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17/08/2021 às 07h52min - Atualizada em 17/08/2021 às 08h28min

Comics Code Authority | A criação do código que marcou as páginas das histórias em quadrinhos

Como uma sociedade refém do medo "criminalizou" o entretenimento e moldou os rumos das HQs por anos

Jonathan Rosa - Editado por Fernanda Simplicio
Capa do livro "A sedução dos inocentes" ao lado do selo da Comics Code Authority

Após a Segunda Guerra Mundial, o índice de delinquência juvenil começou a subir bruscamente nos EUA, muitos jovens regressos do fronte de batalha e famílias inteiras dizimadas, já poderiam explicar um pouco daquele movimento. Mas para piorar, pouco tempo depois, a Guerra Fria tem início, enchendo ainda mais a cabeça da população mundial de preocupações.

 

E com tudo isso acontecendo nas terras do Tio Sam, os políticos da época indicaram várias medidas para tentar buscar a melhor forma de lidar com o problema da violência. É então, que em meados de 1954, nasce o subcomitê de investigação à delinquência juvenil. Que entre inúmeras outras medidas, iniciou um debate público para tentar comprovar como os quadrinhos poderiam incentivar os jovens a ficaram mais violentos. Esse processo deu origem ao Comics Code Authority, que marcou as páginas das HQs por muito tempo.

 

Mas antes de chegarmos nesse momento, é preciso voltar um pouco no tempo, especificamente para o ano de 1948, quando o psiquiatra alemão, Fredric Wertham, começou a relacionar a delinquência juvenil com histórias em quadrinhos. No mesmo ano vários editores de quadrinhos criaram a Association of comics magazine publishes (ACMP), já visando se proteger de uma possível censura governamental. Com esse nasceu o primeiro código de alinhamento para os quadrinhos, tentando amenizar um pouco a perseguição.


Mas Fredric Wertham, tinha uma visão muito particular e até mesmo obsessiva sobre as comics. O psiquiatra que abominava a violência e militava a favor dos bons costumes sociais, fazia consultas gratuitas com crianças carentes, onde descobriu que muitas crianças que tinham comportamentos de delinquência liam quadrinhos, porém 90% das crianças da época liam. Além disso, Wertham alegou que a maioria dos heróis de quadrinhos eram brancos, atléticos e norte-americanos, já os vilões, segundo ele, geralmente eram retratados como pessoas estrangeiras, italianos, judeus e de pele escura. Na visão dele, o Superman, criados pelos judeus Joe Shuster e Jerry Siegel, era uma completa representação do nazista.

 

Isso provocou o início de uma cruzada contra os quadrinhos, com pais retirando as comics de escolas, e queimando exemplares em praças públicas. Além de alguns estados começarem a tentar proibir a venda de alguns títulos. Apesar de já parecer preocupante, esses esforços de comprar a ligação da violência com os quadrinhos não abalaram o mercado. Até que em abril de 1954, foi publicado o infame livro Seduction of the Innocent, (A sedução dos inocentes) de autoria do próprio, Fredric Wertham. No livro, Wertham apresentava uma visão médica e aprofundada sobre o tema. E baseado na credibilidade acadêmica do psiquiatra, a população americana começou a comprar a narrativa de que HQ 's realmente podiam estar deixando seus jovens violentos e rebeldes.


Entre as dezenas de dados e testemunhos que supostamente corroboravam sua teoria, o livro de Werthan também acusa a então National Allied Publications (uma das empresas que mais tarde se tornaria na DC Comics) de promover um relacionamento homossexual entre o Batman e Robin (esse estereótipo é relacionado com os heróis, até os dias de hoje). Além de alegar que a Mulher Maravilhosa era uma clara propagando ao lesbianismo, e segundo o psiquiatra essas histórias poderiam estimular as crianças a terem fantasias homossexuais. (fato que na época era considerado um desvio de conduta).

 

A força desproporcional da opinião pública

 

Poucas messes depois da publicação do Seduction of the Innocent, e o tema ter começado a ser amplamente discutido entre os pais preocupados da época, o Senador Estes Kefauver, enfiam dá início ao debate público sobre o tema, no subcomitê de investigação a delinquência juvenil. Apesar de não ter sido Kefauver quem criou o subcomitê, ele foi responsável pela potência vocal que o debate tomou, usando como base a teoria de Wertham.

