“Não é a mesma coisa fazer música em democracia e na ditadura”, observa o jornalista e escritor argentino Gastón Calvo. Também não é fácil fazer música por mais de meio século, como o fez – inclusive, neste período autoritário da história argentina – o cantor e compositor Charly García. Nascido em 23 de outubro de 1951, Carlos ‘Charly’ Alberto García Moreno completa 71 anos e é “referência cultural argentina”, para o escritor.
O jornalista – em outubro, na ocasião do aniversário do astro do rock– lançou o livro “Say No More: uma abordagem sobre Charly García como referente cultural da Argentina”. Ele afirma: “Charly fez música na democracia e na ditadura. Fez música quando havia prosperidade econômica e em momentos de absoluta crise”. Além disso, García também representa uma etapa de “descontrole”, na visão de Calvo.
O artista – quem, por um breve período, morou no Rio de Janeiro, cultivou amizades com os integrantes da banda Paralamas do Sucesso e namorou uma brasileira, a bailarina Zoca Pederneiras – revela-se uma figura importante para o contexto político e cultural do país vizinho, segundo Gastón. Desde cedo, Charly revelou sua aptidão para a música ao dominar o piano e dispor de grande habilidade para compor canções.
Infância
Nascido em uma família da classe alta de Buenos Aires, filho de Carmen Moreno e Carlos Jaime García Lange, o cantor argentino sempre esteve rodeado por música. Sua genialidade se manifestava ao tocar instrumentos de brinquedo que ganhara da avó. Já na infância, o pequeno Charly iniciou aulas de música no conservatório Thibaud Piazzini e, aos 13, já era professor de piano.
A família abastada de Charly perde o relativo conforto que tinha em razão de uma crise econômica que assola o país, em 1959. O pai se desfaz de bens e fecha os negócios; a mãe, que antes não trabalhava, torna-se produtora de programas de rádio. A partir do trabalho de Carmen, o jovem músico entra em contato com nomes influentes da música – como Mercedes Sosa, que frequentava o lar dos García.
Seu talento precoce para a música é revelado quando descobrem que o prodígio tem ouvido absoluto – isto é, a capacidade de identificar notas musicais a partir de sons. Além disso, é ainda cedo que uma de suas marcas – o bigode bicolor – se define: Carlitos teria desenvolvido vitiligo durante a ausência dos pais, que, por um período, viajaram à Europa e deixaram os filhos sob cuidado da avó e babás.
Projetos
Tomado pela influência dos Beatles, o já adolescente Charly se interessa pelo rock e, juntamente com o amigo do ensino-médio Nito Mestre, arranca a banda Sui Géneris, em 1972. Nesse mesmo ano, Charly e Nito lançam o álbum “Vida” e emplacam o sucesso “Canción para Mi Muerte”. A banda chega ao fim em 1975, mas García e o amigo trabalham juntos em projetos futuros .
Ainda em 1975, Charly iniciou o grupo “La Máquina de Hacer Pájaros”, que contou com dois discos: O primeiro com o mesmo nome da banda, em 1976, e “Películas” (1977). O breve período do projeto coincidiu com o Golpe Militar de 1976, o qual instaurou um regime ditatorial que durou por sete anos na Argentina.
Nesse contexto de repressão, Charly se encaminha ao Brasil e, ao lado de David Lebón e Pedro Aznar, idealiza o projeto Serú Girán (1978 -1982). O grupo lança hits como “Canción de Alicia en el País” e o disco “La Grasa de las Capitales” (1979). Para o jornalista, nessas últimas etapas, o cantor “estava comprometido com o que ocorria ao seu redor”, no período da ditadura.
Conforme Gastón Calvo, em 26 de dezembro de 1982, Charly anuncia o primeiro disco solo – “Yendo de La Cama al Living” – e, assim, concretiza a carreira independente ao apresentá-lo no estádio do Club Ferro Carril Oeste. O jornalista afirma se tratar de um concerto histórico para o rock nacional porque, pela primeira vez, um artista do país lota um estádio de futebol.
“Um marco na Argentina havia sido a visita da banda Queen, um ano antes, quando tocaram no estádio Vélez Sarsfield e o encheram, mas era uma banda extrangeira”, ressalta Gastón. No entanto, “como músico argentino, o feito é de Charly tocando no estádio do [Club] Ferro”, prossegue.
Ainda em 1983, Charly lançou o álbum “Clics Modernos”, de ritmo “dançante” e influenciado pela New Wave, segundo Calvo. Esse trabalho coincide com o período de transição democrática do país. Além disso, entre outros discos, García anunciou “Piano Bar” (1984), que conta com sucessos como “Cerca de la Revolución” .
Repressão
“Se Charly fosse de forma frontal em suas canções, seria censurado, perseguido, preso e, talvez, teria desaparecido”, pondera o jornalista. Para evitar a censura, o artista compunha suas canções por outros meios: “Charly falava daquilo que não se podia de uma forma metafórica, para que os censuradores não pudessem captar a mensagem”, explica.
Na música “Los Dinosaurios” (1983), no contexto da transição democrática, o cantor exprime: “Os amigos do bairro podem desaparecer/ mas os dinossauros vão desaparecer”; a metáfora diz respeito às vítimas da ditadura e o fim do período de repressão, para o escritor. “Essa canção foi abraçada pela juventude da época e continua sendo emblemática”, enfatiza.
Ainda segundo Calvo, antes de lotar estádios, Charly utilizava espaços menores para os shows, que representavam locais de “resistência”. “Este era o espaço onde se diziam muitas coisas que não se podia dizer em outros meios”, acrescenta. Ele afirma que, em entrevista, Charly revelou ter evitado a prisão de uma garota por policiais durante um show: “se vocês a levarem, somos seis mil contra dois”.
Controvérsias
Além da desenvoltura para a música e da criticidade em suas letras, o cantor é conhecido por um período conturbado da carreira, conforme o jornalista. Na década de 80, Gastón conta que Charly García se envolve em escândalos – desde o uso de drogas, até a agressão de jornalistas, fãs e a falta de compromisso com os shows.
Essa etapa turbulenta do cantor é conhecida como “Era Say No More”, cujo nome vem de um álbum de Charly e representa o seu “descontrole”, segundo o jornalista. Entretanto, essa fase coincide com o crescimento dos meios de comunicação na Argentina e “o jornalismo, sobretudo o sensacionalista, se alimentou dos escândalos de Charly”, observa Gastón.
Entre erros e acertos, García conquistou a simpatia e a desilusão dos fãs que o seguiam ao longo da carreira: “ele foi se reinventando todo o tempo, não é desses artistas que seguem a fórmula que lhes convenha”, diz o escritor. Por outro lado, afirma: “creio que o argentino reconheça a trajetória de Charly e quão importante ele foi, e segue sendo, para a cultura”.