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24/03/2021 às 17h27min - Atualizada em 24/03/2021 às 12h37min

Preta Guaiana: o som que fala do que está engasgado

Trajetória de uma jovem artista independente da zona leste de São Paulo

Virginia Oliveira - revisado por Jonathan Rosa
A trajetória de Preta Guaiana. (Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal/ Pixa Bae/ Research Gate/ Google Images/ Virgina Oliveira)

Trilhar o caminho do autoconhecimento fez com que Raquel de Oliveira Silva (21), vulgo Preta Guaiana, descobrisse um mundo dentro de si. Atualmente ela é cantora independente e estuda História na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), é moradora de Guaianases, bairro do extremo leste da capital paulista. Seu estilo musical está concentrado no Rap, mas também transita entre os gêneros de R&B, Reggae e Soul.

Seu amor pela música começou cedo e quando tinha dez anos já compunha algumas canções, mas nunca imaginou trabalhar com isso um dia. Em sua pré-adolescência teve uma espécie de “vida dupla”, em casa era mais reservada, já que foi criada em um ambiente conservador e religioso. Enquanto na escola era considerada a piadista entre as amigas. “Tinha gente que falava que nem parecia que eu era da igreja”, disse Guaiana.

Mas em certo momento Raquel chegou a um ponto de virada em sua vida. Alguns padrões foram confrontados e desconstruídos nesse processo, levando a artista a dar os primeiros passos da caminhada que faz até hoje...

Coroa crespa

O início para a mudança de pensamento da cantora foi a aceitação de seu cabelo natural. Segundo Raquel, antes ela usava produtos químicos para mudar a estrutura do fio, já que sofria bullying por conta de seu cabelo, sua cor e seu peso. A cantora recorda o dia em que alisou o cabelo pela primeira vez, pois era como se finalmente tivesse se encaixado. "Eu não conseguia entender o racismo quando ele acontecia, não só no meu namoro, mas também com os meus amigos ou pessoas a minha volta", esclareceu Raquel.

Após se formar no ensino médio, em 2017, ela começou a consumir conteúdos de outras meninas negras falando sobre a estética do povo preto. Foi então que teve contato com o famoso "big chop", ou grande corte, que é quando cortam as partes quimicamente tratadas dos cabelos, deixando apenas o cabelo natural. Ao ver isso, Raquel decidiu assumir seu crespo e passar por uma transição capilar. 

A atitude até então inofensiva transpassou a questão da estética e virou símbolo do desabrochar pessoal da artista. “É libertador, mas é doido quando você cria expectativas sobre o que as pessoas vão achar, então, eu já imaginei que minha família não ia gostar, mas vivenciar isso foi ruim”, destacou.

Nadando contra a corrente

Após assumir o cabelo natural, Raquel começou a se engajar nas ideias do Feminismo e do Movimento Negro, coisas que pareciam muito distantes da realidade que ela vivia. Para ela questões como políticas e gênero começaram a ficar mais visíveis. Raquel então se descobre bissexual, ainda dentro de um relacionamento hétero. “Eu falei que achava que também gostava de meninas, e ele ficou louco”, disse a artista. A sexualidade, assim como cada parte da vida de Raquel, virou música. Intitulada de “Banco do Trem”, a obra relata a relação entre corpos femininos e seu lançamento está previsto para abril deste ano. 

Era nítido que Raquel estava mudando, as camisas sociais agora eram usadas de maneira mais despojada, as saias comportadas deram lugar ao jeans e aos shorts. Estava experimentando ambientes novos, discutindo sobre racismo, sobre machismo, enxergando o que antes ela não entendia, que estava velado. Entretanto, algo ainda permanecia intocável: sua paixão por escrever músicas e poesias, além da sua fascinação pela educação. Decidiu conciliar essas duas ferramentas para compartilhar e ensinar outras visões de mundo através de sua arte. 

A feira, a primeira batalha e a Preta Guaiana

Recentemente Raquel trabalhou em uma feira-livre perto de onde mora, vendendo café da manhã aos feirantes. Essa experiência foi uma oportunidade de aprendizado, pois entre as montagens das barracas e conversas com os vendedores, ela percebeu que toda a gritaria e agitação da feira tinham um único fim: o de levar o pão para casa e garantir sustento da família. “É doido esses dois olhares...”, comentou a ela. “Quando era criança eu queria ir embora da feira por ser muito barulhenta, mas quando comecei a trabalhar lá, tive uma outra visão, que aquela barulheira toda era um desespero para conseguir dinheiro”, destacou.