 

No primeiro dia de debate no senado, o então senador Kefauver perguntou a Wertham se os quadrinhos seriam como Adolf Hitler, e a resposta do psiquiatra foi chocante. “Bem, odeio dizer senador, mas acho que Hitler era apenas um iniciante comparado a indústria dos quadrinhos... Eles atuam nas crianças desde muito cedo, as ensinam a corrida do ódio aos 4 anos de idade, antes mesmo que consigam ler [...]”, declarou Wertham no debate que ocorria em transição aberta, menos de 10 anos após a segunda guerra.


Vale ressaltar que a subcomissão tinha mais interesse em falar sobre as drogas, procedimentos policiais e ações familiares, do que sob a influência dos veículos de comunicação, e quanto a isso a TV ainda era mais realmente que os quadrinhos. Tanto que nenhum editor ou criador de quadrinhos foi convidado a comparecer ao debate. Ademais, eles nem sequer tinham essa intenção, já que ainda acreditavam que isso não passaria de mais fase de baixa dos quadrinhos que logo passaria. E talvez até poderia ter sido assim, até o dia que William Gaines, dono e editor chefe da EC Comics, decidiu falar na subcomissão.

 

Gaines, é um dos principais alvos de toda aquela imbróglio, tendo em vista que a sua editora não focava em histórias de homens com pacas e mulheres com laços mágicos. A EC Comics era famosa justamente por contos de terror e violência, focada em zumbis e criaturas sombrias. Em seu depoimento, Gaines alega que não precisa ter uma HQ em mãos para ter acesso a violência, “basta abrir o jornal de hoje”, disse. Após isso justificou que se aquela tentativa de censura prosseguisse, os EUA poderiam se tornar uma espécie de Rússia. – Vale lembrar que a Rússia era um território comunista no contexto da Guerra Fria.


Após isso, Gaines foi confrontado com inúmeras capas de suas revistas de horror, e fuzilado com perguntas para as quais não tinha respostas, e foi sendo jogado contra a parede. Porém, nunca houve uma continuação deste debate, após muitos adiamentos o congresso desistiu de acusar os quadrinhos, mas toda a comoção pública que o debate causou, aliado com o depoimento de Gaines, amplamente divulgado pela mídia norte-americana, gerou graves consequências. As queimas de gibis voltaram a acontecer e os pais se negavam a comprar HQs, e as bancas tinham medo de vender o material.

 

Foi com essa intensificação da perseguição aos quadrinhos crescendo, além da vontade de derrubar a EC Comics que na época vendia mais quadrinhos que as outras editoras, que a indústria tomou a decisão de se auto regulamentar. E em setembro de 1954, a ACMP, se tornou Comics Magazine Association of America (CMAA), presidida por John Leonard Goldwater e o então coproprietário da National Allied Publications, Jacob S. Liebowitz. Além de ter a supervisão do especialista em delinquência juvenil, Charles F. Murphy.

 

Autorregulação da indústria

 

A CMAA criou o conjunto de regras que ficou conhecido Comics Code Authority, que nada mais era que um espécie de selo de garantia, que indicaria aos pais, a “segurança” e aprovação de determinados quadrinhos dentro das normas da moral e bons costumes da época. É então que os quadrinhos são praticamente infantilizados do dia para noite, dando a fama que é carregada até hoje, de que HQs são coisas de criança.

 

A partir deste momento as revistas passaram a vir o selo de aprovação pelo Comics Code Authority na capa, deste modo a editora estava garantindo que o interior da revista estava seguindo todas as regras instituídas pelo Comics Code. Este código baniu a retratação gráfica de monstros, sangue e violência nos quadrinhos, além de publicações envolvendo crime, terror, drogas, armas ou opções sexuais, assim como desenhos de personagens femininas de forma sexy. Outro ponto do código, alertava que os vilões não poderiam ter aparências humanas e jamais deveriam vencer uma batalha. 


Mesmo que a CMAA fosse uma forma de clube das editoras, sem ter poder legal algum sobre o que era publicado nas revistas em quadrinhos, nem mesmo para punir quem não seguisse o Comics Code. Porém a maioria dos distribuidores nos EUA se recusava a transportar revistas em quadrinhos que não tinham o selo na capa. As editoras seguiam o código por conta própria, graças à pressão popular e o receio de que o governo interviesse ainda mais nos negócios. As regras do Comics Code não se aplicavam aos quadrinhos publicados em jornais. Já que a ideia do código era criar elementos que permitissem o “controle de conteúdo” para o que crianças e adolescentes iriam ler.


