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29/01/2024 às 01h34min - Atualizada em 23/01/2024 às 00h00min

Um mergulho na vida e obra de Hayao Miyazaki

Como a mente por trás de "Meu Amigo Totoro" e a "Viagem de Chihiro" construiu um legado que encanta até hoje

Maria Eduarda Torres Cavalcanti - Revisado por Paola Pedro
(Reprodução / Papo de Cinema)

Era setembro de 2023 quando Guillermo Del Toro — aclamado cineasta mexicano cujas criações monstruosas espreitaram, vividamente, nosso imaginário em Labirinto do Fauno (2006) e A Forma da Àgua (2014), veio a público na 48ª edição do Festival Internacional do Cinema de Toronto confessar sua admiração por um certo diretor japonês de cabelos grisalhos que emprestou ao mundo parte de seu brilhantismo e o transformou em um verdadeiro deleite audiovisual, cujo leque de criações vão desde vilarejos feudais e seres antropormórficos até metrópoles futuristas. Eis, Hayao Miyazaki: um dos grandes mestres da animação japonesa e a quem Del Toro orgulhosamente comparou com Mozart, renomado compositor austríaco:

 

“Temos o privilégio de viver em uma época em que Mozart está compondo sinfonias. Miyazaki-san é um mestre desse nível, e somos tão sortudos por estar aqui. Ele mudou o meio em que começou, o revolucionou, provou repetidamente que [a animação] é uma obra de arte tremenda”, declarou o diretor de Pinocchio, na noite da estreia internacional do mais novo trabalho de Miyazaki, O Menino e a Garça. O longa-metragem que marca o retorno do cineasta às telas conta a história de Mahito. Depois de perder a mãe durante a guerra, o jovem se muda para a propriedade de sua família no campo e uma série de acontecimentos misteriosos o levam ao lar de uma travessa garça cinzenta. A dupla inusitada, então, embarca numa jornada de amizade e descoberta. 

 

Baseado no romance homônimo de Genzaburō Yoshino, “O Menino e a Garça” fez história na temporada de premiações do Globo de Ouro ao vencer a categoria de Melhor Animação, superando os favoritos “Homem Aranha: Através do Aranhaverso” e “Super Mario Bros”. Embora o anúncio tenha sido recebido com surpresa pelo público, a conquista do filme — que fez dele o primeiro de língua não inglesa a atingir esse feito faz jus ao legado de Hayao Miyazaki: a mente genial que, ao lado de Isao Takahata e Toshio Suzuki, fundou o Studio Ghibli, estúdio de animação japonês que encantou o mundo com pouco mais de duas dezenas de produções primorosas regadas de uma sensibilidade única — e que até hoje serve como fonte de inspiração para nomes como John Lasseter, diretor de Toy Story (1995) e Vida de Inseto (1998).



Antes do Ghibli

Apesar de seus primeiros passos na animação terem sido registrados desde as décadas de 1960 e 1970 — a destacar o longa-metragem “O Castelo de Cagliostro”, produzido pela TMS Entertainment —, foi com Nausicaä do Vale do Vento (1984) que Hayao Miyazaki começou a construir sua assinatura artística como diretor. A trajetória da princesa Nausicaa para salvar seu povo de um mundo devastado pela guerra tem como fio condutor da narrativa a crítica à exploração desenfreada de recursos naturais e a postura antibelicista. Uma característica curiosa de Nausicaa é que, ainda que caminhe por referências fundamentais de obras consagradas de ficção como Duna, de Frank Herbert, o longa-metragem conquista mérito por construir uma história fluida, sem precisar recorrer a diálogos expositivos ou de contextualização prévia para dar corpo à história. 

 

Sem Luke Skywalker ou Bilbo Bolseiro, Hayao Miyazaki subverte a narrativa clássica da ficção ao nos entregar uma jornada da heroína — algo que, mais para frente, se revelaria como um dos principais traços do diretor, com uma qualidade técnica e narrativa sublimes. O sucesso do filme possibilitou a criação do Studio Ghibli, em 1985, no bairro de Suginami, em Tóquio. Assim, Miyazaki começara a fazer seu nome na Sétima Arte. Homem que era, antes que qualquer outro título o precedesse, um artesão: ilustrava a mão cada cena, atendo-se aos mínimos detalhes para esculpir, seja numa sequência de planos panorâmicos ou closes, uma obra cinematográfica em que o olhar do espectador possa repousar e apreciar qualquer ponto da cena.
 