A feira foi fonte de grande inspiração para a artista, que escreveu alguns poemas sobre sua vivência trabalhando lá, e isso consequentemente a fez pensar em um nome artístico. As poesias foram compartilhadas pela primeira vez na Batalha Dominação, coletivo cultural em que mulheres e pessoas trans podem recitar poemas e participar de batalhas de rima. Com o microfone na mão, Raquel agora se tornava Preta Guaiana. "Eu tentei alguns nomes. até chegar em 'Preta Guaiana'. Sabia que tinha de ter 'Guaiana' no meio porque eu queria falar de Guaianases".

 
                         
                                Preta Guaiana x Ayô na 160ª Batalha Dominação. (Reprodução: Batalha Dominação - You Tube)


Certa noite, após beber o suficiente para criar coragem e encorajada por sua namorada na época, Preta Guaiana decidiu participar da sua primeira batalha de conhecimento, na qual era necessário rimar sobre algum tema escolhido pela plateia. Após ter a melhor rima, desenvolver a melhor ideia, ela ganhou.

Isso fez com que eu me motivasse a começar escrever. E o que eu achei mais legal do Rap era a possibilidade de falar sobre o que eu quiser e sobre mim também”, revelou Guaiana.  Depois desse dia foi uma batalha atrás da outra e a vergonha foi dando lugar a ousadia.

Gravação em estúdio e início de carreira 

No final de 2020, a dona de uma loja de streetwear gospel convidou a Preta Guaiana para fazer uma parceria, a proposta era de gravar um single com um clipe para promover a marca. O convite pareceu uma grande oportunidade, mas também causou um receio.

Foi muito louco para mim porque sou agnóstica e a primeira oportunidade de música vir neste contexto me fez pensar se eu teria que deixar de falar algumas coisas que eu acredito”, declarou a cantora. “Então, eu expliquei que era agnóstica, mas que achava a mensagem de incentivo interessante, também falei que queria escrever sobre tudo o que eu quisesse”, destacou ela. 

Guaiana disse ser muito difícil conter a emoção ao entrar naquele estúdio e encarar um microfone profissional pela primeira vez. “A gente lançou no começo desse ano e foi muito gostoso, pensei: se alguém pesquisar ‘Preta Guaiana’ no Spotify vai encontrar um som meu, e eu vou estar falando de algo que eu acredito”.

Esse primeiro trabalho chama-se “Desperta”, gravado em parceria com dois outros MCs.  Foi algo que abriu diversas portas para a cantora independente, algumas delas remuneradas, outras apenas parcerias para compor seu portfólio. 
 
Infelizmente a arte ainda não pode ser o seu sustento. A cantora conta com a ajuda de familiares e da bolsa-auxílio disponibilizada pela faculdade. Para ajudar a manter o sonho e a carreira, ela está fazendo uma vaquinha on-line para produzir seu mais novo single "Batom Matte", com a rapper e produtora musical, Ashira. Além disso, parte do dinheiro arrecadado também servirá para gravação do clipe da música "Banco do Trem".

“Quero falar sobre o que está engasgado”

Muito do que é cantado por Preta Guaiana é resultado de suas experiências pessoais e descobrimentos, mas ela quer ir além. “Eu quero falar sobre o que está engasgado, falar do que eu não falei, das várias situações que eu fiquei quieta, diante de racismo, diante de machismo, eu quero colocar no papel, e eu quero que as pessoas ouçam e se identifiquem", disse a cantora.  

Mesmo em tempos de pandemia, a jovem poetisa não para de participar das batalhas de rima e de eventos artísticos, que agora acontecem on-line. Seu objetivo é falar por ela e por outras meninas negras que tenham a vivência parecida. Além de mostrar que nas periferias existem diferentes nuances, e não só violência, mas também trocas de afeto e alegria.
 
"Acho que é um sentido de jogar para fora, até porque a ansiedade que eu tenho hoje também veio das coisas que eu não consegui jogar para fora”, disse Guaiana. Ela falou ainda que não pretende falar somente de coisas tristes, e quer ressignificar essas coisas. “Fazer músicas sobre coisas que me alegram, como o afeto, brincar com meu sobrinho e ouvir a risada dele. Ressignificar o que me dói, pra que chegue mais tranquilo no coração”, destacou.


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