiam como colocar as ideias em prática. Em uma reunião casual na casa da dona Adelina, o grupo de amigos composto por André, Sérgio e outros começou a pensar junto como fazer tudo acontecer. “A gente via que tinham muitos eventos nessa época, há 20 anos. Ficávamos com receio e com raiva, porque aconteciam tantos e não éramos convidados”, diz André. Então começaram a mandar os ofícios (documentação), foram à secretaria pedir palco, caixa de som e afins.



Ali nascia o coletivo, que além dos saraus, batalhas de rima, oficinas de literaturas e de grafite, desenvolveu o que é um dos conceitos principais do Cenário Urbano hoje, o projeto Nosso Espaço Limpo, que promove a ressignificação dos espaços da periferia, revitalizando pontos viciados em lixo com a arte de rua. Essa iniciativa foi muito bem recebida pela população e pela prefeitura, ganhando apoio até mesmo de uma empresa privada durante seis anos. “Descobrimos que através da cultura de rua conseguimos trabalhar meio ambiente. Por que não trocar o lixo pelo grafite, pela arte de rua, pela poesia, literatura nas paredes, nos muros?”, completa André. 

 

Com esse trabalho, o grupo conseguiu trazer empoderamento aos moradores que vivem nesses espaços. E não só isso, mas também resgatam a cidadania e autoestima de muitos deles, que puderam ver suas casas mais valorizadas assim que o lixo dava lugar a lindas ilustrações. “Nós temos que ensinar o nosso povo a fazer isso. Praças hoje em dia às vezes são usadas para coisas que levam nossa juventude para o mal caminho e aquele lugar perde a perspectiva de vida. Aquele lugar pode ter um comércio, o jovem pode virar empreendedor... Porém o lixo, a escuridão, a falta do poder público, [falta] de segurança acabam deteriorando”, ressalta André França. 




O processo funciona assim: tendo em vista o local que precisa ser limpo, o coletivo organiza, juntamente com a subprefeitura, um determinado dia para começar a revitalização. A limpeza fica por conta do órgão público, e o CCCU faz o acompanhamento. Depois, o coletivo faz um evento no local para grafitar e também convida os moradores a participarem de rodas, oficinas, e também ajudar diretamente, dando lanche para os grafiteiro, por exemplo.

 

Tudo vira uma “bagunça” cultural, como eles gostam de chamar, todos saem da platéia e viram agentes dentro do movimento. André também diz que busca conversar com os moradores para conscientizar cada um de que naquele lugar não pode mais haver lixo, ensiná-los que depende deles manter a limpeza. Como eles disseram, o objetivo é deixar um legado de limpeza, cultura, educação ambiental e não de sujeira e negligência.
 

Os frutos da dedicação e amor pela cultura

Ao longo desses 21 anos de existência, o grupo tem colecionado muitas conquistas. Em 2017, os integrantes decidiram tornar a iniciativa algo mais sério, e o coletivo passou a ser um instituto, devidamente documentado, e agora com um CNPJ. Em 2018, todo o trabalho foi reconhecido e eles ganharam o Prêmio Governador do Estado na categoria de “Territórios Culturais” em São Paulo. 


Além disso, contemplar verdadeiras mudanças, protagonismo e a conexão dos moradores uns com os outros é ainda mais especial. “Além de contar história, ler os livros, as crianças manuseiam os livros e também levamos brinquedos. Aí as mães ficam lá com os filhos, ajudando e vendo o que está acontecendo, então é muito legal. Uma vez a criança viu uma boneca preta, aí falou ‘que legal eu também tenho uma boneca preta’ e foi lá na casa dela buscar”, conta a Adelina que dentro do projeto comanda um sarau chamado Sarau Afro Embaixo D'Arvore, focado em literatura de autores negros.


E vale a pena destacar que dentro do coletivo tem outros trabalhos como o Cine Cenário Urbano, cinema de rua responsável por levar três curta-metragens: Bullying nas Escolas, Drogas e Dependência Química e Abandono e Maltrato de Animais. André lembra um dia em que, enquanto realizava o Cinema em uma comunidade, foi abordado por um morador que revelou algo surpreendente.