 

A Marca de Miyazaki  
Mas é com Meu Amigo Totoro (1988) que Hayao Miyazaki e sua fábrica de sonhos ganham uma roupagem ainda mais lúdica, transformando o guardião felpudo da floresta, Totoro, em um dos símbolos mais emblemáticos da cultura japonesa. Na trama, Satsuki e Mei se mudam para o interior de Tóquio para ficar mais próximas da clínica em que a mãe doente está internada. Lá, as irmãs conhecem adoráveis criaturas mágicas, com quem compartilham aventuras e encontram conforto para superar as adversidades da vida.

O longa, embora seja destinado ao público infantil, entrega uma narrativa cativante inundada de tudo o que há de mais colorido cuja magia permeia, principalmente, o cotidiano. Assim como a pequenina Lúcia descobre um mundo encantado dentro de um guarda-roupa no clássico de C.S Lewis, As Crônicas de Nárnia (2005), Satsuki e Mei desbravaram o ambiente que as cercam graças ao véu da infância
— mas que, diferente do que fora para a princesa de Nárnia, o amadurecimento não é encarado com pesar, mas como uma consequência natural da vida.

Em "Meu Amigo Totoro", Miyazaki desperta a criança dentro de nós que vive, outrora, adormecida e nos empresta os olhos de Satsuki e Mei para perceber e experimentar a vida com doçura e imaginação. Com criaturas e eventos mágicos que dispensam qualquer “explicação” — pois é daí que o cineasta entrega o caráter infantil, em sua mais pura essência —, Totoro foge de qualquer lógica maniqueísta: o mais próximo de um vilão encontrado no filme é a doença da mãe a qual, ainda assim, é tratada com muita sutileza. É nítida a dedicação do diretor em entregar uma obra que nos acalenta em qualquer idade, quase como se fossemos nós a cochilar na barriguinha peluda de Totoro. 

 


 

Como um grande amante de aviação, Hayao Miyazaki não perdera a oportunidade de incorporar máquinas voadoras em seus filmes. Assim, em 1989, foi a vez do cineasta se aventurar nos ares com a obra cinematográfica Serviços de Entregas da Kiki. Nela, acompanhamos a jovem bruxa Kiki que, numa noite de lua cheia e prestes a completar 13 anos, parte na companhia de seu fiel escudeiro, o gato preto Jiji, numa jornada para  descobrir sua vocação na bruxaria. Aos poucos, percebemos que as dores vivenciadas por Kiki — a mudança de cidade, a aceitação de um novo estilo de vida e a dificuldade de fazer amigos refletem questões que também nos pertenceram em uma certa idade. Numa belíssima analogia da transição da adolescência para a vida adulta, assistimos a bruxinha, que sempre esteve nas alturas, aterrissar os pés no chão e enfrentar os dilemas de crescer sem deixar de lado os prazeres que cada ciclo nos proporciona. 

De volta aos céus, três anos depois, somos apresentados ao ex-piloto de caça Porco Rosso. Ambientado numa Itália tomada pelo fascismo — sendo esta, de longe, a crítica mais afiada de Miyazaki à guerra e a obra mais preocupada em se localizar temporal e geograficamente
—, o “último herói romântico” cruza o Mar Adriático combatendo piratas voadores enquanto é procurado pela Força Aérea e pelo governo local. A animação cumpre, com maestria, a missão de acompanhar a mente frenética de Hayao Miyazaki de modo a manter a qualidade gráfica das cenas, tanto das disputas aéreas quanto dos momentos de contemplação, em que o personagem lamenta a perda de seus companheiros e seus feitos no passado — a forma suína que Porco Rosso assume, inclusive, é a representação literal de Marco, o “herói” de complexas camadas, consumido pela culpa dos crimes de guerra que o seguirão até o dia em que der seu último suspiro. Para ele, a morte é mais que uma mera redenção, é um acerto de contas. De forma humorada e levemente agridoce, o protagonista antropomórfico sai de cena.

 

Tomando as Rédeas

 

Incomodado com a crença popular de que o Studio Ghibli só produzia filmes “delicados” e “puramente otimistas”, Hayao Miyazaki entregou ao mundo Princesa Mononoke (1997) — película que, assim como em Nausicaa, contempla um universo narrativo rico e habilmente construído sob um sistema de mitologias próprias que tornam o mundo mágico da princesa loba um dos mais fascinantes da filmografia do diretor até hoje. Na trama, seguimos Ashitaka, um jovem príncipe que foi amaldiçoado pela ira de um javali-demônio, sentenciando-o à morte. Transtornado, ele parte de seu vilarejo para investigar a origem do monstro que o atacou e se vê em meio a um confronto entre o mundo dos humanos, simbolizado por uma refinaria de aço controlada por Lady Eboshi e as criaturas da floresta, representados por uma matilha de lobos e pela humana San, conhecida por seus inimigos como Princesa Mononoke

 

Ainda que a preocupação ambiental e o visual impressionante não sejam uma novidade para Miyazaki, Princesa Mononoke é o primeiro longa do diretor que mais se aproxima do realismo, mesmo que não se desvencilhe de sua licença ficcional. No filme, os personagens sangram, são dúbios e despidos do dualismo caricato presente nas histórias clássicas. Lady Eboshi, por exemplo, mesmo que seja considerada por San como uma autoridade "vilanesca", libertou mulheres do tráfico sexual e construiu uma fortaleza segura para os leprosos banidos das terras feudais.

