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07/04/2024 às 17h41min - Atualizada em 07/04/2024 às 17h38min

“O Brazil não conhece o Brasil: Ratá-tá tá tá”

Paulo Firmo - Editado por Letícia Nunes
Fonte e Reprodução: Editora Nemo

O lançamento de dois quadrinhos no Brasil marcam os 60 anos do golpe civil-militar no país. Chumbo, de Mathias Lehmann e ATO 5, de André Diniz e José Aguiar, foram lançados respectivamente pelas editoras Nemo e Conrad no final do mês de março. 

 

Seja a data exata 31 de março de 1964 ou 1º de abril do mesmo ano, o mais relevante é que neste espaço tempo se deu início a um período que atingiu duramente o Brasil. A Ditadura Militar Brasileira (1964-1985), estabelecida a partir de uma ação a qual um grupo de militares ainda insiste em denominar de “Revolução” com o objetivo de proteger o país do Comunismo, pois fim ao Estado Democrático de Direito, restringindo, perseguindo e torturando os que pensavam de forma diferente. Opositores políticos e sociais perderam o espaço da discordância, do diálogo, da liberdade de ser e ir e vir. 

 

O Golpe Militar, com grande apoio da Sociedade Civil e Meios de Comunicação de Massa (Emissoras de TV, Rádios e Jornais impressos) da época, e a Ditadura Militar derivada, tem a sua materialidade apoiada em milhares de documentos, registros fotográficos e artísticos, depoimentos e principalmente, vítimas. O basta só veio em 1985, e o ponto final se deu em 1988 com a nova Constituição da República Federativa Brasileira

 

É sobre este deplorável período da nossa história que se debruçam os livros de histórias em quadrinhos Chumbo, do franco-brasileiro Mathias Lehmann e ATO 5, de André Diniz e José Aguiar. Cada qual a seu modo, mostram a ignorância, intolerância, violência, alheamento, arbitrariedade, inconstitucionalidade, e sobretudo uma faceta tortuosa dos brasileiros que pouco se admite até os dias de hoje e que validou os 21 anos de ditadura. Como Lehmann traz em seu livro, a frase de Jean-Claude Rolland, médico psiquiatra de Frei Tito de Alencar Lima, um frade dominicano que militou contra a Ditadura: “Existe, no fundo de cada um de nós, uma capacidade muito reprimida de destruir os outros, e o torturador apenas ativa essa capacidade de destruição.”   

 

Chumbo (Editora Nemo, 2024) parte (e mergulha) da saga familiar do autor entre os anos 1930 e 2000, atravessada pela Ditadura do Estado Novo (1937-1945) sob o comando do Presidente Getúlio Vargas e, principalmente, da longeva Ditadura Militar Brasileira. O palco central são as Minas Gerais, na região sudeste, mas que, todavia, correlaciona e ilustra toda a dinâmica vivida em um Brasil sob o autoritarismo. Assim, diversos recortes históricos, com personagens da política, das artes, das grande mídia, da publicidade e do dia a dia nacional estão direta ou indiretamente presentes na narrativa. Detalhes sutis que afloram durante a leitura quanto mais experiência de vida o leitor possua naturalmente, algo ainda mais potencializado ao se tratar-se de uma pessoa que nasceu e ou viveu no estado mineiro/no Brasil de então. Com um traço P&B (preto e branco) que transita entre o realismo e a caricatura, a narrativa construída por Lehmann calca na realidade, reaviva um período que o Brasil ainda não superou e cujo mote extremista persiste em dar sinais de vida em pleno século XXI. 

 

ATO 5 (Conrad Editora - selo HQ Para Todos, 2024) na verdade uma reimpressão para o mercado nacional publicada pela primeira vez em 2009 pelo então selo Quadrinhofilia, na extinta Editora Nona Arte , apresenta enredo sobre uma relação de amor e amizade no ambiente teatral, em meio à vigência da Ditadura Militar Brasileira. A arte de José Aguiar, estilizada com um toque cartunesco (semelhante a um desenho animado), ângulos retos e simplificação de detalhes, em preto e branco, aponta para a representação do cruel “terremoto” que a Ditadura estabeleceu na vida de muitos brasileiros. Sob o ponto de vista de personagens diferentes, a HQ apresenta a arbitrariedade e a violência que reinavam tomarem corpo com o Ato Institucional n.º 5 (O AI-5)2; que dá nome ao gibi. No texto de André Diniz, na obra,: “Escritores, jornalistas, professores ou mesmo um indivíduo qualquer em uma conversa de botequim. Qualquer um desses tinha que pensar três vezes antes de falar se quisesse garantir a volta para casa”. Ou ainda: “Você tem ideia do que é ter sido artista nos tempos de chumbo da ditadura…? Na cabeça dos milicos e de seus partidários nós éramos a escória. Éramos um mal a ser eliminado.”

 

A respeito do tema, algo que abordei certa vez em uma resenha, sobre uma outra obra de histórias em quadrinhos também sobre a Ditadura Militar do Brasil (Ditadura no ar Coração selvagem de Raphael Fernandes, Rafael Vasconcelos e Abel, Editora Draco/2016), vai ao encontro do retratado em Chumbo e em ATO 5: “O clima de estranhamento nas ruas e a truculência das agências de controle estão aqui. A imprensa podada, pessoas caladas… como uma verdadeira distopia. Todavia, uma ‘maquiagem’ procurava disfarçar a tirania do Estado. Nos deparamos com atributos de uma época distante dos imediatismos de hoje. De modo que, é válido considerar que o contexto facilitava os abusos, a difusão do medo e inibia a real percepção da dita ordem instalada.” 