Com o passar dos anos e muitos movimentos de rebeldia acontecendo em diversas editoras, o Comics Code foi sendo revisado e aos poucos passou a aceitar um certo grau de violência, assim como a presença de drogas e homossexuais desde que de forma educativa. Mesmo completamente desidratado e esquecido, o código foi usado por anos, a Marvel Comics abandonou o uso somente em 2001 e em 2010 três das maiores editoras ainda o seguiam: DC Comics, Archie Comics, e Bongo Comics. A Bongo rompeu com o código ainda em 2010, já a DC e a Archie só deixaram de vez o selo em janeiro de 2011, fazendo com que o Comics Code Authority se retirasse de vez.

 

Dividindo ao invés de somar

 

Os impactos Comics Code Authority na indústria dos quadrinhos americanos, em termos de liberdade de conteúdo, foram enormes. E talvez essa percepção de impacto só tenha vindo de fato por um comparativo, após a proliferação dos quadrinhos underground nos EUA, e com a chegada dos mangás, com todos os seus temas polêmicos.

 

Mas o mais incrível de tudo isso, é que o Comics Code foi fruto daquelas visões ético-morais e comportamentais que até hoje, em outras variações, perturbam a cultura na sociedade. Com o objetivo de “preservar a infância e juventude do contato com histórias de horror, de apelo sexual, crimes, vícios, adultério e afins ” , o código punha correntes e severas restrições às editoras, obrigando-as a publicarem quadrinhos baseados em uma “retidão moral”.


Tudo não passou de uma mera falta de diálogo entre as editoras, o governo e sociedade, mas um diálogo sem paixão. Tendo em vista que sim, havia muito conteúdo inadequado para crianças nas páginas de quadrinhos, mas também houve muita desconsideração de temas muito importantes para os jovens, coisas que somente através deste tipo de mídia se poderia ter acesso. Bastava ter um esquema de tabelamento de idade, indicando qual o público deveria ser recomendado tal título, exatamente como é feito hoje. 

 

O comics Code Authority foi tão autoritário e devastador, que por incrível que pareça o próprio Fredric Wertham declarou que era completamente contra o código, já que não tolerava nenhum tipo de censura. Inúmeros quadrinistas perderam os empregos, profissionais da área eram tratados como bandidos, e após uma quebra brusca do mercado editorial, os poucos que se mantiveram tinham vergonha de falar que trabalhavam com quadrinhos. Foi por conta desta vergonha que o escritor Stanley Martin Lieber, passou a usar o pseudônimo de Stan Lee. 

 

REFERÊNCIAS:

A maior TRETA da história dos quadrinhos! A censura do COMICS CODE AUTHORITY! | PN Extra 234. PIPICA & NANQUIM – YOUTUBE. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=inZB-YeYEh4> Acesso em: 10 de ago. 2021.

 

Censura nos Quadrinhos (A História do Comics Code Authority). ARQUIVO NERD – YOUTUBE. 17 de dez de 2015. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=x2DjGySYtd4> Acesso em: 10 de ago. 2021.

 

COLECIONADOR. O que é “Comics Code Authority”? PLANETA MARVEL DC. 06 de set. de 2014. Disponível em: <https://planetamarveldc.blogspot.com/2014/09/o-que-e-comics-code-authority.html> Acesso em: 10 de ago. 2021.

 

​MILLER, Leon. 10 regras malucas que a autoridade do código de quadrinhos fez os criadores seguirem. CBR. 08 de out. de 2019. Disponível em: <https://www.cbr.com/comics-code-authority-crazy-rules-comic-book-superheroes/> Acesso em: 10 de ago. 2021.
 

SANTIAGO, Luiz. Entenda Melhor | Comics Code. PLANO CRÍTICO. 23 de março de 2012. Disponível em: <https://www.planocritico.com/entenda-melhor-comics-code/> Acesso em: 10 de ago. 2021.

WELDON, Glen. Censores e sensibilidade: RIP, Selo de aprovação da autoridade do código de quadrinhos, 1954-2011. NRP. 27 de jan. de 2011. Disponível em: <https://www.npr.org/2011/01/27/133253953/censors-and-sensibility-rip-comics-code-authority-seal-of-approval-1954-2011> Acesso em: 10 de ago. 2021.


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