Outro aspecto a se parabenizar no filme é o cuidado em representar personagens femininas fora da divisão convencional do trabalho, a citar as mulheres acolhidas por Lady Eboshi, que assumem postos de liderança e realizam o trabalho pesado nas refinarias. Além de despertar no espectador o desejo de pausar cada frame para desfrutar o máximo dos detalhes, a lição que o diretor prodigioso nos deixa, em seus deliciosos 134 minutos, é a de que um homem em guerra com os outros está, antes de tudo, em guerra consigo mesmo. 

 

O Triunfo de um Legado

 

Uma garotinha se muda, a contragosto, com os pais para uma nova cidade. Durante o trajeto, o pai decide pegar um atalho e se depara com um túnel abandonado. Do outro lado, a família chega ao que parece ser as ruínas de um estranho parque temático, que à noite se torna o ponto de encontro das mais esplêndidas às mais ameaçadoras formas de vida. Esse é o pano de fundo da obra-prima de maior sucesso de Hayao Miyazaki, A Viagem de Chihiro (2001) — o bilhete premiado que concedeu ao cineasta o Oscar de Melhor Animação, tornando-se a primeira e única produção estrangeira do gênero a ganhar a estatueta. 

 

Para salvar seus pais de um terrível destino e encontrar o caminho de volta, Chihiro precisa sobreviver às provações do novo mundo. Uma delas, é abrir mão de seu nome, posse de maior valor de um indivíduo e o preço para permanecer “segura” naquele universo. Chihiro passa a ser Sen, e o que ocorre depois disso é uma sucessão de eventos que, ainda que pareçam enganosamente simples ou fantasiosos, representam o rito de passagem da garotinha medrosa que se escondia, desajeitadamente, na barra da saia da mãe até se tornar a jovem destemida capaz de enfrentar situações perigosas para salvar os pais e seus novos amigos.

O simbolismo e elementos da cultura nipônica estão espalhados por todo o filme, adicionando camadas de complexidade ao espetáculo cenográfico característico do Ghibli: os porcos como representação da ganância, O Sem Rosto — personagem desprovido de qualquer identidade e que age de acordo com suas companhias
e a Casa de Banho, habitações tradicionais japonesas, são exemplos bem sucedidos desse casamento da iconografia com a mitologia.

 

Um aspecto admirável na obra e que se estende como marca registrada de Miyazaki é a presença de cenas contemplativas que criam não só estratégicas áreas de respiro, como convidam o espectador a refletir e passear seus olhos pelas belíssimas paisagens em tela. Outra honraria presente na filmografia do diretor é o modo como ele trabalha suas personagens femininas bem como os relacionamentos que elas desenvolvem ao longo da trama. “Muitos dos meus filmes têm fortes lideranças femininas — garotas valentes e autossuficientes que não pensam duas vezes em lutar pelo que acreditam com todo seu coração. Elas precisarão de um amigo, ou de um apoio, mas nunca um salvador. Qualquer mulher é tão capaz de ser um herói como um homem”, esclareceu o cineasta ao público. 
 

É incontestável: "A Viagem de Chihiro" é uma das pinceladas mais imaginativas de Hayao Miyazaki e a responsável por exportar a magia do Ghibli para o Ocidente. Os sucessores Castelo Animado (2004), Ponyo: Uma Amizade que Veio do Mar (2008) e Vidas ao Vento (2013) continuaram a nos abraçar com personagens cativantes e tramas repletas de sensibilidade. O traço de Miyazaki é, ao mesmo tempo, preciso — com o intuito de satisfazer seus caprichos estéticos e sutil, para revelar a simplicidade preciosa do cotidiano. A espantosa capacidade do diretor de nos transportar para o seu panteão de engenhocas aladas e criaturas fantásticas sem solavancos e sem nos fazer pestanejar é, sem dúvidas, o que eterniza o legado do japonês de fios brancos na memória e no coração de crianças, jovens e adultos de todas as partes do mundo.

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