"Ele perguntou quanto eu cobrava, falei que não cobrava nada, então ele disse ‘você vem aqui na minha quebrada faz o cinema, com pipoca, suco para molecada, entrega o gibi e não cobra nada? No final de semana eu gasto mais de 10 mil reais com droga e bebida. Se tivesse esse tipo de ação na minha época eu não estaria levando a vida que eu tenho hoje, porque eu não tenho noção nem de família nem de dinheiro’”, relembra André.

 

É um trabalho de várias mãos e transcende os integrantes do coletivo. E isso mostra a importância de dar oportunidade às pessoas para descobrir talentos, se posicionar, ir lá, colocar microfone aberto, se apresentar se quiser'', completa Adelina.


O Beco do Hulk nasceu no Cenário Urbano

Outro trabalho que se destacou foi o "Beco do Hulk", uma galeria a céu aberto localizada no Emerlino Matarazzo, bairro do extremo-leste de São Paulo, feita em comemoração ao aniversário do bairro e com o objetivo de ser uma extensão do também famoso "Beco do Batman", que fica localizado na Vila Madalena, zona oeste da capital. Lá, os moradores que antes encaravam um lugar escuro e sem vida, podem agora comtemplar desenhos de super herois e ícones brasileiros como Ayrton Sena.

André conta que, a ideia era fazer um lugar em que os moradores pudessem tirar fotos ea temática de super heróis veio a calhar, já que na época filmes como "Os vingadores" estavam fazendo grande sucesso. E depois de uma reclamação por parte das grafiteiras, foi feita uma parede apenas com personagens femininas, frisando a representatividade da mulher como heróina.

O feito saiu em diversos veículos da grande mídia como Rede Globo e Record Tv, e tal fama vez com que virasse ponto turístico de São Paulo, sendo facilmente encontrado no Google Maps.  Além da partipação do André França e do CCCU, o grafiteiro Waldir Grisolia, que na época fazia parte do coeltivo,  também colaborou para a realização das artes. Foram mais de 200 metros grafitados, e o projeto foi entregue dia 1° de maio de 2019.


Pandemia chegou, e agora?

E como não falar desse período que o mundo está atravessando e como tem impactado a vida de diversas áreas, ainda mais para quem trabalha com cultura e precisa de público. André e Adelina dizem que o CCCU no começo da pandemia partiu para os eventos online, com lives. “Essa pandemia foi complicada, porque tínhamos grafite marcado para fazer e teve de ser cancelado. Faríamos uma feijoada no dia, e acabou não acontecendo. Cada um ficou fazendo suas coisas, online, cada um no seu canto, mas nunca perdemos o contato”, diz dona Adelina.

O movimento também se juntou para arrecadar alimentos para as comunidades em necessidade. Foram cerca de 1000 cestas básicas para distribuir aos moradores e também artistas dentro do coletivo que estavam em dificuldades. 
 

Postagem feita pelo coletivo com fotos do dia em que receberam e distribuiram as cestas básicas à comunidade local (Foto: Reprodução Instagram)



O que o futuro reserva 

Atualmente o grupo está sem patrocínio, o que dificulta ainda mais a realização de alguns eventos e o alcance do projeto a outras localidades. Por isso, cada um tem um emprego paralelo às atividades do coletivo, ainda não é possível viver do que eles tanto gostam. “Pretendemos ir atrás das empresas, como a gente está documentado há mais de dois anos, nossa ideia é pegar nossos projetos e ir atrás de patrocínio, captar recursos. Porque as ações por edital são complicadas, então quem sabe indo atrás das empresas pessoalmente fica mais fácil”, desabafa Adelina.

Uma vez que essa questão de recurso esteja resolvida, a organização do CCCU também almeja reformar seu espaço físico, que precisa de muitos reparos, já que é uma construção abandonada do CDHU, localizada na R. Dakota do Norte, no Jardim Camargo Novo.
 

"Pensamos em ter um espaço onde possamos transmitir esse excesso de conhecimento que a gente tem guardado, colocar para fora em forma de sustentabilidade, de empregabilidade pros jovens e ensinar que quando a gente quer, tudo é possível. Estamos correndo atrás de patrocínio, seja político ou de alguma empresa grande que acredite no nosso trabalho".

Para saber mais e acompanhar as atividades do CCCU, acesse a página de Facebook.



 

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