 

De 1964 para cá, infelizmente pouco mudou no modo de fazer política no Brasil. Não à toa, recentemente flertamos com a tentativa de um novo golpe civil-militar. Antes, durante e posteriormente a um mandato presidencial. Em 2024 são passados 60 anos do golpe que instalou a Ditadura Militar Brasileira. Neste contexto de horror e desrespeito para com a história do Brasil, a pluralidade do povo brasileiro foi duramente atacada. Chumbo e ATO 5, cada um à sua maneira, felizmente engrossam o coro: “Ditadura nunca mais!”

 

Ambas as obras estão disponíveis em formato impresso e digital. 

 

Notas: 

 

1. O título desta matéria foi construído com trechos de duas músicas nacionais. “O Brazil não conhece o Brasil” é de Querelas do Brasil. Uma composição de Aldir Blanc (1946-2020) e Maurício Tapajós (1943-1995), singularmente popularizada na interpretação de Elis Regina (1945-1982). A canção integra o álbum Transversal do Tempo, em 1978. A letra aborda questões políticas, sociais e culturais do país. “Ratá-tá tá tá”, por sua vez, é parte inicial do refrão da música Era Um Garoto Que Como Eu Amava Os Beatles e Os Rolling Stones, uma versão (de Brancato Júnior) gravada primeiramente pelo grupo Os Incríveis (1961-), e posteriormente pelos Engenheiros do Hawaii no álbum O Papa é Pop, de 1990 (assista aqui ao videoclipe oficial dos Engenheiros do Havaii no Youtube). A versão é da canção italiana C’era un ragazzo che come me amava i Beatles e i Rolling Stones, dos compositores, também italianos, Mauro Lusini e Franco Migliacci. Foi gravada por seu compatriota Gianni Morandi em 1966 (ouça gratuitamente, na voz popular de Gianni Morandi, no Spotify). original da Embora não estabeleça uma relação direta com a Ditadura Militar Brasileira, e sim ao contexto da Guerra do Vietnã (1955-1975), a onomatopéia (figura de linguagem ou figura de som que busca reproduzir, por escrito, sons e ruídos de objetos, animais e fenômenos da natureza. Nas histórias em quadrinhos elas são muito utilizadas. E Ratá-tá tá tá, com uma ou outra variação, é utilizada para representar o som da arma de fogo metralhadora - algo presente na referida obra Chumbo, de Mathias Lehmann.

2. O Ato Institucional n.º 5 (O AI-5), foi o quinto (dos dezessete) grande decreto emitido pela Ditadura Militar Brasileira. Com ele ocorreu o fechamento do Congresso Nacional e das Assembleias Legislativas dos estados, a censura prévia da imprensa e das produções artísticas (algo claramente visto na obra ATO 5) e colocou nas mão do Presidente da República o poder de intervir livremente nos estados e municípios. Ainda, tornaram-se ilegais as reuniões políticas não autorizadas pela polícia e toques de recolher passaram a ser rotina.

 

Referências:

 

ABUD, Marcelo. 40 anos sem Elis Regina: confira análise da música ‘Querelas do Brasil. Cidadania. Instituto Claro. 12 jan. 2022. Disponível em: < https://www.institutoclaro.org.br/cidadania/nossas-novidades/podcasts/40-anos-sem-elis-regina-confira-analise-da-musica-querelas-do-brasil/#:~:text=Lançada pela primeira vez no,sociais e culturais do país.. >. Acesso em: 5 abr. 2024.

 

Ato 5. Guia dos Quadrinhos. [s.d]. Disponível em: http://www.guiadosquadrinhos.com/edicao/ato-5/at066100/82731. Acesso em: 5 abr. 2024.

“Chumbo” já chegou pronta pra entrar na lista das melhores graphic novels que você vai ler na vida. Instagram. 13 mar. 2024. Disponível em: < https://www.instagram.com/p/C4d7eI3Ppub/ >. Acesso em: 20 mar. 2024.

 

Era Um Garoto Que Como Eu Amava os Beatles e os Rolling Stones. Política. Canto da MPB. [s.d]. Disponível em: < https://cantodampb.com/era-um-garoto-que-como-eu-amava-os-beatles-e-os-rolling-stones-os-incriveis-engenheiros-do-hawaii/ >. Acesso em: 6 abr. 2024.

 

NALIATO, Samir. 50 anos do golpe militar: a ditadura brasileira e os quadrinhos. Matérias. Universo HQ. 1 abr. 2014. Disponível em: < https://universohq.com/materias/50-anos-golpe-militar-ditadura-brasileira-e-os-quadrinhos/ >. Acesso em: 7 abr. 2024.

 

SUDRÉ, Lu. Entenda o que foi o AI-5, ato ditatorial defendido por Eduardo Bolsonaro. Política. Brasil de Fato. 31 out. 2019. Disponível em: < https://www.brasildefato.com.br/2019/10/31/entenda-o-que-foi-o-ai-5-ato-ditatorial-defendido-por-eduardo-bolsonaro >. Acesso em: 5 abr. 2024. 

 

Uma parte sensível da história do Brasil em quadrinhos!. Instagram. 18 mar. 2024. Disponível em: < https://www.instagram.com/p/C4q_UeDvdRV/?img_index=1 >. Acesso em: 20 mar. 2024.


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